BICHOS DE LETRAS,
SAIAM DAS GAVETAS!
- primeira parte
o bicho alfabeto
Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
E nem precisava tanto…
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
TRÊS GALOS POÉTICOS
E UMA GALINHA TODA PROSA
2
E se encorpando em tela, entre todos,
João Cabral de Melo Neto, em Poesia Completa e Prosa, Editora Nova
Fronteira.
GALO
GALO
medieval.
contra a morte,
passeia.
dentro do silêncio
— que faço entre coisas?
— de que me defendo?
Anda
no saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.
e duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?
se elabora ?
Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?
donde o canto rubro escoa
subsistem ao grito.
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.
O GALO E O DIA
UMA GALINHA
Clarice Lispector
ATRAVESSANDO O INFERNO
E, QUEM SABE?, DE AMANHÃ
Durante os
últimos vinte e cinco anos da sua vida de estudo, o eminente homem de ciência e
filósofo Emanuel Swedenborg (1688-1722) fixou residência em Londres. Como os
ingleses são taciturnos, ganho o hábito quotidiano de falar com demónios e
anjos. O Senhor permitiu-lhe vivistar as regiões ultraterrenas e partir com os
seus habitantes. Cristo tinha dito que as almas, para entrarem no Céu, devem
ser justas; Swedenborg acrescentou que devem ser inteligentes e depois Blake
estipularia que fossem artísticas. Os Anjos de Swedenborg são as almas que
escolheram o Céu. Podem prescindir das palavras; basta que um Anjo pense noutro
para o ter junto dele. Duas pessoas que se amaram na Terra formam um único
Anjo. O seu mundo está regido pelo amor; cada Anjo é um Céu. A sua forma é a de
um ser humano perfeito; a do Céu é assim mesmo. Os Anjos podem olhar para o
Norte, o Sul, o Leste e o Oeste; sempre hão-de olhar Deus cara a cara. São
acima de tudo teólogos; o seu maior prazer é a prece e a discussão de problemas
espirituais. As coisas da Terra são símbolos das coisas do Céu. O Sol
corresponde à divindade. No Céu não existe o tempo; as aparências das coisas
mudam segundo os estados de ânimo. Os trajes dos Anjos resplandecem segundo a
sua inteligência. No Céu os ricos continuam a ser mais ricos do que os pobres,
por estarem já habituados à riqueza. No Céu, os objectos, os móveis e as
cidades são mais concretas e mais complexas que os da Terra; as cores mais
variadas e claras. Os Anjos de origem inglesa tendem para a política; os
judeus para o comércio de jóias; os Alemães trazem livros que consultam antes
de qualquer resposta. Como os Muçulmanos estão acostumados à veneração de
Maomé, Deus concedeu-lhes um Anjo que simula ser o Profeta. Os pobres de
espírito e os ascetas estão excluídos dos prazeres do Paraíso porque os não
compreenderiam.
BAHAMUT
OS
LAMED WUFNIKS
CAPÍTULO IX
Gandavo
em História da Província de Santa Cruz.Para download: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
NOSSA
COMIDA ESCREVENDO
WILSON BUENO:
DUAS FÁBULAS E DOIS SERES IMAGINADOS
O
GANSO OU A VIDA
O Ganso recebeu pela quarta ou quinta vez a visita do Pato. Lá vinha ele, de novo, com aquele papo de Pato pachola.
COISAS
DA VIDA
OS GUAPÉS
Wilson Bueno, em Jardim Zoológico, Iluminuras.
JAGUADARTE
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.
Foge da Ave Felfel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassurra!”
Na árvore Tamtam ele afinal
Parou um dia sonilundo.
Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso louco!
Cabeça fere, corta e, fera morta,
Ei-lo que volta, galunfante.
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Ele se ria jubileu.
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.
PEQUENO
INDICIONÁRIO DE NUTILIDADES
ESTERÍLIA
LACRE DE BICO
ZEROCÓRNIO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
- É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.
PORQUINHO-DA-ÍNDIA
MADRIGAL TÃO ENGRAÇADINHO
Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha
vida, inclusive o porquinho-da-índia que
me deram quando eu tinha seis anos.
Manoel de Barros em Poemas Rupestres, Editora Record.
X
Em seu couro a manhã é sanguínea.
Espera as falenas escorado em caules de pedra.
Limboso é seu entardecer.
Tem cios verdejantes em sua estagnação.
No rosto a memória de um peixe.
De lama cria raízes e engole fiapos de sol.
Manoel de Barros em Arranjos para Assobio, Editora Civilização
Brasileira.
QUANTOS SERTÕES TEM O SERTÃO?
A arribada
Caniço
de magro, com um boné de jóquei no crânio, lá vai Francolim, logo atrás do
Major.
“O
Curvelo vale um conto,
Nenhum perigo, por ora, com os dois lados
da estrada tapados pelas cercas. Mas o gado gordo, na marcha contraída, se
desordena em turbulências. Ainda não abaixaram as cabeças, e o trote é duro,
sob vez de aguilhoadas e gritos.
“Um
boi preto, um boi pintado,
cada
um tem sua cor.
Cada coração um jeito
de mostrar o seu amor.”
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi
berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem,
volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...
“Todo
passarinh' do mato
tem
seu pio diferente.
Cantiga de amor doído
não carece ter rompante...”
Pouco a
pouco; porém, os rostos se desempanam e os homens tomam gesto de repouso nas
selas, satisfeitos. Que de trinta, trezentos ou três mil, só está quase pronta
a boiada quando as alimárias se aglutinam em bicho inteiro - centopeia -, mesmo
prestes assim para surpresas más.
SAIAM DAS GAVETAS!
- primeira parte
Desde
a Bíblia até Carmem Miranda na marchinha carnavalesca, todos sabem porque nosso
querido Adão perdeu o juízo: “por causa da serpente tentadora, o nosso mestre te
expulsou do Paraíso”.
A
relação dos Homens com os Animais sempre foi bem complicada, para dizer o
mínimo, em diferentes épocas e em culturas distintas. Hoje, em tempos de
extinção e consciência ecológica, é esperado que novas visões possam surgir
sobre o polêmico reinado humano neste
planeta e o destino de seus “súditos”.
Animais
somos todos. Segundo o Barão de Itararé, “o
Homem é o único animal que ri e é rindo que mostra o animal que é”. A
lista de escritores que abordaram em algum momento de sua obra este recorte
temático é infindável, pois a literatura sempre refletiu essa relação, seja
para metaforizar e pensar o próprio Homem, desde os textos fundadores das
grandes religiões e as fábulas, seja para pensar e tentar entender o novo, como
fizeram os Bestiários da Idade Média e os livros de viagem do período dos
Descobrimentos do Novo Mundo, seja no que chamamos de mundo contemporâneo, com
suas metamorfoses kafkianas.
