( CRÔNICAS TEU MELHOR INIMIGO )
PATAVINA’S
O BLOG DO CESAR CARDOSO
Fundado na semana de 1922
TEU MELHOR INIMIGO – CRÔNICAS
E vamos a mais uma crônica.
ATLAS HISTÓRICO ESCOLAR
Mas o que fazem as cidades nos bares
ou nos mercados ou nas igrejas? Cuidado!, as cidades mentem. Vaidosas, só
querem aparecer na foto com seu melhor ângulo, escondem o dente que está mole,
a variz que estufa a meia-calça, o band-aid no calcanhar de seu hino, a língua
negra, a favela, o bairro cinza de funcionários cinzas do almoxarifado cinza.
Sim, as cidades mentem a idade, ocultam suas geografias, seus mapas. Onde o
breu da cidade-luz? Onde o capiau de Nova York? Onde a solidão de Pequim?
E
se estão cheias de gente ou de violência, cuidado!, também são cheias de manias,
perversões, essas senhoras decadentes. Ou mesmo as novas gerações de pedra e
cal, concreto, vidro fumê e engarrafamento. Tratam a natureza como sua mucama,
saudosas dos tempos de escravidão. Esperam que os rios venham lhes abrir a
porta do carro, que a floresta lhes puxe a cadeira, à mesa do restaurante. E se
no décimo chopp você pergunta, indiscreto, a cidade se cala, olha pros lados
como se não fosse com ela. As mulheres de Atenas? Eram homens, apenas. Pompéia?
Não me recordo, talvez uma parente distante. Brasília? Não conheço essa
criança. E estala os dedos e pede a conta, essa nau dos insensatos aportada pra
sempre.
Na
boca de qual conterrâneo a verdadeira história? Quem venceu em cada esquina,
quem conquistou cada porta? Quem, covarde, no beco sem poesia? Quem chorou em
Praga e aceitou as outras três estações? Quem fingiu na manhã de Tróia? Quem
deu as costas ao incêndio de Lisboa? Quem riu vendo as colunas de fumaça em
Santiago? Quem deixou o filho para trás em Stalingrado? Quem se escondeu nas
sete colinas de Roma? Quem trouxe fuligem e ferrugem ao Belo Horizonte?
Não respondem, dão muxoxo, não fomos
inventadas para isso. E por que os homens inventaram as cidades? Para criar sua
própria natureza? Mas a natureza também é cidade, pergunte aos cupins, aos
bois, aos besouros. Qual das duas durará para sempre? Ora, toda geografia é
história e nenhuma cidade dura pra sempre. Como Cartago, a rolar pelos mapas,
esmolando pátria. Nome é a cidade em que se finda. Mãe é a cidade em que se
nasce, pão é a cidade em que se vive, sonho é a cidade em que se cresce. Eu vou
pra Maracangalha, Macondo, Pasargada. Barura, Endeviz, Cofian, e suas estranhas
línguas, estranhas gentes, arquitetura de nuvem. Mas o que há de estranho
afinal, se toda cidade é exílio, todo viver é estrangeiro, todo lugar é
partida? O Paraíso foi a primeira cidade? Não permita que deus morra sem que
volte para lá.
Quantas
cidades estão submersas, quantas sustentam desertos nos ombros escombros?
Quantas sucumbiram aos séculos, com seus finos grãos de areia de cada dia? A
chuva de fogo engoliu Sodoma e Gomorra, mas um Mar Morto nasceu sobre elas, se
alimentando noite e dia dos cadáveres de sal castigados por um deus idiota.
Vestígios a que chamamos história. Indícios, pistas, pegadas que acreditamos
lendas. Hiroshima e Nagasaki renasceram ou nem existiram? Quem se lembrará e
quem esquecerá? Que boca, radioativa, contará?
Não, não construiremos a estrada de
pedras ligando Antofagasta a Codisburgo. Não encontraremos os caminhos de areia
que levam de Machu Picchu a Ulan Bator. E nos perderemos na noite sem lua e sem
noite às portas arruinadas de Ur. Mas enquanto os oceanos sobem, tragando ruas,
devorando prédios, mastigando as gentes e a música das novas e velhas Orleans,
na segunda noite de lua cheia e azul, Atlântida ressurgirá, mágica, histórica,
e nós poderemos, mais uma vez, quem sabe a última?, sonhar.
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