quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

TERRAS QUE INVENTEI

ESSA TERRA ME ESCREVE: ANTÔNIO TORRES

Antonio Torres é autor de grandes livros. Um Cão Uivando Pra Lua, Meu Querido Canibal, Balada da Infância Perdida... Mas possivelmente seu livro mais marcante, com muitas traduções e talvez o que mais venda, é o romance Essa Terra.
Há alguns textos que nos marcam. Nunca me esqueço da primeira vez que li A Metamorfose, de Lobato na infância, da Carta às Icamiabas, em Macunaíma, e tantos outros. Dentre essas experiências, trago a leitura do primeiro capítulo de Essa Terra. No livro, são quatro páginas e meia. E eu nunca me esqueci da beleza árida daquele texto e da porrada que a gente, leitor, leva, no final.
No começo de janeiro, assisti a duas palestras sobre escrever romances na Estação das Letras, no Rio de Janeiro. Um dos palestrantes era Antônio Torres, que falou sobre sua obra e seu ofício de escritor e romancista, a importância do ritmo em seu escrever e várias outras coisas. E ouvindo Torres falar, com uma força semelhante à de seu texto, eu me lembrei de trazer aqui para o PATAVINA’S essas páginas iniciais de Essa Terra.

1

     - Se estiver vivo um dia ele aparece, foi o que eu sempre disse.
     - O que foi que o senhor disse?
     Naquela hora eu podia fazer uma linha reta da minha cabeça até o sol e, como um macaco numa corda, subir por ela até Deus – eu, que nunca tinha precisado saber as horas.
     Era meio-dia e eu sabia que era meio-dia simplesmente porque ia pisando numa sombra do tamanho do meu chapéu, o único sinal de vida na velha praça de sempre, onde ninguém metia a cabeça para não queimar o juízo. Loucos ali só eu e o matuto com seu cavalo suado, que surgiu como uma aparição dentro de uma nuvem de poeira, para deter a minha aventura debaixo da caldeira de Nosso Senhor.
     - Qualquer pessoa deste lugar pode servir de testemunha. Qualquer pessoa com memória na cabeça e vergonha na cara. Eu vivia dizendo: um dia ele vem. Pois não foi que ele veio?
      - O senhor estava com a razão.
     - Ele mudou muito? Espero que ao menos não tenha esquecido o caminho lá de casa. Somos do mesmo sangue.
     - Não se esqueceu, não, tio – respondi, convencido de que estava fazendo um esclarecimento necessário não apenas a um homem, mas a uma população inteira, para quem a volta do meu irmão parecia ter muito mais significado do que quando o dr. Dantas Junior veio anunciar que havíamos entrado no mapa do mundo, graças a seu empenho e à sua palavra de deputado federal bem votado. Foi um dia muito bonito, tão bonito quanto os dias de eleição, embora sem as arruaças, as cervejas e as comidas dos dias de eleição, porque tudo aconteceu de repente, sem aviso prévio. O deputado subiu no palanque feito às pressas em frente do mercado, ergueu seu paletó empoeirado sobre todos nós e disse que o Junco agora era uma cidade, leal e hospitaleira. Agora podíamos mandar no nosso próprio destino, sem ter que dar satisfações ao município de Inhambupe – e foi justamente essa parte do discurso que o povo mais gostou. E no entanto esse dia já está se apagando da nossa lembrança, apesar de nada mais ter acontecido daí por diante.
     Quem não mudou em nada mesmo foi um lugarejo de sopapo, caibro, telha e cal, mas a questão agora é saber se meu irmão ainda se lembra de cada parente que deixou nessas brenhas, um a um, ele que, não tendo herdado um único palmo de terra onde cair morto, um dia pegou um caminhão e caiu no mundo para se transformar, como que por encantamento, num homem belo e rico, com seus dentes de ouro, seu terno folgado e quente de casimira, seus ray-bans, seu rádio de pilha – faladorzinho como um corno – e um relógio que brilha mais do que a luz do dia. Um monumento em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa terra também podia gerar grandes homens - e eu, que nem havia nascido quando ele foi embora, ia ver se acordava o grande homem de duas décadas de sono, porque o grande homem parecia ter voltado apenas para dormir. Levanta, cachorro velho, antes que os morcegos te comam. Acorda, ante que a alma penada do teu tão saudoso avô queira um relatório completo da tua viagem. Anda depressa, que ele está saindo da cova para vir dar um tapa nas tuas costas: - Caboco setenta. Tu vale por setenta deste lugar. – Por que, Padrinho? – Porque tu já conhece quatro estados do mundo, não é, meu fio?
     Eu estava louco para tomar um banho no tanque velho (lá mesmo, onde todos nós vamos morrer afogados) e queria que o meu irmão fosse comigo e estava pensando em arranjar uma jega, a mais fogosa que houvesse, para o famoso Nelo matar a saudade de um velho amor.
     - Diga a ele que ele nasceu ali – meu tio apontou para o lado do curral da matança. – Diga também que eu carreguei ele no meu ombro.
     - Nelo se lembra de tudo e de todos, tio. Nunca vi memória tão boa – insisti -, para não deixar a menor dúvida em seu espírito. E só então ele haveria de permitir que eu continuasse a minha caminhada.
     - Fico muito satisfeito – meu tio sorriu, no seu jeito encabulado de homem sério, e o cavalo me cobriu com outra nuvem.
     A alpercata esmaga minha sombra, enquanto avanço num tempo parado e calado, como se não existisse mais vento no mundo. Talvez fosse um agouro. Alguma coisa ruim, muito ruim, podia estar acontecendo.
     - Nelo – gritei da calçada. – Vem me ensinar como se flutua em cima de um tronco de mulungu. Me disseram que você já foi bom nisso.
     Não ouvi o que ele respondeu, quer dizer, não houve resposta. Não houve e houve. Na roça me falavam de um pássaro mal-assombrado, que vinha perturbar uma moça, toda vez que ela saía ao terreiro, a qualquer hora da noite. Podia ter sido o meu irmão quem acabava de piar no meu ouvido, pelo bico daquele pássaro noturno e invisível, no qual eu nunca acreditei. Atordoado, me apressei e bati na porta e bastou uma única batida para que ela se abrisse – e para que eu fosse o primeiro a ver o pescoço do meu irmão pendurado na corda, no armador da rede.
     - Deixa disso, Nelo – bati com a mão aberta no lado esquerdo do seu rosto e devo ter batido com alguma força, porque sua cabeça virou e caiu para a direita. – Deixa disso, pelo amor de Deus – tornei a dizer, batendo na outra face, e ele se virou de novo e caiu para o outro lado.
     Pronto.
     Eu nunca mais iria querer subir por uma corda até Deus.