O
que é irracional, afinal? Aquele que não possui subjetividade? Ou algo que
nossa racionalidade ainda não alcança? Essa é apenas uma das questões levantada
pela nossa relação com tudo que está vivo na Terra, desde a mais “nano” forma
de vida até o próprio planeta, em última instância.
Por
isso e pelo prazer da leitura, junto com
seus autores os Bichos de Letras saem das gavetas.
tem
vinte e três patas
ou quase
por onde ele passa
nascem
palavras
e frases
com frases
se
fazem asas
palavras
o
vento leve
o bicho alfabeto
passa
fica o que não se escreve
Paulo Leminski,em Melhores
Poemas, seleção de Fred Góes e Álvaro Marins, Global Editora.
GRACILIANO RAMOS E A CACHORRA BALEIA
GRACILIANO RAMOS E A CACHORRA BALEIA
Vidas Secas é uma das principais obras de
Graciliano Ramos. Inicialmente seria uma reunião de contos, que acabaram
enfeixados no romance. E um deles é o capítulo sobre a cachorra Baleia. O
próprio Graciliano conversa com sua mulher, Heloísa Ramos, numa carta de 7 de
maio de 1937 (um ano antes da publicação de Vidas Secas), sobre o texto.
“Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como
você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que
há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando
acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. (…)
No fundo todos somos como a minha cachorra Baleia e esperamos preás. É a
quarta história feita aqui na pensão. Nenhuma delas tem movimento, há
indivíduos parados. Tento saber o que eles têm por dentro. Quando se trata de
bípedes, nem por isso, embora certos bípedes sejam ocos; mas estudar o
interior duma cachorra é realmente uma dificuldade quase tão grande quanto
sondar o espírito dum literato alagoano. Referindo-me a animais de dois
pés, jogo com as mãos deles, com os ouvidos, com os olhos. Agora é diferente.
O mundo exterior revela-se a minha Baleia por intermédio do olfato, e eu sou
um bicho de péssimo faro. Enfim parece que o conto está bom, você há de
vê-lo qualquer dia no jornal.”
Graciliano Ramos, em Cartas, Editora Record.
OS ANIMAIS QUE A NOITE TRAZ
Uma conversa entre Augusto dos Anjos e Drummond.
O MORCEGO
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Augusto dos Anjos, em 100 Poemas Essencias da
Língua Portuguesa, Editora Leitura.
A BRUXA
Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida ao meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!Ainda há pouco um ruído
anunciou vida ao meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
E nem precisava tanto…
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e clama.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e clama.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.
Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética,
selecionada pelo autor, Companhia das Letras.
TRÊS GALOS POÉTICOS
E UMA GALINHA TODA PROSA
“Tecendo a manhã”, “Galo Galo” e “O
Galo e o Dia” nos trazem muitos galos, nos textos de João Cabral, Ferreira
Gullar e Cacaso. E surge também, nas palavras de Clarice Lispector, “uma
galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.” Galos
individuais e coletivos, galos pesando sua arquitetura ou arquitetando seu
pensamento, sua voz, galos que se transformam em canção ou em simples almoço. De que falam todos?
De seu próprio grito? Do que ele – grito – faz surgir? Serão parentes do
elefante que Drummond constrói?
TECENDO A
MANHÃ
1
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele
precisará sempre de outros galos.
De
um que apanhe esse grito que ele
e
o lance a outro; de um outro galo
que
apanhe o grito que um galo antes
e
o lance a outro; e de outros galos
que
com muitos outros galos se cruzem
os
fios de sol de seus gritos de galo,
para
que a manhã, desde uma teia tênue,
se
vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se
erguendo tenda, onde entrem todos,
se
entretendendo para todos, no toldo
(a
manhã) que plana livre de armação.
A
manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que,
tecido, se eleva por si: luz balão.
O galo
no saguão quieto.
Galo galo
de alarmante crista,
guerreiro, medieval.
De córneo bico e
esporões, armado contra a morte,
passeia.
Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada dentro do silêncio
— que faço entre coisas?
— de que me defendo?
Anda
no saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.
Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?
Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito se elabora ?
Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?
Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso
pescoço donde o canto rubro escoa
Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo subsistem ao grito.
Vê-se: o canto é inútil.
O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!
Outro grito cresce
agora no sigilo de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento
Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.
Ferreira Gullar, em Toda Poesia, Editora Civilização Brasileira.
Na manhã da Sta. Marina
não é o galo que canta:
Acorda o dia tão cedo,
com tanta flor na garganta,
que ele dia se incumbe
daquilo que o galo esquece:
o dia canta no terreiro
enquanto o galo amanhece.
Na Sta. Marina o dia
também cisca seu sustento:
Agora o sol nasce no galo
de fora, nunca por dentro.
Nasce o sol bem desenhado
onde se havia por crista.
O dia capaz de esporas,
aurora que não se arrisca.
Na Sta. Marina é dia
não é o galo que canta:
Acorda o dia tão cedo,
com tanta flor na garganta,
que ele dia se incumbe
daquilo que o galo esquece:
o dia canta no terreiro
enquanto o galo amanhece.
Na Sta. Marina o dia
também cisca seu sustento:
Agora o sol nasce no galo
de fora, nunca por dentro.
Nasce o sol bem desenhado
onde se havia por crista.
O dia capaz de esporas,
aurora que não se arrisca.
Na Sta. Marina é dia
quando o dia
ainda cisca
ou quando a
crista do galo
passa o mundo
em revista.
Cacaso, em Lero-lero,
7Letras e Cosac & Naify.
Clarice Lispector
Era
uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi
pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e,
em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou
— o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho,
de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno
deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência
e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se
da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar,
vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha:
em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia
com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a
telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta
mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a
tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido.
E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha
no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na
fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros
com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão
livre.
Estúpida,
tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas
suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se
poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo
crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo
uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal,
numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre
gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa
através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda
tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que
aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez
fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia
uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando,
abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava
e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo.
Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu
desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
—
Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
Todos
correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando
seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era
nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a
mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento
qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal
decidiu-se com certa brusquidão:
— Se
você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
— Eu
também! - jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente
da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A
menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida
para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a
obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa.
Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos,
usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas
quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de
uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o
corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena
cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua
espécie já mecanizado.
Uma
vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se
recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos
enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar,
ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a
expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à
luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no
começo dos séculos.
Até
que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
Clarice
Lispector, em Os
Cem Melhores Contos Brasileiros do Século.
Seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva.
ATRAVESSANDO O INFERNO
No meio do
caminho de sua vida, o poeta Dante atravessou o Inferno e o Purgatório para
chegar ao Céu e rever sua amada Beatriz. No meio do caminho de sua vida, ele escreveu
o poema fundador da língua italiana, A Divina Comédia. Ciceroneado pelo poeta
Virgílio, ele começa sua aventura percorrendo os nove círculos do Inferno, onde
encontra os pecadores em seus suplícios e as feras que habitam aquelas
profundezas.
CANTO XVII
Enquanto
Virgílio fala com Gerion, para convencer essa horrível fera a levá-los ao fundo
do abismo, Dante se aproxima das almas dos violentos contra a arte. Dante
reconhece alguns deles. A cada um pende do peito uma bolsa na qual são
desenhadas as armas da sua família. Volta depois o Poeta para o lugar onde está
Virgílio, que assentado já sobre o dorso de Gerion, põe-no diante de si, e
assim descem ao oitavo círculo.
“EIS
a fera, que a horrenda cauda enresta,
Que arneses, montes, muros atravessa
E com seu bafo impuro o mundo empesta!”
Assim Virgílio a me falar começa.
Para acercar-se logo lhe acenava
Ao marmóreo anteparo que ali cessa.
Da fraude o vulto imundo aproximava!
A cabeça avançou e o torpe busto,
Porém pendente a cauda lhe ficava.
A cara assomos tinha de homem justo,
Tanto era o parecer beni’no e brando!
No mais serpe, movia horror e susto.
Grandes, hirsutos braços dilatando,
Alçava peito, ilhais, dorso malhados,
Mil rodelas e nós se entrelaçando.
Mais cores nos estofos recamados
Tártaros, Turcos nunca misturaram,
Nem Aracne em tecidos variegados.
Como os batéis, que à praia se amarram,
No mar a popa têm, a proa em terra;
E, como em regiões, que se deparam
Sob o voraz Tudesco, a fazer guerra
Embosca-se o castor: assim se via
O monstro à orla, que as areias cerra.
No ar a extensa cauda revolvia;
E a venenosa ponta bipartida,
Do escorpião qual dardo, se erigia
Que arneses, montes, muros atravessa
E com seu bafo impuro o mundo empesta!”
Assim Virgílio a me falar começa.
Para acercar-se logo lhe acenava
Ao marmóreo anteparo que ali cessa.
Da fraude o vulto imundo aproximava!
A cabeça avançou e o torpe busto,
Porém pendente a cauda lhe ficava.
A cara assomos tinha de homem justo,
Tanto era o parecer beni’no e brando!
No mais serpe, movia horror e susto.
Grandes, hirsutos braços dilatando,
Alçava peito, ilhais, dorso malhados,
Mil rodelas e nós se entrelaçando.
Mais cores nos estofos recamados
Tártaros, Turcos nunca misturaram,
Nem Aracne em tecidos variegados.
Como os batéis, que à praia se amarram,
No mar a popa têm, a proa em terra;
E, como em regiões, que se deparam
Sob o voraz Tudesco, a fazer guerra
Embosca-se o castor: assim se via
O monstro à orla, que as areias cerra.
No ar a extensa cauda revolvia;
E a venenosa ponta bipartida,
Do escorpião qual dardo, se erigia
Dante Alighieri, em A Divina Comédia, tradução
de José Pedro Xavier Pinheiro. Ilustrações de Gustave Doré. Versão para eBook: eBooksBrasil.org.
BESTIÁRIOS
DE ONTEM, DE HOJE E, QUEM SABE?, DE AMANHÃ
O LIVRO
DOS SERES IMAGINÁRIOS
“Não
esqueçamos o Goofus Bird, pássaro que constrói o ninho ao contrário e voa para
trás, porque não lhe importa aonde vai, mas sim onde esteve.”
Borges
Borges
São cinco... o
quê? Bichos? Seres? Monstros? Como Borges batizou sua obra de O Livro dos Seres Imaginários, vamos
chamá-los aqui de Animaginários.
ANIMAIS DOS ESPELHOS
Num dos
volumes das Cartas Edificantes e Curiosas que apareceram em Paris
durante a primeira metade do século XVIII, o Pe. Zallinger, da Companhia de
Jesus, planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Cantão; num
levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente
que ninguém havia tocado, mas que muitos alegam ter visto no fundo dos
espelhos. O Pe. Zallinger morreu em 1736 e o trabalho iniciado por sua pena
ficou inacabado; cento e cinquenta anos depois, Herbert Allen Giles assumiu a
tarefa interrompida.
Segundo Giles,
a crença no Peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época
legenderária do Imperador Amarelo. Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o
mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os
seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o
humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente
do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de sangrentas
batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os
invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como
numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de
sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto,
livrar-se-ão dessa mágica letargia.
O primeiro a
despertar será o Peixe. No fundo do espelho, perceberemos uma linha muito tênue
e a cor dessa linha não parecerá com nenhuma outra. Depois, irão despertando as
outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos imitar.
Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas.
Junto às criaturas dos espelhos combaterão as criaturas da água.
No Yunnan não
se fala do Peixe e sim do Tigre do Espelho. Outros acreditam que antes da
invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas.
OS ANJOS DE SWEDENBORG
A fama de
Bahamut chegou aos desertos da Arábia, onde os homens alteraram e valorizaram a
sua imagem. De hipopótamo ou elefante fizeram-no peixe que se mantém sobre a
água sem fundo e sobre o peixe imaginaram um touro e sobre o touro uma montanha
feita de rubis e sobre a montanha um anjo e sobre o anjo seis infernos e sobre
os infernos a terra e sobre a terra sete céus. Podemos ler numa lenda recolhida
por Lane:
"Deus
criou a terra, mas a terra não tinha apoio e assim sob a terra criou um anjo.
Mas o anjo não tinha apoio e assim sob os pés do anjo criou um penhasco feito
de rubis. Mas o penhasco não tinha apoio e assim sobre o penhasco criou um
touro com quatro mil olhos, orelhas, narizes, bocas, línguas e pés. Mas o touro
não tinha apoio e assim sob o touro criou um peixe chamado "Bahamut",
e sob o peixe pôs água, e sob a água pôs escuridão, e a ciência humana não vê
para lá desse ponto."
Outros
declaram que a terra tem a sua origem na água; a água no penhasco; o penhasco
na cerviz do touro; o touro num leito de areia; a areia em Bahamut; Bahamut num
vento sufocante; o vento sufocante numa neblina. A base da neblina é
desconhecida.
Tão imenso
e tão resplandecente é Bahamut que os olhos humanos não suportam a sua visão.
