segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

BICHOS DE LETRAS,
SAIAM DAS GAVETAS!
- primeira parte

 
               Desde a Bíblia até Carmem Miranda na marchinha carnavalesca, todos sabem porque nosso querido Adão perdeu o juízo: “por causa da serpente tentadora, o nosso mestre te expulsou do Paraíso”.
               A relação dos Homens com os Animais sempre foi bem complicada, para dizer o mínimo, em diferentes épocas e em culturas distintas. Hoje, em tempos de extinção e consciência ecológica, é esperado que novas visões possam surgir sobre o  polêmico reinado humano neste planeta e o destino de seus “súditos”.

               Animais somos todos. Segundo o Barão de Itararé, “o  Homem é o único animal que ri e é rindo que mostra o animal que é”. A lista de escritores que abordaram em algum momento de sua obra este recorte temático é infindável, pois a literatura sempre refletiu essa relação, seja para metaforizar e pensar o próprio Homem, desde os textos fundadores das grandes religiões e as fábulas, seja para pensar e tentar entender o novo, como fizeram os Bestiários da Idade Média e os livros de viagem do período dos Descobrimentos do Novo Mundo, seja no que chamamos de mundo contemporâneo, com suas metamorfoses kafkianas.

               O que é irracional, afinal? Aquele que não possui subjetividade? Ou algo que nossa racionalidade ainda não alcança? Essa é apenas uma das questões levantada pela nossa relação com tudo que está vivo na Terra, desde a mais “nano” forma de vida até o próprio planeta, em última instância.

               Por isso e pelo prazer da leitura,  junto com seus autores os Bichos de Letras saem das gavetas.

 

 o bicho alfabeto

               tem vinte e três patas

                  ou quase

 

                  por onde ele passa

               nascem palavras

                  e frases

 

                  com frases

               se fazem asas

                  palavras

               o vento leve

 

                  o bicho alfabeto

               passa

                  fica o que não se escreve

Paulo Leminski,em Melhores Poemas, seleção de Fred Góes e Álvaro Marins, Global Editora.   
GRACILIANO RAMOS E A CACHORRA BALEIA

Vidas Secas é uma das principais obras de Graciliano Ramos. Inicialmente seria uma reunião de contos, que acabaram enfeixados no romance. E um deles é o capítulo sobre a cachorra Baleia. O próprio Graciliano conversa com sua mulher, Heloísa Ramos, numa carta de 7 de maio de 1937 (um ano antes da publicação de Vidas Secas), sobre o texto.


          “Escrevi um conto sobre a morte duma cachor­ra, um troço difícil, como você vê: procurei adi­vinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. (…) No fundo todos somos como a minha cachorra Baleia e esperamos preás. É a quarta história feita aqui na pensão. Nenhuma delas tem movimento, há indivíduos parados. Tento saber o que eles têm por dentro. Quando se trata de bípedes, nem por isso, em­bora certos bípedes sejam ocos; mas estudar o interior duma cachorra é realmente uma dificul­dade quase tão grande quanto sondar o espírito dum literato alagoano. Referindo-me a animais de dois pés, jogo com as mãos deles, com os ouvidos, com os olhos. Agora é diferente. O mundo exterior revela-se a minha Baleia por intermédio do olfato, e eu sou um bicho de pés­simo faro. Enfim parece que o conto está bom, você há de vê-lo qualquer dia no jornal.”

Graciliano Ramos, em Cartas, Editora Record.

                       

BALEIA

                                                                                                                                    

A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que advinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:

- Vão bulir com a Baleia?

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-­se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.

Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.  

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:  

- Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão.  Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.

Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou um pedaço da cabeça.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando as barúnas e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:

-Ecô! ecô!

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se e a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama chorando alto. Fabiano recolheu-se.  

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-­se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-­se.  

Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito.  Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.

Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.

Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.

Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

 
Graciliano Ramos, em Vidas Secas, Editora Record.
 
 

OS ANIMAIS QUE A NOITE TRAZ

Uma conversa entre Augusto dos Anjos e Drummond.

 

O MORCEGO


 




Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer.  Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Augusto dos Anjos, em 100 Poemas Essencias da Língua Portuguesa, Editora Leitura.

 

A BRUXA

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida ao meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto…
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?


E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e clama.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.

Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética, selecionada pelo autor, Companhia das Letras.

TRÊS GALOS POÉTICOS
E UMA GALINHA TODA PROSA
“Tecendo a manhã”, “Galo Galo” e “O Galo e o Dia” nos trazem muitos galos, nos textos de João Cabral, Ferreira Gullar e Cacaso. E surge também, nas palavras de Clarice Lispector,  uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.” Galos individuais e coletivos, galos pesando sua arquitetura ou arquitetando seu pensamento, sua voz, galos que se transformam em canção ou em simples almoço. De que falam todos? De seu próprio grito? Do que ele – grito – faz surgir? Serão parentes do elefante que Drummond constrói?


TECENDO A MANHÃ

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.


2

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

 
João Cabral de Melo Neto, em Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Fronteira.  

 
GALO GALO

O galo
no saguão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.

De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio
— que faço entre coisas?
— de que me defendo?

                        Anda
no saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.

Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?

Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora ?
Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa

Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
               não seria tão rouco
e sangrento

                     Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.

Ferreira Gullar, em Toda Poesia, Editora Civilização Brasileira.

 
O GALO E O DIA

Na manhã da Sta. Marina
não é o galo que canta:
Acorda o dia tão cedo,
com tanta flor na garganta,

que ele dia se incumbe
daquilo que o galo esquece:
o dia canta no terreiro
enquanto o galo amanhece.

Na Sta. Marina o dia
também cisca seu sustento:
Agora o sol nasce no galo
de fora, nunca por dentro.