(Primeiro capítulo do romance Essa Terra, de Antônio Torres. Editora Record.)

RINHA DE GALINHA

Por Don King
nosso correspondente na Academia Brasileira de Letras e Artes Marciais

Waaal! A poesia é o Ultimate Fight da literatura. E pra mais um duelo do século ( e de quantos séculos precisamos, óh, Cronos!), encaram-se no ringue do PATAVINA’S a Rocha de Itabira, Carlos Drummond de Andrade, o homem que é uma pedra no meio do caminho de seus adversários, e a Navalha Desoriental de Curitiba, Alice Ruiz, a Bela e a Fera numa só mulher... E o pau come na casa de Noca, holly shit!

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética, Editora Record.


DRUMUNDANA

e agora Maria?

o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia

e agora Maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria

Alice Ruiz, em Dois em Um (Prêmio Jabuti de Poesia), Editora Iluminuras.


FLAFLUS DA LITERATURA

VIVA BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS
E SUA LITERATURA!

 
A obra de Bartolomeu Campos de Queirós já é um clássico na literatura brasileira. Bartolomeu tem o poder de encantar gente de tudo que é idade com sua prosa poética. Escritor e educador, ele nasceu em Papagaio, Minas Gerais, em 1944, publicou mais de 50 livros e é um dos criadores do Movimento Por Um Brasil Literário (http://www.brasilliterario.org.br/), que luta para transformar o acesso ao livro num direito de todos os brasileiros. Bartolomeu foi um autor premiadíssimo, mas na verdade ele é que sempre nos premiou. Querem ver?