Todos os mares da terra, postos numa das suas fossas nasais, seriam como um
grão de mostarda em metade do deserto. Na 496ª noite do livro d' As Mil e
Uma Noites refere-se que a Isa Gesus) foi concedido ver Bahamut e
que, dada essa mercê, rolou pelo chão e levou três dias a recuperar o
conhecimento. Acrescente-se que sob o desaforado peixe há um mar e sob o mar um
abismo de ar, e sob o ar o fogo, e sob o fogo uma serpente que se chama
"Falak", em cuja boca estão os infernos.
A ficção
do penhasco sobre o touro e do touro sobre Bahamut e de Bahamut sobre qualquer
outra coisa parece ilustrar a prova cronológica de que Deus existe, com que se
argumenta que toda a cause requer uma causa anterior e assim se proclama a
necessidade de afirmar uma causa primeira, para não proceder até ao infinito.
Existem na
Terra, e sempre existiram, trinta e seis homens rectos, cuja missão é
justificar o mundo perante Deus. São os Lamed Wufniks. Não se conhecem entre si
e são muito pobres. Se um homem chega a saber que é um Lamed Wufnik morre
imediatamente e existe outro, numa outra região do planeta, que ocupa o seu
lugar. Constituem, sem o suspeitar, os secretos pilares do universo. Se não
fosse por eles, Deus aniquilaria o género humano. São os nossos salvadores e
não o sabem.
Esta mística crença dos judeus foi
exposta por Max Brod.
A antiga origem pode encontrar-se no
capítulo dezoito do Génesis,
onde o Senhor declara que não destruirá a cidade de Sodoma, se nela houver dez
homens justos.
Os Árabes
têm um personagem semelhante, os Kutb.
AS LÂMIAS
Segundo os
clássicos latinos e gregos, as Lâmias habitavam em África. Da cintura para cima
a sua forma era a de uma bela mulher; mais em baixo a de uma serpente. Alguns
definiram-nas como feiticeiras; outros como monstros malignos. Não tinham a
faculdade de falar, mas o seu assobiar era melodioso. Atraíam os viajantes nos
desertos para depois os devorarem. A sua remota origem era divina; resultavam
de um dos muitos amores de Zeus. Na parte da obra The Anatomy of Melancholy
(1621) que trata da paixão do amor,
Robert Burton narra a história de uma Lâmia que tinha
assumido a forma humana e seduziu um jovem filósofo "não menos bonito do que
ela". Levou-o ao seu palácio, que ficava na cidade de Corinto. Convidado
para a boda, o mago Apolónio de Tíanos chamou-a pelo seu nome e de imediato
desapareceram a Lâmia e o palácio. Pouco antes de morrer, John Keats
(1795-1821) inspirou-se no relato de Burton para compor o seu poema.
Jorge
Luis Borges, em O Livro dos
Seres Imaginários. Escrito em colaboração com Margarita Guerrero. Edição portuguesa
publicada pela Editorial Teorema. Há no Brasil a edição publicada pela
Companhia das Letras, em tradução de Heloísa Jahn.
HISTÓRIA DA
PROVÍNCIA DE SANTA CRUZ
Um dos primeiros livros de viagem a descrever nossas terras e a
sua gente digna de pouco crédito e a estabelecer as verdadeiras verdades da
história e da arte de contar.
CAPÍTULO IX
DO MONSTRO MARINHO QUE SE MATOU NA
CAPITANIA DE SÃO VICENTE, ANO 1564.
Foi
causa tão nova e tão desusada aos olhos humanos a semelhança daquele fero e
espantoso monstro marinho que nesta Província se matou no ano de 1564, que
ainda que per muitas partes do mundo se tenha noticia dele, não deixarei todavia
de a dar aqui outra vez de novo, relatando por extenso tudo o que acerca disto
passou; porque na verdade a maior parte dos retratos ou quase todos em que querem
mostrar a semelhança de seu horrendo aspecto, andam errados, e alem disso,
conta-se o sucesso de sua morte por diferentes maneiras, sendo a verdade uma só
a qual é a seguinte:
Na
Capitania de São Vicente sendo já alta noite a horas em que todos começavam de
se entregar ao sono, acertou de sair fora de casa uma Índia escrava do capitão;
a qual lançando os olhos a uma várzea que está pegada com o mar, e com a
povoação da mesma Capitania, viu andar nela este monstro, movendo-se de uma
parte para outra com passos e meneios desusados, e dando alguns urros de quando
em quando tão feios, que como pasmada e quase fora de si se veio ao filho do
mesmo capitão, cujo nome era Baltazar Ferreira, e lhe deu conta do que vira parecendo-lhe
que era alguma visão diabólica; mas como ele fosse não menos sisudo que
esforçado, e esta gente da terra seja digna de pouco credito não lho deu logo
muito às suas palavras, e deixando-se estar na cama, a tornou outra vez a mandar
fora dizendo-lhe que se afirmasse bem no que era. E obedecendo a Índia a seu
mandado, foi; e tornou mais espantada; afirmando-lhe e repetindo-lhe uma vez e
outra que andava ali uma cousa tão feia, que não podia ser se não o demônio. Então
se levantou ele muito depressa e lançou mão a uma espada que tinha junto de si
com a qual botou somente em camisa pela porta fora, tendo para si (quando
muito) que seria algum tigre ou outro animal da terra conhecido com a vista do
qual se desenganasse do que a Índia lhe queria persuadir, e pondo os olhos naquela
parte que ela lhe assinalou viu confusamente o vulto do monstro ao longo da
praia, sem poder divisar o que era, por causa da noite lho impedir, e o monstro
tão bem ser cousa não vista e fora do parecer de todos os outros animais. E cegando-se
um pouco mais a ele, para que melhor se podesse ajudar da vista, foi sentido do
mesmo monstro: o qual em levantando a cabeça, tanto que o viu começou de
caminhar para o mar donde viera. Nisto conheceu o mancebo que era aquilo cousa
do mar e antes que nele se metesse, acudiu com muita presteza a tomar-lhe a
dianteira, e vendo o monstro que ele lhe embargava o caminho, levantou-se
direito para cima como um homem ficando sobre as barbatanas do rabo, e estando
assim a par com ele, deu-lhe uma estocada pela barriga, e dando-lha no mesmo
instante se desviou para uma parte com tanta velocidade, que não pôde o monstro
leva-lo debaixo de si: porem não pouco afrontado, porque o grande torno de
sangue que saiu da ferida lhe deu no rosto com tanta força que quase ficou sem
nenhuma vista: e tanto que o monstro se lançou em terra deixa o caminho que
levava e assim ferido urrando com a boca aberta sem nenhum medo, remeteu a ele,
e indo para o tragar a unhas, e a dentes, deu-lhe na cabeça uma cotilada mui
grande, com a qual ficou já mui débil, e deixando sua vã porfia tornou então a
caminhar outra vez para o mar. Neste tempo acudiram alguns escravos aos gritos
da Índia que estava em vela: e cegando a ele, o tomaram todos já quase morto e
dali o levaram á povoação onde esteve o dia seguinte á vista de toda a gente da
terra.