Nasce o sol bem desenhado
onde se havia por crista.
O dia capaz de esporas,
aurora que não se arrisca.

Na Sta. Marina é dia

quando o dia ainda cisca

ou quando a crista do galo

passa o mundo em revista.

Cacaso, em Lero-lero,  7Letras e Cosac & Naify.

 
UMA GALINHA
Clarice Lispector

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! - jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
Clarice Lispector, em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva.

ATRAVESSANDO O INFERNO

No meio do caminho de sua vida, o poeta Dante atravessou o Inferno e o Purgatório para chegar ao Céu e rever sua amada Beatriz. No meio do caminho de sua vida, ele escreveu o poema fundador da língua italiana, A Divina Comédia. Ciceroneado pelo poeta Virgílio, ele começa sua aventura percorrendo os nove círculos do Inferno, onde encontra os pecadores em seus suplícios e as feras que habitam aquelas profundezas.

CANTO XVII


 Enquanto Virgílio fala com Gerion, para convencer essa horrível fera a levá-los ao fundo do abismo, Dante se aproxima das almas dos violentos contra a arte. Dante reconhece alguns deles. A cada um pende do peito uma bolsa na qual são desenhadas as armas da sua família. Volta depois o Poeta para o lugar onde está Virgílio, que assentado já sobre o dorso de Gerion, põe-no diante de si, e assim descem ao oitavo círculo.

 

“EIS a fera, que a horrenda cauda enresta,
Que arneses, montes, muros atravessa
E com seu bafo impuro o mundo empesta!”

Assim Virgílio a me falar começa.
Para acercar-se logo lhe acenava
Ao marmóreo anteparo que ali cessa.

Da fraude o vulto imundo aproximava!
A cabeça avançou e o torpe busto,
Porém pendente a cauda lhe ficava.

A cara assomos tinha de homem justo,
Tanto era o parecer beni’no e brando!
No mais serpe, movia horror e susto.

Grandes, hirsutos braços dilatando,
Alçava peito, ilhais, dorso malhados,
Mil rodelas e nós se entrelaçando.

Mais cores nos estofos recamados
Tártaros, Turcos nunca misturaram,
Nem Aracne em tecidos variegados.

Como os batéis, que à praia se amarram,
No mar a popa têm, a proa em terra;
E, como em regiões, que se deparam

Sob o voraz Tudesco, a fazer guerra
Embosca-se o castor: assim se via
O monstro à orla, que as areias cerra.

No ar a extensa cauda revolvia;
E a venenosa ponta bipartida,
Do escorpião qual dardo, se erigia
Dante Alighieri, em A Divina Comédia, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro. Ilustrações de Gustave Doré. Versão para eBook: eBooksBrasil.org.
BESTIÁRIOS DE ONTEM, DE HOJE
E, QUEM SABE?, DE AMANHÃ

O LIVRO DOS SERES IMAGINÁRIOS

“Não esqueçamos o Goofus Bird, pássaro que constrói o ninho ao contrário e voa para trás, porque não lhe importa aonde vai, mas sim onde esteve.”
Borges
 
São cinco... o quê? Bichos? Seres? Monstros? Como Borges batizou sua obra de O Livro dos Seres Imaginários, vamos chamá-los aqui de Animaginários.

ANIMAIS DOS ESPELHOS

Num dos volumes das Cartas Edificantes e Curiosas que apareceram em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o Pe. Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Cantão; num levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos alegam ter visto no fundo dos espelhos. O Pe. Zallinger morreu em 1736 e o trabalho iniciado por sua pena ficou inacabado; cento e cinquenta anos depois, Herbert Allen Giles assumiu a tarefa interrompida.

Segundo Giles, a crença no Peixe é parte de um mito mais amplo, que se refere à época legenderária do Imperador Amarelo. Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, porém ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia.

O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho, perceberemos uma linha muito tênue e a cor dessa linha não parecerá com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas. Junto às criaturas dos espelhos combaterão as criaturas da água.

No Yunnan não se fala do Peixe e sim do Tigre do Espelho. Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos espelhos o rumor das armas.

 
OS ANJOS DE SWEDENBORG

            Durante os últimos vinte e cinco anos da sua vida de estudo, o eminente homem de ciência e filósofo Emanuel Swedenborg (1688-1722) fixou residência em Londres. Como os ingleses são taciturnos, ganho o hábito quotidiano de falar com demónios e anjos. O Senhor permitiu-lhe vivistar as regiões ultraterrenas e partir com os seus habitantes. Cristo tinha dito que as almas, para entrarem no Céu, devem ser justas; Swedenborg acrescentou que devem ser inteligentes e depois Blake estipularia que fossem artísticas. Os Anjos de Swedenborg são as almas que escolheram o Céu. Podem prescindir das palavras; basta que um Anjo pense noutro para o ter junto dele. Duas pessoas que se amaram na Terra formam um único Anjo. O seu mundo está regido pelo amor; cada Anjo é um Céu. A sua forma é a de um ser humano perfeito; a do Céu é assim mesmo. Os Anjos podem olhar para o Norte, o Sul, o Leste e o Oeste; sempre hão-de olhar Deus cara a cara. São acima de tudo teólogos; o seu maior prazer é a prece e a discussão de problemas espirituais. As coisas da Terra são símbolos das coisas do Céu. O Sol corresponde à divindade. No Céu não existe o tempo; as aparências das coisas mudam segundo os estados de ânimo. Os trajes dos Anjos resplandecem segundo a sua inteligência. No Céu os ricos continuam a ser mais ricos do que os pobres, por estarem já habituados à riqueza. No Céu, os objectos, os móveis e as cidades são mais concretas e mais complexas que os da Terra; as cores mais variadas e  claras. Os Anjos de origem inglesa tendem para a política; os judeus para o comércio de jóias; os Alemães trazem livros que consultam antes de qualquer resposta. Como os Muçulmanos estão acostumados à veneração de Maomé, Deus concedeu-lhes um Anjo que simula ser o Profeta. Os pobres de espírito e os ascetas estão excluídos dos prazeres do Paraíso porque os não compreenderiam.