Eu vi, um dia, o mar, no lugar onde ele está. Pisei manso sobre as águas para não quebrar o espelho. Provei seu gosto de sal – definitivo batismo. Reparei suas areias lavadas, e a paixão me falou: há mais azul depois do mar. E o meu mar de mentira sempre foi maior que o mar de firmes verdades.

Sempre vou ser um desejo, se vivo ausente do mar. Não chega a ser marinheiro quem nasce longe de lá. As águas são muito abertas para quem, por sobre veredas, aprendeu a caminhar.

Nascendo sobre um mar de montanhas, não se chega a navegar.

(Trecho final do livro AH!Mar, RHJ Editora.)

A casa ficou maior e cheia de silêncio. Tudo parecia se esforçar para não acordar quem deveria dormir por toda a vida. O vazio ocupou, tanto, o quarto de minha mãe que meu pai dormia na beiradinha da cama, como se empurrado pelo novo morador. E o vazio não nos deixava tocar em nada. Tudo – santo na parede, latas de talco, vidros de perfume, caixinhas de desmazelos, imagem na beira da cabeceira – tudo ficava no mesmo lugar por exigência do vazio. No nada cabe tudo. Até a poeira marcava a retirada de qualquer pertence.

Eu atravessava a casa passando pelo corredor e me assentava debaixo da mangueira. A sombra das folhas bordava no chão um véu sobre a terra. Só as formigas continuavam, em procissão, carregando nas costas a comida, em caso de algum imprevisto. O arrependimento de ter comido coração fez arrepiar meu corpo inteiro.

(Trecho final do livro LER, ESCREVER E FAZER CONTA DE CABEÇA, Prêmio Hors-Concours FNLIJ – 1996 e Prêmio Monteiro Lobato Brazilian Book Magazine/FBN – 1997. Global Editora.)

Meu avô não deixou herança a não ser sua história. Sobraram os ternos de linho engomados no guarda-roupa, a mala com as pílulas, a cadeira de balanço embalando todo o silêncio do mundo. Mas para mim, depois de passar de mão em mão, restou seu olho de vidro, agora sobre minha mesa, dormindo num pires. E sempre que passo diante dele repito: olho de vidro não chora. Olho de vidro brilha por não ver. Nunca vou saber o que o olho de vidro do meu avô não viu.

(Trecho final de O OLHO DE VIDRO DO MEU AVÔ, Prêmio Altamente Recomendável FNLIJ – 2004, Prêmio O Melhor Para O Jovem, “Hors Concours”, FNLIJ 2004, Prêmio Nestlê de Literatura 2005, Prêmio Jabuti 2005. Editora Moderna.)

Dois. Desconheço o depois de minha despedida. Não se caminha sobre a sombra ao entardecer. Ignoro se o remorso nos preservava em suas memórias, ou se a paixão lhes presenteou com o esquecimento. A culpa é relativa ao tamanho da memória. Esquecer é desexistir, é não ter havido. Ao me interrogar se tomate ainda há, não me fecho em silêncio. Confirmo que minha primeira leitura se deu a partir de um recado rabiscado pela faca no ar cortando em fatias o vermelho.

(Trecho final de VERMELHO AMARGO, Editora Cosac Naify.)  



AUTOPEÇAS LITERÁRIAS CARDOSÃO

a oficina de literatura do cesar cardoso

EM ALGUM LUGAR
DO PACÍFICO SUL


Roberto Robalinho é diretor, montador e roteirista. E agora experimenta a literatura pura e simples, sem ser um texto preparado para virar cinema. Seu conto EM ALGUM LUGAR DO PACÍFICO SUL está na coletânea A POLÊMICA VIDA DO AMOR, publicada pela Editora Oito e Meio, onde também está o editor-imperador-e-cacique deste blog, Cesar Cardoso. No Rio, o livro pode ser encontrado na loja da editora, que fica na Travessa dos Tamoios 32, loja, C, e na Livraria da Travessa. Em São Paulo, na Livraria Cultura. E na realidade virtual, nos sites da editora (www.oitoemeio.com.br) e das livrarias Travessa e Cultura. Além de Roberto e Cesar, A Polêmica Vida do Amor traz mais 18 contistas escrevendo sobre o tema-título.