E com
este mancebo se haver mostrado neste caso tão animoso como se mostrou, e ser
tido na terra por muito esforçado saiu todavia desta batalha tão sem alento e com a visão deste medonho animal
ficou tão perturbado e suspenso, que perguntando-lhe o pai, que era o que lhe
havia sucedido não lhe pôde responder, e assim como assombrado sem falar cousa
alguma per um grande espaço. O retrato deste monstro, é este que no fim do presente
capitulo se mostra, tirado pelo natural. Era quinze palmos de comprido e
semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas mui grandes como
bigodes. Os Índios da terra lhe chamam em sua língua Hipupiàra que quer dizer demônio
d'água. Alguns como este se viram já nestas partes, mas acham-se raramente. E
assim tão bem deve de haver outros muitos monstros de diversos pareceres, que
no abismo desse largo e espantoso mar se escondem, de não menos estranheza e admiração; e
tudo se pode crer, por difícil que pareça: porque os segredos da natureza não
foram revelados todos ao homem, para que com razão possa negar, e ter por
impossível as cousas que não viu nem de que nunca teve noticia.
Hans Staden foi, sem dúvida, o escritor mais apreciado pelos povos
dessas novas terras de cá. Representou na literatura o que o metonímico Bispo
Sardinha simbolizou na Fé e na Deglutição.
CAPÍTULO XXXII
SERWOY (SARUÊ),
TIGRES, LEÕES, CAPIVARAS E LAGARTOS
Há também uma
espécie de caça a que se chamam Serwoy (gambá), deo tamanho de um gato branco,
de pele parda, também cinzento e tem rabo como o gato. Quando pare, pare um ou
seis filhos e tem uma fenda no ventre de perto de palmo e meio de comprido. Por
dentro da fenda há mais uma pele, pois que o ventre não lhe é aberto e por
dentro estão as tetas. Por onde quer que vá, leva consigo os filhos dentro do
saco, entre as duas peles. Muitas vezes ajudei a apanhá-la e lhe tirei os
filhos da bolsa.
Há também uma
espécie de leão, a que chamam Leoparda, isto é, Leão Pardo, e outros muitos
animais singulares.
Há um animal
chamado Cazizuare, que vive em terra e também na água. Alimenta-se da tábua que
se encontra nas águas doces. Quando se amedronta foge para o fundo d’água. São
maiores do que um cordeiro e têm a cabeça parecida com a da lebre, porém maior
e as orelhas curtas. A cauda é pequena e as pernas são um pouco altas. Correm
muito em terra, de uma água para outra. Têm o pelo pardo escuro, três unhas em
cada pé e a carne tem o gosto da de porco.
Também há uma
espécie de grandes lagartos na água e
em terra; estes são bons para se comer.
Hans Staden, em Viagem ao Brasil, Martin Claret.
DUAS FÁBULAS E DOIS SERES IMAGINADOS
O escritor Wilson Bueno é autor de Mar Paraguayo,
Manuel de Zoofilia, Amar-te a Ti Nem Sei Com que Carícias, O Copista de Kafka,
Cachorros do Céu e alguns outros livros. A surpresa e a criação estão sempre
presentes em seus textos.
O Ganso recebeu pela quarta ou quinta vez a visita do Pato. Lá vinha ele, de novo, com aquele papo de Pato pachola.
- Seo Ganso,
por que o senhor não entra de vez para a Ordem dos Patos, já que ganso não
passa de um pato disfarçado?... E nós estamos precisando de sócios. Dezenas de
marrecos já aderiram...
- Não, seo
Pato. Ganso sou e ganso morrerei. Honro o ganso meu pai e a gansa minha mãe,
que não eram, nenhum deles, patos nem marrecos, mas gansos, seo Pato.
- Besteira.
Pato, ganso, marreco, são tudo a mesma coisa. Que diferença temos um do outro?
Que diferença? Me diga.
- Uma baita
diferença, seo Pato. Aqui na aldeia, ao menos, ninguém come ganso. Agora pato e
marreco, todo mundo sabe, são um baita prato.
Grasnando
muito o Ganso voltou ao seu bando enquanto o Pato, dessa vez, corria, com cinco
marrecos atrás dele, da senhora sua dona, armada de enorme faca de degolar
pato. Ou marreco, se acharem melhor e mais tenro...
Num trecho
do caminho, as duas cobras se encontraram.
- Oi, Cobra,
tudo bem? – cumprimentou a primeira cobra, que parecia a mais simpática.
- Tudo bem,
Cobra – respondeu meio secamente a cobra que não parecia nem um pouco
simpática.
- Mas por
que este ar casmurro, Cobra? – perguntou a primeira cobra.
- Não me
sinto casmurra, Cobra. Vivo apenas o sentimento, sincero, de que sou uma cobra.
- E cobra
tem sentimento? – retrucou a cobra que, de tão afável, nem parecia uma cobra.
Só que, num
bote certeiro, esta, a Sweet Snake, nhóct!!!, cravou as presas, as duas, na
jugular da outra cobra, que no afã enfezado de se mostrar cobra, esquecera de
que conversava com uma cobra de verdade.
Wilson Bueno, em Cachorros do Céu, Editora
Planeta.
OS NÁCARES
Estes pequeninos monstros vibram em
exclusivo na ausência de luz.
Inteiramente nacarados, são do
tamanho de um punho fechado de homem e agitam-se, na sombra, estrepitosos e
muito leves.
Há registros que dão os nácares, de
par em par, saltitantes e inverossímeis, pululando os cantos das casas
senhoriais ou dos velhos apartamentos.
O escritor Jorge Luis Borges,
zoólatra profissional, confidencia que, já inteiramente cego, certa tarde em
Maipú, chegou a ver nitidamente um casal de nácar entre o pé de uma mesa e a
base de uma poltrona.
Mexiam-se, invisíveis aos olhos, -
cheios de luz – dos que enxergavam e, segundo Borges, nunca jamais poderiam
supor que os testemunhassem em sua ingenuidade escondida, os olhos leitosos de
um poeta cego, às quinze para as seis de um demorado crepúsculo em Buenos
Aires.