 
BAHAMUT

A fama de Bahamut chegou aos desertos da Arábia, onde os homens alteraram e valorizaram a sua imagem. De hipopótamo ou elefante fizeram-no peixe que se mantém sobre a água sem fundo e sobre o peixe imaginaram um touro e sobre o touro uma montanha feita de rubis e sobre a montanha um anjo e sobre o anjo seis infernos e sobre os infernos a terra e sobre a terra sete céus. Podemos ler numa lenda recolhida por Lane:

"Deus criou a terra, mas a terra não tinha apoio e assim sob a terra criou um anjo. Mas o anjo não tinha apoio e assim sob os pés do anjo criou um penhasco feito de rubis. Mas o penhasco não tinha apoio e assim sobre o penhasco criou um touro com quatro mil olhos, orelhas, narizes, bocas, línguas e pés. Mas o touro não tinha apoio e assim sob o touro criou um peixe chamado "Bahamut", e sob o peixe pôs água, e sob a água pôs escuridão, e a ciência humana não vê para lá desse ponto."

Outros declaram que a terra tem a sua origem na água; a água no penhasco; o penhasco na cerviz do touro; o touro num leito de areia; a areia em Bahamut; Bahamut num vento sufocante; o vento sufocante numa neblina. A base da neblina é desconhecida.

Tão imenso e tão resplandecente é Bahamut que os olhos humanos não suportam a sua visão. Todos os mares da terra, postos numa das suas fossas nasais, seriam como um grão de mostarda em metade do deserto. Na 496ª noite do livro d' As Mil e Uma Noites  refere-se que a Isa Gesus) foi concedido ver Bahamut e que, dada essa mercê, rolou pelo chão e levou três dias a recuperar o conhecimento. Acrescente-se que sob o desaforado peixe há um mar e sob o mar um abismo de ar, e sob o ar o fogo, e sob o fogo uma serpente que se chama "Falak", em cuja boca estão os infernos.

A ficção do penhasco sobre o touro e do touro sobre Bahamut e de Bahamut sobre qualquer outra coisa parece ilustrar a prova cronológica de que Deus existe, com que se argumenta que toda a cause requer uma causa anterior e assim se proclama a necessidade de afirmar uma causa primeira, para não proceder até ao infinito.

 
OS LAMED WUFNIKS

Existem na Terra, e sempre existiram, trinta e seis homens rectos, cuja missão é justificar o mundo perante Deus. São os Lamed Wufniks. Não se conhecem entre si e são muito pobres. Se um homem chega a saber que é um Lamed Wufnik morre imediatamente e existe outro, numa outra região do planeta, que ocupa o seu lugar. Constituem, sem o suspeitar, os secretos pilares do universo. Se não fosse por eles, Deus aniquilaria o género humano. São os nossos salvadores e não o sabem.

            Esta mística crença dos judeus foi exposta por Max Brod.

            A antiga origem pode encontrar-se no capítulo dezoito do Génesis, onde o Senhor declara que não destruirá a cidade de Sodoma, se nela houver dez homens justos.

Os Árabes têm um personagem semelhante, os Kutb.


AS LÂMIAS

Segundo os clássicos latinos e gregos, as Lâmias habitavam em África. Da cintura para cima a sua forma era a de uma bela mulher; mais em baixo a de uma serpente. Alguns definiram-nas como feiticeiras; outros como monstros malignos. Não tinham a faculdade de falar, mas o seu assobiar era melodioso. Atraíam os viajantes nos desertos para depois os devorarem. A sua remota origem era divina; resultavam de um dos muitos amores de Zeus. Na parte da obra The Anatomy of Melancholy (1621) que trata da paixão do amor, Robert Burton narra a história de uma Lâmia que tinha assumido a forma humana e seduziu um jovem filósofo "não menos bonito do que ela". Levou-o ao seu palácio, que ficava na cidade de Corinto. Convidado para a boda, o mago Apolónio de Tíanos chamou-a pelo seu nome e de imediato desapareceram a Lâmia e o palácio. Pouco antes de morrer, John Keats (1795-1821) inspirou-se no relato de Burton para compor o seu poema.

Jorge Luis Borges, em O Livro dos Seres Imaginários. Escrito em colaboração com Margarita Guerrero. Edição portuguesa publicada pela Editorial Teorema. Há no Brasil a edição publicada pela Companhia das Letras, em tradução de Heloísa Jahn.

 
HISTÓRIA DA PROVÍNCIA DE SANTA CRUZ

Um dos primeiros livros de viagem a descrever nossas terras e a sua gente digna de pouco crédito e a estabelecer as verdadeiras verdades da história e da arte de contar.   

CAPÍTULO IX

DO MONSTRO MARINHO QUE SE MATOU NA CAPITANIA DE SÃO VICENTE, ANO 1564.