“Adorei o livro. Do primeiro ao último autor. Maravilha! Que beleza de surpresa quando um livro nos pega pela rabeira, nos joga na parede, no teto.”
Marcelino Freire.

A navalha entre os dedos ardia dentro do peito.

     Todo ano na ilha de Pentecostes, em algum lugar do Pacífico Sul, jovens se lançam ao abismo para se tornarem homens

     O fio da navalha era o fio do corpo a se movimentar trôpego pelas ruas.

     se lançam ao abismo na esperança de se tornarem homens. Vivem na pele a dor de se jogar em busca de um amor, como suicidas apaixonados. Em cada salto, a lembrança da matéria de que são feitos. A carne e o osso pesando sobre os ombros, puxando para o chão. E a história de tempos imemoriais de um homem traído que perseguiu sua mulher até o cume de uma montanha

     A navalha pulsa como veias, como se seu coração de metal também gritasse.

     até o cume de uma montanha um homem perseguiu seu amor e seu ódio e lá se atirou do penhasco atrás da mulher que viu se atirar. Os dois corpos em queda livre como os cacos da implosão de um edifício. O balé sobrevoando os ventos, será possível voar para longe de suas existências e abandonar o corpo, cárcere deste mundo a puxar para baixo com todas as forças?

     O chacoalhar da lâmina no bolso, o tilintar dos ossos em cada passo sobre os degraus do hotel imundo. Pé ante pé erguendo o peso de estar vivo, um saco de pedras no peito.

    por um minuto é possível imaginar as almas a largarem os corpos que insistem na queda, insistem em encontrar o chão duro e inevitável. E enquanto durar o voo poderão bailar como se amassem apesar de tudo, como se fosse possível seguir pela vida flutuando sem tocar os pés no chão, sem precisarem de corpo, invólucros a mediar os amores, a doce ardência que nos amarra no mundo. E nessa existência de pássaro, despossuídos de si, nus de tudo, são entrelaçados num gozo profundo de quem ama incondicionalmente para enfrentar a eternidade

    A lâmina embaçada pelo ar denso do corredor impede a visão do rosto refletido, mesmo que não caiba um rosto inteiro na magreza da lâmina. E se, por ventura, surgir um pedaço de rosto, que seja um olho ou uma orelha, não se consegue distinguir as feições irreconhecíveis de quem já se perdeu de si e se esmigalhou em pedaços – quantas lâminas e quantos pedaços seriam necessários para poder mais uma vez juntar num só rosto?

    a breve eternidade de quem acredita poder se despir de si em queda livre. O gozo profundo que torna breve o infinito dos amantes que se jogam no abismo. E lá se foram, montanha abaixo, os corpos dos dois amantes, em medo e em fúria, ambos amando a sua maneira suicida. No entanto, havia algo que o homem não sabia, havia sempre algo que o homem não sabia. Em algum lugar do Pacífico Sul

    o homem não sabia

    Não sabia quantos minutos, horas, dias ficou na frente daquela porta. A navalha afiada atravessa o tempo com punhaladas a conta-gotas, mas não sabe contar, apenas rasga a duração com sua ferocidade de bicho. O bicho a espreita dentro do bolso a esquecer o tempo escutando as batidas do coração – tu tum, tu tum, tu tum, tu tum. Quantas batidas é preciso até que se possa atravessar a porta do desterro?