O que comove nos guapés é o tamanho:
micro-cães menores do que um camundongo doméstico, são em tudo idênticos aos
jaguaras que povoam as malocas de pulga e uivo.
Intensos, mínimos, replicantes,
latem muito, principalmente quando em fuga, um latido agudo e aflitivo feito
agulhas a crivarem vosso tímpano.
Quem nos dá ciência dos guapés são
os índios kaxuianas, do Alto Amazonas, descrevendo-os como pequenos monstros
traiçoeiros capazes de penetrar a vagina das mulheres grávidas, se dormem
desprevenidas, e aí então motivando um desastre de consequências imprevisíveis
– sobretudo com a furiosa devoração do feto baixo esganiçadas mordidas.
Segundo alguns sertanistas, não há,
contudo, espetáculo mais desconcertante do que flagrar, no oco de velhas
árvores ou em buracos cavados próximo à barranca dos rios, uma ninhada de
guapés jovens – os microscópicos filhotes agitando os rabinhos, enroscando-se e
mordendo uns aos outros ou disputando, das cadelas, as tetículas inverossímeis.
Ao pressentirem movimentação
estranha, ganem e uivam, em fuga, desaparecendo sob o mato rasteiro, como se
nunca, em tempo algum houvessem existido.
Wilson Bueno, em Jardim Zoológico, Iluminuras.
ALICE E
SEU SER (IMAGINÁRIO?)
O
poema “Jaguadarte” é de Lewis Carroll e está em seu livro Alice Através do
Espelho. A tradução dos versos foi feita por Augusto de Campos e está incluída
em “Aventuras de Alice”, lançado pela Summus Editorial. A obra, em tradução do
poeta Sebastião Uchoa Leite, que morreu em novembro de 2003, reúne Alice no
País das Maravilhas, Alice Através do Espelho e outros textos de Carroll, além
de fotos suas.
A
partir deste poema épico, satírico, Carroll desenvolve a teoria da
palavra-valise, em que dois ou mais vocábulos formam uma nova palavra. Esta é a
chave para a leitura do texto (uma delas, pelo menos) e um recurso que seguirá
sendo usado pelos poetas.
Não
sei se o livro ainda é encontrável nas melhores livrarias do ramo, mas
certamente os sebos da cidade ainda guardam edições para quem se interessar.
Vale a pena. Esse é mais um grande trabalho de Uchoa Leite. Ele afirma na
introdução que escreveu: “Que os dois
livros mais celebrados de Carroll, Alice in wonderland e Through the
loooking-glass, sejam livros para crianças é verdade muito relativa. Na época,
talvez. Hoje, mais de um século depois que foram publicados, são cada vez mais
leituras para adultos. Também se foi compreendendo que não são apenas
caprichosas fantasias. Pois não há nada por trás dos enredos e personagens
desses dois livros que não esteja rigorosamente referenciado, seja através de
dados da própria existência de Carroll, seja através de inúmeras alusões
literárias, científicas, lógico-matemáticas, etc”
Era
briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.
“Foge
do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra! Bocarra que urra!Foge da Ave Felfel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassurra!”
Ele
arrancou sua espada vorpal
E foi atrás do inimigo do HomundoNa árvore Tamtam ele afinal
Parou um dia sonilundo.
E
enquanto estava em sussustada sesta
Chegou o Jaguadarte, olho de fogo, Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso louco!
Um,
dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para trás, para
diante!Cabeça fere, corta e, fera morta,
Ei-lo que volta, galunfante.
“Pois
então tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Ele se ria jubileu.
Era
briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.
Lewis
Carroll, em Aventuras de Alice, tradução de Sebastião Uchoa Leite, Summus
Editorial.
Graças a uma Bolsa da
Fundação Freud, tenho viajado frequentemente a um mundo de sonhos e pesadelos, através
do uso de alucinógenos de última geração, e assim venho desenvolvendo a
pesquisa que resulta neste Indicionário.
Não sei quem terminará primeiro, se ele ou eu.
[Do turco yıldızhei –
substantivo inumerável ]
Deus terminara sua tarefa. Estava tudo
feito no Universo. Podia descansar. Mas alguma coisa ainda pulsava e Ele então
realizou sua derradeira criação. As Esterílias. Seria uma ave que podia viver
nas águas profundas dos oceanos? Ou um peixe que botava ovos em ninhos nos
galhos de árvores ribeirinhas? Preferiu não definir e achou aquilo divertido.
Pela primeira vez desde que começara a criar tudo, Deus sorriu. Para vê-las
zanzando de lá pra cá, deu-lhes também o brilho das estrelas. E passou a tarde
do sexto dia admirando as esterílias em seu balé. E naquela noite, Deus
deitou-se ainda com o sorriso. Como eram belas as esterílias. E com esse
pensamento, Deus não conseguiu dormir. (Talvez fossem belas demais.) E antes que
o sol iluminasse o sétimo dia, Deus deu a eternidade às esterílias. Por isso,
elas não se reproduzem e só se encontram, em bandos, para tentar se matar. Mas
todas as suas tentativas são tão infrutíferas quanto elas próprias.
GATURAMO DE VENEZA
[Do lat. Catturamu + do vêneto Venexia]
Ludicemne, a deusa das brincadeiras,
queria alegrar seu filho Lusco-Fusco e trouxe para os jardins de seu palácio
todos os bichos de estimação da criança. Mas nada alegrava Lusco-Fusco. A deusa
já não sabia o que fazer e seu único filho então lhe pediu para criar um novo
animalzinho, misturando o tei-tei das gôndolas, um pássaro admirado por seu
canto e suas cores, com o gato do Adriático. Ludicemne fez a vontade do filho,
criando assim o Gaturamo de Veneza, um ser metade pássaro, metade gato, que
sente uma incontrolável compulsão para se ferir o tempo todo. Lusco-Fusco
adorou seu novo brinquedo e trancou-o numa gaiola de prata. Mas, como sempre,
meia hora depois já estava reclamando daquele bicho burro, que não fazia mais
nada além de cravar em si seu próprio bico, e foi embora dali, batendo o pé por
mais diversão. Antes de ir atrás dos novos desejos do filho, Ludicemne teve
pena do gaturamo de Veneza e abriu a porta da gaiola. O bicho voou rápido, foi
atrás de Lusco-Fusco e furou seus dois olhos. Desde então, todos os gaturamos
de Veneza vivem se escondendo pelas matas e só voam à noite, fugindo da
vingança de Ludicemne.
R.u.c.