             Foi causa tão nova e tão desusada aos olhos humanos a semelhança daquele fero e espantoso monstro marinho que nesta Província se matou no ano de 1564, que ainda que per muitas partes do mundo se tenha noticia dele, não deixarei todavia de a dar aqui outra vez de novo, relatando por extenso tudo o que acerca disto passou; porque na verdade a maior parte dos retratos ou quase todos em que querem mostrar a semelhança de seu horrendo aspecto, andam errados, e alem disso, conta-se o sucesso de sua morte por diferentes maneiras, sendo a verdade uma só a qual é a seguinte:

Na Capitania de São Vicente sendo já alta noite a horas em que todos começavam de se entregar ao sono, acertou de sair fora de casa uma Índia escrava do capitão; a qual lançando os olhos a uma várzea que está pegada com o mar, e com a povoação da mesma Capitania, viu andar nela este monstro, movendo-se de uma parte para outra com passos e meneios desusados, e dando alguns urros de quando em quando tão feios, que como pasmada e quase fora de si se veio ao filho do mesmo capitão, cujo nome era Baltazar Ferreira, e lhe deu conta do que vira parecendo-lhe que era alguma visão diabólica; mas como ele fosse não menos sisudo que esforçado, e esta gente da terra seja digna de pouco credito não lho deu logo muito às suas palavras, e deixando-se estar na cama, a tornou outra vez a mandar fora dizendo-lhe que se afirmasse bem no que era. E obedecendo a Índia a seu mandado, foi; e tornou mais espantada; afirmando-lhe e repetindo-lhe uma vez e outra que andava ali uma cousa tão feia, que não podia ser se não o demônio. Então se levantou ele muito depressa e lançou mão a uma espada que tinha junto de si com a qual botou somente em camisa pela porta fora, tendo para si (quando muito) que seria algum tigre ou outro animal da terra conhecido com a vista do qual se desenganasse do que a Índia lhe queria persuadir, e pondo os olhos naquela parte que ela lhe assinalou viu confusamente o vulto do monstro ao longo da praia, sem poder divisar o que era, por causa da noite lho impedir, e o monstro tão bem ser cousa não vista e fora do parecer de todos os outros animais. E cegando-se um pouco mais a ele, para que melhor se podesse ajudar da vista, foi sentido do mesmo monstro: o qual em levantando a cabeça, tanto que o viu começou de caminhar para o mar donde viera. Nisto conheceu o mancebo que era aquilo cousa do mar e antes que nele se metesse, acudiu com muita presteza a tomar-lhe a dianteira, e vendo o monstro que ele lhe embargava o caminho, levantou-se direito para cima como um homem ficando sobre as barbatanas do rabo, e estando assim a par com ele, deu-lhe uma estocada pela barriga, e dando-lha no mesmo instante se desviou para uma parte com tanta velocidade, que não pôde o monstro leva-lo debaixo de si: porem não pouco afrontado, porque o grande torno de sangue que saiu da ferida lhe deu no rosto com tanta força que quase ficou sem nenhuma vista: e tanto que o monstro se lançou em terra deixa o caminho que levava e assim ferido urrando com a boca aberta sem nenhum medo, remeteu a ele, e indo para o tragar a unhas, e a dentes, deu-lhe na cabeça uma cotilada mui grande, com a qual ficou já mui débil, e deixando sua vã porfia tornou então a caminhar outra vez para o mar. Neste tempo acudiram alguns escravos aos gritos da Índia que estava em vela: e cegando a ele, o tomaram todos já quase morto e dali o levaram á povoação onde esteve o dia seguinte á vista de toda a gente da terra.

E com este mancebo se haver mostrado neste caso tão animoso como se mostrou, e ser tido na terra por muito esforçado saiu todavia desta batalha tão sem  alento e com a visão deste medonho animal ficou tão perturbado e suspenso, que perguntando-lhe o pai, que era o que lhe havia sucedido não lhe pôde responder, e assim como assombrado sem falar cousa alguma per um grande espaço. O retrato deste monstro, é este que no fim do presente capitulo se mostra, tirado pelo natural. Era quinze palmos de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes. Os Índios da terra lhe chamam em sua língua Hipupiàra que quer dizer demônio d'água. Alguns como este se viram já nestas partes, mas acham-se raramente. E assim tão bem deve de haver outros muitos monstros de diversos pareceres, que no abismo desse largo e espantoso mar se escondem, de não menos estranheza e admiração; e tudo se pode crer, por difícil que pareça: porque os segredos da natureza não foram revelados todos ao homem, para que com razão possa negar, e ter por impossível as cousas que não viu nem de que nunca teve noticia.

 Gandavo em História da Província de Santa Cruz.Para download: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/

 
NOSSA COMIDA ESCREVENDO

Hans Staden foi, sem dúvida, o escritor mais apreciado pelos povos dessas novas terras de cá. Representou na literatura o que o metonímico Bispo Sardinha simbolizou na Fé e na Deglutição.

CAPÍTULO XXXII

SERWOY (SARUÊ), TIGRES, LEÕES, CAPIVARAS E LAGARTOS

            Há também uma espécie de caça a que se chamam Serwoy (gambá), deo tamanho de um gato branco, de pele parda, também cinzento e tem rabo como o gato. Quando pare, pare um ou seis filhos e tem uma fenda no ventre de perto de palmo e meio de comprido. Por dentro da fenda há mais uma pele, pois que o ventre não lhe é aberto e por dentro estão as tetas. Por onde quer que vá, leva consigo os filhos dentro do saco, entre as duas peles. Muitas vezes ajudei a apanhá-la e lhe tirei os filhos da bolsa.

            Há também uma espécie de leão, a que chamam Leoparda, isto é, Leão Pardo, e outros muitos animais singulares.

            Há um animal chamado Cazizuare, que vive em terra e também na água. Alimenta-se da tábua que se encontra nas águas doces. Quando se amedronta foge para o fundo d’água. São maiores do que um cordeiro e têm a cabeça parecida com a da lebre, porém maior e as orelhas curtas. A cauda é pequena e as pernas são um pouco altas. Correm muito em terra, de uma água para outra. Têm o pelo pardo escuro, três unhas em cada pé e a carne tem o gosto da de porco.

            Também há uma espécie de grandes lagartos na água e em terra; estes são bons para se comer.

Hans Staden, em Viagem ao Brasil, Martin Claret.

 
WILSON BUENO:
DUAS FÁBULAS E DOIS SERES IMAGINADOS

O escritor Wilson Bueno é autor de Mar Paraguayo, Manuel de Zoofilia, Amar-te a Ti Nem Sei Com que Carícias, O Copista de Kafka, Cachorros do Céu e alguns outros livros. A surpresa e a criação estão sempre presentes em seus textos.

 
O GANSO OU A VIDA

            O Ganso recebeu pela quarta ou quinta vez a visita do Pato. Lá vinha ele, de novo, com aquele papo de Pato pachola.

- Seo Ganso, por que o senhor não entra de vez para a Ordem dos Patos, já que ganso não passa de um pato disfarçado?... E nós estamos precisando de sócios. Dezenas de marrecos já aderiram...

- Não, seo Pato. Ganso sou e ganso morrerei. Honro o ganso meu pai e a gansa minha mãe, que não eram, nenhum deles, patos nem marrecos, mas gansos, seo Pato.

- Besteira. Pato, ganso, marreco, são tudo a mesma coisa. Que diferença temos um do outro? Que diferença? Me diga.

- Uma baita diferença, seo Pato. Aqui na aldeia, ao menos, ninguém come ganso. Agora pato e marreco, todo mundo sabe, são um baita prato.

Grasnando muito o Ganso voltou ao seu bando enquanto o Pato, dessa vez, corria, com cinco marrecos atrás dele, da senhora sua dona, armada de enorme faca de degolar pato. Ou marreco, se acharem melhor e mais tenro...

 
COISAS DA VIDA

               Num trecho do caminho, as duas cobras se encontraram.

- Oi, Cobra, tudo bem? – cumprimentou a primeira cobra, que parecia a mais simpática. 

- Tudo bem, Cobra – respondeu meio secamente a cobra que não parecia nem um pouco simpática.

- Mas por que este ar casmurro, Cobra? – perguntou a primeira cobra.

- Não me sinto casmurra, Cobra. Vivo apenas o sentimento, sincero, de que sou uma cobra.

- E cobra tem sentimento? – retrucou a cobra que, de tão afável, nem parecia uma cobra.

Só que, num bote certeiro, esta, a Sweet Snake, nhóct!!!, cravou as presas, as duas, na jugular da outra cobra, que no afã enfezado de se mostrar cobra, esquecera de que conversava com uma cobra de verdade.

Wilson Bueno, em Cachorros do Céu, Editora Planeta. 

 
OS NÁCARES

            Estes pequeninos monstros vibram em exclusivo na ausência de luz.

            Inteiramente nacarados, são do tamanho de um punho fechado de homem e agitam-se, na sombra, estrepitosos e muito leves.

            Há registros que dão os nácares, de par em par, saltitantes e inverossímeis, pululando os cantos das casas senhoriais ou dos velhos apartamentos.

            O escritor Jorge Luis Borges, zoólatra profissional, confidencia que, já inteiramente cego, certa tarde em Maipú, chegou a ver nitidamente um casal de nácar entre o pé de uma mesa e a base de uma poltrona.

            Mexiam-se, invisíveis aos olhos, - cheios de luz – dos que enxergavam e, segundo Borges, nunca jamais poderiam supor que os testemunhassem em sua ingenuidade escondida, os olhos leitosos de um poeta cego, às quinze para as seis de um demorado crepúsculo em Buenos Aires.

 
OS GUAPÉS

             O que comove nos guapés é o tamanho: micro-cães menores do que um camundongo doméstico, são em tudo idênticos aos jaguaras que povoam as malocas de pulga e uivo.

            Intensos, mínimos, replicantes, latem muito, principalmente quando em fuga, um latido agudo e aflitivo feito agulhas a crivarem vosso tímpano.

            Quem nos dá ciência dos guapés são os índios kaxuianas, do Alto Amazonas, descrevendo-os como pequenos monstros traiçoeiros capazes de penetrar a vagina das mulheres grávidas, se dormem desprevenidas, e aí então motivando um desastre de consequências imprevisíveis – sobretudo com a furiosa devoração do feto baixo esganiçadas mordidas.

            Segundo alguns sertanistas, não há, contudo, espetáculo mais desconcertante do que flagrar, no oco de velhas árvores ou em buracos cavados próximo à barranca dos rios, uma ninhada de guapés jovens – os microscópicos filhotes agitando os rabinhos, enroscando-se e mordendo uns aos outros ou disputando, das cadelas, as tetículas inverossímeis.

            Ao pressentirem movimentação estranha, ganem e uivam, em fuga, desaparecendo sob o mato rasteiro, como se nunca, em tempo algum houvessem existido.
 
Wilson Bueno, em Jardim Zoológico, Iluminuras.