Ave da família dos lacreídeos, de
coloração branca, com o ventre avermelhado. Originária do Gólgota, durante a
crucificação era a ave pousada no ombro do Bom Ladrão. Mas ele a enxotou e
ninguém chegou a reparar no Lacre de Bico. Por ter um lacre no bico, não se
alimenta de nada e é a única ave canora que não canta. Seus silêncio e jejum
foram atribuídos a castigos dos deuses. Há quem diga ainda que os lacres de
bico são reencarnações de almas humanas impuras que não falam para não se
distraírem de sua única tarefa: arrepender-se dos males feitos na vida
humana. “Os deuses não se preocupam com
os pássaros. E nós sabemos muito bem porque não cantamos” – pensariam os lacres
de bico, mas seguem com os bicos lacrados.
PINGO DE GATO
[Do lat.
vulg. pendico + do lat. cattu]
Expressão substantiva
aquosa
Suor desses felinos, vertido durante a
caça aos ratos. Quando esses animais copulam ainda suados dão origem aos
gatos-pingados, que acompanham a morte e sempre rondam os lugares aonde ela vai
recolher suas vítimas. Aquele que consegue enxergar um gato-pingado pode
escapar da morte.
[Do ar. zéfiro + o lat.pop.
cornu.]
S. m.
1. Espécie de rinoceronte que vive na
África Setentrional Sonhada. Não possui chifres nem corpo e a boca que não tem
emite sons semelhantes às três últimas vogais de nosso alfabeto. Para que ele
se reproduza é preciso que alguém sonhe com a África Setentrional tempo
suficiente para que o zerocórnio percorra as densas florestas da região, encontre
uma fêmea no cio e então copule.
2. Substância do chifre desse animal, que
seria mágica e teria ressuscitado Lázaro.
DOIS MANUEIS E SEUS
BICHOS
Manoel
de Barros é um poeta muito ligado à natureza ou a um tipo de natureza, a das
ninharias sem exuberância, onde ele exerce seu extrativismo de linguagem e
constrói seu fazer poético. E Manuel Bandeira, através dos animais, pensa o
Homem como espécie e a si próprio como Homem.
1. BANDEIRA
O BICHOVi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
ANDORINHA
Andorinha la fora esta dizendo:
- "Passei o dia à toa, á toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida á toa, á toa...
PENSÃO FAMILIAR
Jardim da pensãozinha burguesa.
Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
o sol acaba de crestar as boninas que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem.
E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
- É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.
MADRIGAL TÃO ENGRAÇADINHO
Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha
vida, inclusive o porquinho-da-índia que
me deram quando eu tinha seis anos.
Manuel Bandeira, em
Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.
2. MANOEL DE
BARROS
SE ACHANTE
Era um caranguejo muito se achante.
Ele se achava idôneo para flor.
Passava por nossa casa
Sem nem olhar de lado.
Parece que estava montado num coche
de princesa.
Ia bem devagar
Conforme o protocolo
A fim de receber aplausos.
Muito achante demais.
Nem parou para comer goiaba.
(Acho que quem anda de coche não come goiaba.)
Ia como se fosse tomar posse de deputado.
Mas o coche quebrou
E o caranguejo voltou a ser idôneo para mangue.
Era um caranguejo muito se achante.
Ele se achava idôneo para flor.
Passava por nossa casa
Sem nem olhar de lado.
Parece que estava montado num coche
de princesa.
Ia bem devagar
Conforme o protocolo
A fim de receber aplausos.
Muito achante demais.
Nem parou para comer goiaba.
(Acho que quem anda de coche não come goiaba.)
Ia como se fosse tomar posse de deputado.
Mas o coche quebrou
E o caranguejo voltou a ser idôneo para mangue.
Manoel de Barros em Poemas Rupestres, Editora Record.
Borboleta morre verde em seu olho sujo de pedra.
O sapo é muito equilibrado pelas árvores.
Dorme perante pólens e floresce nos detritos.
Apalpa bulbos com seus dourados olhos.
Como ovo de orvalho. Sabe que a lua
Tem gosto de vagalume para as margaridas.
Precisa muito de sempre
Passear no chão. Aprende antro e estrelas.
(tem dia o sapo anda estrelamente!)
Moscas
são muito predominadas por ele.O sapo é muito equilibrado pelas árvores.
Dorme perante pólens e floresce nos detritos.
Apalpa bulbos com seus dourados olhos.
Como ovo de orvalho. Sabe que a lua
Tem gosto de vagalume para as margaridas.
Precisa muito de sempre
Passear no chão. Aprende antro e estrelas.
(tem dia o sapo anda estrelamente!)
Em seu couro a manhã é sanguínea.
Espera as falenas escorado em caules de pedra.
Limboso é seu entardecer.
Tem cios verdejantes em sua estagnação.
No rosto a memória de um peixe.
De lama cria raízes e engole fiapos de sol.
Euclides
da Cunha mapeou o sertão. Guimarães Rosa definiu o sertão, quantas dezenas de
vezes? Sertão é dentro da gente? É o fora que a gente engole e sem saber
vomita? São sempre plurais, os sertões – ser tão. E ressurgem em duas
sinfonias, de Euclides e de Rosa.
Segue a boiada vagarosamente, à cadência
daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado, desgraciosamente, na sela, o
vaqueiro, que a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros
prováveis: o que toca ao patrão, e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai
dali mesmo contando as peças destinadas à feira; considera, aqui, um velho boi
que ele conhece há dez anos e nunca levou à feira, mercê de uma amizade antiga;
além um mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é
preciso arrancar; mais longe, mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo
apenas guiado pela compressão dos outros, o garrote bravo, que subjugou,
pegando-o, de saia, de derrubando-o, na caatinga; acolá,
soberbo, caminhando folgado, porque os demais o respeitam, abrindo-lhe em roda um
claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso, inveja de toda a
redondeza, cujas armas rígidas e curtas relembram, estaladas, rombas e cheias
de terra, guampaços formidáveis, em luta com os rivais possantes, nos logradouros;
além, para toda a banda, outras peças, conhecidas todas, revivendo-lhe todas,
uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da sua
existência primitiva e simples. E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar
merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os com o refrão
monótono:
Ê cou mansão...
Ê cou... ê cão!
ecoando saudoso nos descampados
mudos...
Estouro de boiada
De súbito,
porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares
de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea. Entrebatem-se, enredam-se,
traçam-se e alteiam-se fisgando vivamente o espaço, e inclinam-se, e
embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura...
A boiada arranca. Nada explica, às
vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos campeiros. Origina-o
o incidente mais trivial — o súbito vôo rasteiro de uma araquã ou a corrida de
um mocó esquivo. Uma rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa
subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único,
assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-se
embolados, em vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente
tardos e morosos.