 
ALICE E SEU SER (IMAGINÁRIO?)
O poema “Jaguadarte” é de Lewis Carroll e está em seu livro Alice Através do Espelho. A tradução dos versos foi feita por Augusto de Campos e está incluída em “Aventuras de Alice”, lançado pela Summus Editorial. A obra, em tradução do poeta Sebastião Uchoa Leite, que morreu em novembro de 2003, reúne Alice no País das Maravilhas, Alice Através do Espelho e outros textos de Carroll, além de fotos suas.
A partir deste poema épico, satírico, Carroll desenvolve a teoria da palavra-valise, em que dois ou mais vocábulos formam uma nova palavra. Esta é a chave para a leitura do texto (uma delas, pelo menos) e um recurso que seguirá sendo usado pelos poetas. 
Não sei se o livro ainda é encontrável nas melhores livrarias do ramo, mas certamente os sebos da cidade ainda guardam edições para quem se interessar. Vale a pena. Esse é mais um grande trabalho de Uchoa Leite. Ele afirma na introdução que escreveu:  “Que os dois livros mais celebrados de Carroll, Alice in wonderland e Through the loooking-glass, sejam livros para crianças é verdade muito relativa. Na época, talvez. Hoje, mais de um século depois que foram publicados, são cada vez mais leituras para adultos. Também se foi compreendendo que não são apenas caprichosas fantasias. Pois não há nada por trás dos enredos e personagens desses dois livros que não esteja rigorosamente referenciado, seja através de dados da própria existência de Carroll, seja através de inúmeras alusões literárias, científicas, lógico-matemáticas, etc”

 JAGUADARTE

Era briluz. As lesmolisas touvas
            Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
            E os momirratos davam grilvos.

“Foge do Jaguadarte, o que não morre!
            Garra que agarra! Bocarra que urra!
Foge da Ave Felfel, meu filho, e corre
            Do frumioso Babassurra!”

Ele arrancou sua espada vorpal
            E foi atrás do inimigo do Homundo
Na árvore Tamtam ele afinal
            Parou um dia sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta
            Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta,
            E borbulia um riso louco!

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta
            Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fere, corta e, fera morta,
            Ei-lo que volta, galunfante.

“Pois então tu mataste o Jaguadarte!
            Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
            Ele se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolisas touvas
            Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
              E os momirratos davam grilvos.

             
Lewis Carroll, em Aventuras de Alice, tradução de Sebastião Uchoa Leite, Summus Editorial. 

 
PEQUENO INDICIONÁRIO DE NUTILIDADES

Graças a uma Bolsa da Fundação Freud, tenho viajado frequentemente a um mundo de sonhos e pesadelos, através do uso de alucinógenos de última geração, e assim venho desenvolvendo a pesquisa que resulta neste Indicionário.  Não sei quem terminará primeiro, se ele ou eu.

 
ESTERÍLIA 

[Do turco yıldızhei – substantivo inumerável ]

Deus terminara sua tarefa. Estava tudo feito no Universo. Podia descansar. Mas alguma coisa ainda pulsava e Ele então realizou sua derradeira criação. As Esterílias. Seria uma ave que podia viver nas águas profundas dos oceanos? Ou um peixe que botava ovos em ninhos nos galhos de árvores ribeirinhas? Preferiu não definir e achou aquilo divertido. Pela primeira vez desde que começara a criar tudo, Deus sorriu. Para vê-las zanzando de lá pra cá, deu-lhes também o brilho das estrelas. E passou a tarde do sexto dia admirando as esterílias em seu balé. E naquela noite, Deus deitou-se ainda com o sorriso. Como eram belas as esterílias. E com esse pensamento, Deus não conseguiu dormir. (Talvez fossem belas demais.) E antes que o sol iluminasse o sétimo dia, Deus deu a eternidade às esterílias. Por isso, elas não se reproduzem e só se encontram, em bandos, para tentar se matar. Mas todas as suas tentativas são tão infrutíferas quanto elas próprias.

GATURAMO DE VENEZA

[Do lat. Catturamu + do vêneto Venexia] 

Ludicemne, a deusa das brincadeiras, queria alegrar seu filho Lusco-Fusco e trouxe para os jardins de seu palácio todos os bichos de estimação da criança. Mas nada alegrava Lusco-Fusco. A deusa já não sabia o que fazer e seu único filho então lhe pediu para criar um novo animalzinho, misturando o tei-tei das gôndolas, um pássaro admirado por seu canto e suas cores, com o gato do Adriático. Ludicemne fez a vontade do filho, criando assim o Gaturamo de Veneza, um ser metade pássaro, metade gato, que sente uma incontrolável compulsão para se ferir o tempo todo. Lusco-Fusco adorou seu novo brinquedo e trancou-o numa gaiola de prata. Mas, como sempre, meia hora depois já estava reclamando daquele bicho burro, que não fazia mais nada além de cravar em si seu próprio bico, e foi embora dali, batendo o pé por mais diversão. Antes de ir atrás dos novos desejos do filho, Ludicemne teve pena do gaturamo de Veneza e abriu a porta da gaiola. O bicho voou rápido, foi atrás de Lusco-Fusco e furou seus dois olhos. Desde então, todos os gaturamos de Veneza vivem se escondendo pelas matas e só voam à noite, fugindo da vingança de Ludicemne.

 
LACRE DE BICO

R.u.c.

Ave da família dos lacreídeos, de coloração branca, com o ventre avermelhado. Originária do Gólgota, durante a crucificação era a ave pousada no ombro do Bom Ladrão. Mas ele a enxotou e ninguém chegou a reparar no Lacre de Bico. Por ter um lacre no bico, não se alimenta de nada e é a única ave canora que não canta. Seus silêncio e jejum foram atribuídos a castigos dos deuses. Há quem diga ainda que os lacres de bico são reencarnações de almas humanas impuras que não falam para não se distraírem de sua única tarefa: arrepender-se dos males feitos na vida humana.  “Os deuses não se preocupam com os pássaros. E nós sabemos muito bem porque não cantamos” – pensariam os lacres de bico, mas seguem com os bicos lacrados.
 

PINGO DE GATO

 [Do lat. vulg. pendico + do lat. cattu]

Expressão substantiva aquosa

Suor desses felinos, vertido durante a caça aos ratos. Quando esses animais copulam ainda suados dão origem aos gatos-pingados, que acompanham a morte e sempre rondam os lugares aonde ela vai recolher suas vítimas. Aquele que consegue enxergar um gato-pingado pode escapar da morte.

 
ZEROCÓRNIO

[Do ar. zéfiro + o lat.pop. cornu.]

S. m.

1. Espécie de rinoceronte que vive na África Setentrional Sonhada. Não possui chifres nem corpo e a boca que não tem emite sons semelhantes às três últimas vogais de nosso alfabeto. Para que ele se reproduza é preciso que alguém sonhe com a África Setentrional tempo suficiente para que o zerocórnio percorra as densas florestas da região, encontre uma fêmea no cio e então copule. 

 2.        Substância do chifre desse animal, que seria mágica e teria ressuscitado Lázaro.
DOIS MANUEIS E SEUS BICHOS
Manoel de Barros é um poeta muito ligado à natureza ou a um tipo de natureza, a das ninharias sem exuberância, onde ele exerce seu extrativismo de linguagem e constrói seu fazer poético. E Manuel Bandeira, através dos animais, pensa o Homem como espécie e a si próprio como Homem.

1.    BANDEIRA
O BICHO

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
 
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

ANDORINHA
Andorinha la fora esta dizendo:
- "Passei o dia à toa, á toa!"
 
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida á toa, á toa... 
 

PENSÃO FAMILIAR

Jardim da pensãozinha burguesa. 
Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
o sol acaba de crestar as boninas que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem. 
E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.

Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
- É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.


 
PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

MADRIGAL TÃO ENGRAÇADINHO

Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha
vida, inclusive o porquinho-da-índia que
me deram quando eu tinha seis anos.

                                  

Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.

 

2.    MANOEL DE BARROS

SE ACHANTE

Era um caranguejo muito se achante.
Ele se achava idôneo para flor.
Passava por nossa casa
Sem nem olhar de lado.
Parece que estava montado num coche
de princesa.
Ia bem devagar
Conforme o protocolo
A fim de receber aplausos.
Muito achante demais.
Nem parou para comer goiaba.
(Acho que quem anda de coche não come goiaba.)
Ia como se fosse tomar posse de deputado.
Mas o coche quebrou
E o caranguejo voltou a ser idôneo para mangue.

Manoel de Barros em Poemas Rupestres, Editora Record.

 
X

 

Borboleta morre verde em seu olho sujo de pedra.
O sapo é muito equilibrado pelas árvores.
Dorme perante pólens e floresce nos detritos.
Apalpa bulbos com seus dourados olhos.
Como ovo de orvalho. Sabe que a lua
Tem gosto de vagalume para as margaridas.
Precisa muito de sempre
Passear no chão. Aprende antro e estrelas.
(tem dia o sapo anda estrelamente!)
Moscas são muito predominadas por ele.
Em seu couro a manhã é sanguínea.
Espera as falenas escorado em caules de pedra.
Limboso é seu entardecer.
Tem cios verdejantes em sua estagnação.
No rosto a memória de um peixe.
De lama cria raízes e engole fiapos de sol.

 
Manoel de Barros em Arranjos para Assobio, Editora Civilização Brasileira.
 QUANTOS SERTÕES TEM O SERTÃO?

Euclides da Cunha mapeou o sertão. Guimarães Rosa definiu o sertão, quantas dezenas de vezes? Sertão é dentro da gente? É o fora que a gente engole e sem saber vomita? São sempre plurais, os sertões – ser tão. E ressurgem em duas sinfonias, de Euclides e de Rosa.

 
A arribada

               Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado, desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros prováveis: o que toca ao patrão, e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai dali mesmo contando as peças destinadas à feira; considera, aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à feira, mercê de uma amizade antiga; além um mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais longe, mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela compressão dos outros, o garrote bravo, que subjugou, pegando-o, de saia, de derrubando-o, na caatinga; acolá, soberbo, caminhando folgado, porque os demais o respeitam, abrindo-lhe em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso, inveja de toda a redondeza, cujas armas rígidas e curtas relembram, estaladas, rombas e cheias de terra, guampaços formidáveis, em luta com os rivais possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças, conhecidas todas, revivendo-lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da sua existência primitiva e simples. E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os com o refrão monótono:
Ê cou mansão...
Ê cou... ê cão!

ecoando saudoso nos descampados mudos...


Estouro de boiada

De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea. Entrebatem-se, enredam-se, traçam-se e alteiam-se fisgando vivamente o espaço, e inclinam-se, e embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura...

A boiada arranca. Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos campeiros. Origina-o o incidente mais trivial — o súbito vôo rasteiro de uma araquã ou a corrida de um mocó esquivo. Uma rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único, assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-se embolados, em vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos.

E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo de trovão longínquo... Destroem-se em minutos, feito montes de leivas, antigas roças penosamente cultivadas; extinguem-se, em lameiros revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se, apisoados, os pousos; ou esvaziam-se, deixando-os os habitantes espavoridos, fugindo para os lados, evitando o rumo retilíneo em que se despenha a “arribada”, — milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado na carreira douda. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela avalanche viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros, e galhadas — enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do cavalo — o vaqueiro!

Já se lhe têm associado, em caminho, os companheiros, que escutaram, de longe, o estouro da boiada. Renova-se a lida: novos esforços, novos arremessos, novas façanhas, novos riscos e novos perigos, a despender, a atravessar e a vencer, até que o boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado. Reaviam-no à vereda da fazenda; e ressoam, de novo, pelos ermos, entristecedoramente, as notas melancólicas do aboiado.

Euclides da Cunha, em Os Sertões, Ministério Da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, PDF.