E lá se
vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores
dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as
baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e esfarelando as pedras,
torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído
soturno e longo de trovão longínquo... Destroem-se em minutos, feito montes de
leivas, antigas roças penosamente cultivadas; extinguem-se, em lameiros
revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se, apisoados, os pousos; ou esvaziam-se,
deixando-os os habitantes espavoridos, fugindo para os lados, evitando o rumo
retilíneo em que se despenha a “arribada”, — milhares de corpos que são um
corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico,
precipitado na carreira douda. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou
arremessando-se impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela
avalanche viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e
cerros, e galhadas — enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos,
estirado sobre o lombilho, preso às crinas do cavalo — o vaqueiro!
Já se lhe
têm associado, em caminho, os companheiros, que escutaram, de longe, o estouro
da boiada. Renova-se a lida: novos esforços, novos arremessos, novas façanhas,
novos riscos e novos perigos, a despender, a atravessar e a vencer, até que o
boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão
pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado. Reaviam-no
à vereda da fazenda; e ressoam, de novo, pelos ermos, entristecedoramente, as
notas melancólicas do aboiado.
Euclides
da Cunha, em Os Sertões, Ministério Da Cultura, Fundação
Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, PDF.
O BURRINHO PEDRÊS
- Eh, boi!... Eh, boi...
E, ao
trompear intercadente do berrante, já ecoam as canções:
Cordisburgo
um conto e cem.
Mas
as Lages não têm preço,
Porque
lá mora o meu bem.”
- Mais
depressa, é para esmoer? ! - ralha o Major.
-
Boiada boa!...
Galhudos,
gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros,
cambraias, chamurros, churriados, corombos, cometos, bocalvos, borralhos,
chumbados, chitados, vareiros, silveiros., .. E os tocos da testa do mocho
macheado, e as armas antigas do boi comalão.. .
- P'ra
trás, boi-vaca!
-
Repele Juca... Viu a brabeza dos olhos? Vai com sangue no cangote...
- Só
ruindade e mais ruindade, de em-desde o redemunho da testa até na volta da pá!
Este eu não vou perder de olho, que ele é boi espirrador...
Apuram
o passo, por entre campinas ricas, onde pastam ou ruminam outros mil e mais
bois. Mas os vaqueiros não esmorecem nos eias e cantigas, porque a boiada ainda
tem passagens inquietantes: alarga-se e recomprime-se, sem motivo, e mesmo
dentro da multidão movediça há giros, estranhos, que não os deslocamentos
normais do gado em marcha - quando sempre alguns disputam a colocação na
vanguarda, outros procuram o centro, e muitos se deixam levar, empurrados,
sobrenadando quase, com os mais fracos rolando para os lados e os mais pesados
tardando para trás, no coice da procissão.
- Eh,
boi lá!... Eh-ê-ê-eh, boi!... Tou! Tou! Tou...
As
ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as
caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas,
estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos,
com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...
Cada coração um jeito
de mostrar o seu amor.”
Cantiga de amor doído
não carece ter rompante...”
-
Tchou!... Tchou!... Eh, booôi!...
E,
agora, pronta de todo está ela ficando, cá que cada vaqueiro pega o balanço de
busto, sem-querer e imitativo, e que os cavalos gingam bovinamente. Devagar,
mal percebido, vão sugados todos pelo rebanho trovejante - pata a pata, casco a
casco, soca soca, fasta vento, rola e trota, cabisbaixos, mexe lama, pela
estrada, chifres no ar...
A
boiada vai, como um navio.
- Põe p'ra lá, marroeiro!
- Investiu?
-
Quase...
Coisa que
ele é acabanado e de cupim, que nem zebu…
- Fosse
meu, não ia para o corte. Bonito mesmo, desempenado. Até me lembro do
Calundu....
- Qual
esse, Raymundão?
- O
Calundu? Pois era um zebu daquela idade. O maior que eu já vi.
-
Guzerá?
-
Ach'que.
- Baio,
como o Paulatão?
- Cor
de céu que vem chuva. Berrava rouco, de fazer respeito...
- Todo
zebu se impõe.
-
Aquele mais. Que marruaz!
- Por
que?
-
Parecia manso e custava para se enchouriçar. Mas, um dia, brigou com o
reprodutor dos Oliveiras, zebu também, dos pintados. Ferraram luta sem parar,
por bem duas horas, e o Calundu derrubou o outro, quase morto, no
desbarrancado.
- E
para se lidar?
- Não
era qualquer vaqueiro chegado de fora, não. Tinha mania: não batia em gente
a-pé, mas gostava de correr atrás de cavaleiro. De longe, ele já sabia que
vinha algum, porque encostava um ouvido no chão, para escutar.
Olha,
que vamos entrar no cerradão. Tento aí, p'ra eles não se espalharem para os
lados!
- Abre
a guia! Afrouxa o coice! - grita Juca Bananeira, transmitindo o comando de
Sebastião.
Os
costaneiros se afastam, e aboiam prolongado:
-
E-ê-ê-ê-ê, boi...
Enquanto
os da frente incitam o marche-marche dos quadrúpedes:
- Eh,
boi-vaca! Tchou! Tchou! Tchou!... Ei! Ei!...
E o
rebanho se estira e alonga, reduzindo as fileiras, como soldados a passarem, em
movimento, de uma formação de grande fundo para coluna de pelotão.
- Mundo
velho, ventania! - brada Juca Bananeira, sustando o cavalo para apreciar a
desfilada dos bois taroleiros, correndo de aspas altas: o débito fluido das
patas, o turbilhão de ângulos, o balouço dos perfis em quina, e o jogo veloz
dos omoplatas oblíquos.
-
Arreda, bruto, mamolengo!
Um veio
de lá, jogado de empuxe, e baqueou meio ajoelhado, justo-justo esbarrando no
cavalo de Raymundão.
Tropeiam,
agora, socornando e arfando, mas os alcantis encapelados, eriçados de pontas,
guardam uma fidelidade de ritmos, escorrendo estrada avante. E o chapadão
atroa, à percussão debulhada dos mil oitocentos e quarenta cascos de unha
dupla.
Sopra
sempre o guia no seu corno, porém, e os outros insistem no canto arrastado, tão
plangente, que os bois vão cadenciando por ele o tropel.
Guimarães Rosa, em Sagarana, Editora Nova
Fronteira.
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LIVROS DE CESAR CARDOSO
THAT’S
ALL, FOLKS!
Meu e mail: cesarcar@uninet.com.br
©Cesar Cardoso, 2013. Todos os direitos e esquerdos reservados. Que
os piolhos infectados de 18 mil camelos infestem as partes pudendas de quem
publicar algum texto daqui sem avisar nem dar meu crédito.