 
 
O BURRINHO PEDRÊS

         Caniço de magro, com um boné de jóquei no crânio, lá vai Francolim, logo atrás do Major.

- Eh, boi!... Eh, boi...

E, ao trompear intercadente do berrante, já ecoam as canções:

 “O Curvelo vale um conto,

Cordisburgo um conto e cem.

Mas as Lages não têm preço,

Porque lá mora o meu bem.”

 Nenhum perigo, por ora, com os dois lados da estrada tapados pelas cercas. Mas o gado gordo, na marcha contraída, se desordena em turbulências. Ainda não abaixaram as cabeças, e o trote é duro, sob vez de aguilhoadas e gritos.

- Mais depressa, é para esmoer? ! - ralha o Major.

- Boiada boa!...

Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cometos, bocalvos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros., .. E os tocos da testa do mocho macheado, e as armas antigas do boi comalão.. .

- P'ra trás, boi-vaca!

- Repele Juca... Viu a brabeza dos olhos? Vai com sangue no cangote...

- Só ruindade e mais ruindade, de em-desde o redemunho da testa até na volta da pá! Este eu não vou perder de olho, que ele é boi espirrador...

Apuram o passo, por entre campinas ricas, onde pastam ou ruminam outros mil e mais bois. Mas os vaqueiros não esmorecem nos eias e cantigas, porque a boiada ainda tem passagens inquietantes: alarga-se e recomprime-se, sem motivo, e mesmo dentro da multidão movediça há giros, estranhos, que não os deslocamentos normais do gado em marcha - quando sempre alguns disputam a colocação na vanguarda, outros procuram o centro, e muitos se deixam levar, empurrados, sobrenadando quase, com os mais fracos rolando para os lados e os mais pesados tardando para trás, no coice da procissão.

- Eh, boi lá!... Eh-ê-ê-eh, boi!... Tou! Tou! Tou...

As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...

 “Um boi preto, um boi pintado,
          cada um tem sua cor.
          Cada coração um jeito
          de mostrar o seu amor.”

 Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...

 “Todo passarinh' do mato
         tem seu pio diferente.
         Cantiga de amor doído
         não carece ter rompante...”

 Pouco a pouco; porém, os rostos se desempanam e os homens tomam gesto de repouso nas selas, satisfeitos. Que de trinta, trezentos ou três mil, só está quase pronta a boiada quando as alimárias se aglutinam em bicho inteiro - centopeia -, mesmo prestes assim para surpresas más.

- Tchou!... Tchou!... Eh, booôi!...

E, agora, pronta de todo está ela ficando, cá que cada vaqueiro pega o balanço de busto, sem-querer e imitativo, e que os cavalos gingam bovinamente. Devagar, mal percebido, vão sugados todos pelo rebanho trovejante - pata a pata, casco a casco, soca soca, fasta vento, rola e trota, cabisbaixos, mexe lama, pela estrada, chifres no ar...

A boiada vai, como um navio.

-  Põe p'ra lá, marroeiro! 

-  Investiu?

- Quase...

Coisa que ele é acabanado e de cupim, que nem zebu…

- Fosse meu, não ia para o corte. Bonito mesmo, desempenado. Até me lembro do Calundu....

- Qual esse, Raymundão?

- O Calundu? Pois era um zebu daquela idade. O maior que eu já vi.

- Guzerá?

- Ach'que.

- Baio, como o Paulatão?

- Cor de céu que vem chuva. Berrava rouco, de fazer respeito...

- Todo zebu se impõe.

- Aquele mais. Que marruaz!

- Por que?

- Parecia manso e custava para se enchouriçar. Mas, um dia, brigou com o reprodutor dos Oliveiras, zebu também, dos pintados. Ferraram luta sem parar, por bem duas horas, e o Calundu derrubou o outro, quase morto, no desbarrancado.

- E para se lidar?

- Não era qualquer vaqueiro chegado de fora, não. Tinha mania: não batia em gente a-pé, mas gostava de correr atrás de cavaleiro. De longe, ele já sabia que vinha algum, porque encostava um ouvido no chão, para escutar.

Olha, que vamos entrar no cerradão. Tento aí, p'ra eles não se espalharem para os lados!

- Abre a guia! Afrouxa o coice! - grita Juca Bananeira, transmitindo o comando de Sebastião.

Os costaneiros se afastam, e aboiam prolongado:

- E-ê-ê-ê-ê, boi...

Enquanto os da frente incitam o marche-marche dos quadrúpedes:

- Eh, boi-vaca! Tchou! Tchou! Tchou!... Ei! Ei!...

E o rebanho se estira e alonga, reduzindo as fileiras, como soldados a passarem, em movimento, de uma formação de grande fundo para coluna de pelotão.

- Mundo velho, ventania! - brada Juca Bananeira, sustando o cavalo para apreciar a desfilada dos bois taroleiros, correndo de aspas altas: o débito fluido das patas, o turbilhão de ângulos, o balouço dos perfis em quina, e o jogo veloz dos omoplatas oblíquos.

- Arreda, bruto, mamolengo!

Um veio de lá, jogado de empuxe, e baqueou meio ajoelhado, justo-justo esbarrando no cavalo de Raymundão.

Tropeiam, agora, socornando e arfando, mas os alcantis encapelados, eriçados de pontas, guardam uma fidelidade de ritmos, escorrendo estrada avante. E o chapadão atroa, à percussão debulhada dos mil oitocentos e quarenta cascos de unha dupla.

Sopra sempre o guia no seu corno, porém, e os outros insistem no canto arrastado, tão plangente, que os bois vão cadenciando por ele o tropel.

 
Guimarães Rosa, em Sagarana, Editora Nova Fronteira.  


 
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