    o homem nem desconfiava, mas a mulher, antes de se jogar, tinha amarrado os pés a um cipó bastante longo para simular o voo ao chão, curto e elástico o bastante para puxá-la de volta às nuvens no milésimo de segundo antes de seu nariz se esborrachar no solo. Os dois se atiraram do cume da montanha, um e, depois, o outro. O homem na perseguição de seu amor e da sua incompreensão inexorável do feminino. O ventre que o pare e outro que o fere. E enquanto o homem se espatifava contra as pedras, o ser desmembrado tal qual um coração dilacerado, a mulher voava em rodopios para baixo e para cima. Ele quebrado em mil pedaços e ela fazendo piruetas no céu. O defunto e a bailarina

      A porta abria como uma fenda em seu coração, de onde escorria qualquer restolho de homem que ainda o habitava. O átimo de segundo que o separava do corpo nu da mulher amada e ultrajada, que separava a lâmina da navalha e a pele alva, dilatava em toda uma vida a dois, de léu em léu, doendo.

    em algum lugar do Pacífico Sul, jovens se jogam ao léu e relembram um homem que se atirou do precipício atrás da mulher amada. Só abandonam a adolescência se enfrentarem o amor e seus abismos. Só é homem aquele que sente a dor em queda livre por um amor, aquele que aceita por um breve instante o suicídio apaixonado, que acredita algum dia poder voar feito um pássaro

    O amor estendido nu na cama e a eternidade que os separa contada no fio da navalha. O tempo repousa sobre a lâmina afiada feito um faquir. Podia sentir o calor do beijo na roda gigante e a cidade curvada sobre o desejo. Ali suspensos, como se flutuassem sobre todos, fizeram as mais lindas juras de amor. O balanço da gaiola enferrujada embalava os jovens amantes. Poderiam viver para sempre naquele ninho de metal sobrevoando o antigo bairro, os sobrados decrépitos, as velhas enfadonhas, o interminável jogo de sueca, o suor dos operários na volta para casa, as mães arengando com os filhos, a nuvem negra dos ônibus, tudo se desprendia dos pés entrelaçados como uma poeira fina. O amor era um patuá com o qual se enfrentava o mundo e se alçava voos delirantes.

    todos os anos após a época das chuvas torrenciais os jovens se embrenham no mato, como se adentrassem um enorme ventre vegetal. Buscam nos recantos mais secretos da mata e de seus seres o cipó perfeito para alçar o voo ritual e masculino, o voo suicida do qual se espera que saiam renascidos

    O giro da roda na gira desse viver e suas entranhas. O peito estalando dentro da gente. O amor corrói por dentro até que um dia só sobram os ossos. Até que um dia o cadáver deixa de ser vivo e se deita no chão livre de suas angústias. Seria possível viver sem amor? Quem levaria esse corpo sem vida pelo mundo afora? A mulher deitada nua atiçando o velho defunto que o habitava, com curtas navalhadas. A alça do vestido vermelho que insistia em escorregar pelos ombros em cima da roda gigante. Se pudesse viveria apenas com aquele ombro, a pele amarela reluzindo no pôr do sol. E deitou a cabeça no ombro dela como se toda a humanidade deitasse junto, e toda cidade fosse um leito para os amantes adormecidos.

    e dentro do ventre da floresta, já de cipó na mão, os jovens erguem por cima do monturo ancestral imensas plataformas para que do alto possam se jogar. Já não há mais montanhas que suportem amantes desesperados, ruíram sobre os corpos flutuantes. E existem agora apenas nas canções românticas e nas raízes das árvores milenares. Os jovens, às centenas, rasgam um buraco na barriga da mata, como se rasga o bucho de um boi, e erguem o edifício temporário de suas existências. Ali, um salto separa os meninos dos homens. É preciso acreditar no amor e suas profundezas, deixar de existir para vestir outra existência. Vão-se os meninos, pobres bezerrinhos, ficam-se os homens, dos que não se esborracham no chão

    A mão segurando a navalha dormente no bolso. A mulher adormecida e de uma nudez que ardia por dentro. Estar naquele quarto de lâmina afiada era estar em múltiplos lugares. Podia sentir já o fio da navalha penetrando a pele rígida e quente, e ao mesmo tempo sentir as carícias de juras eternas plainando sobre o quarto. Podia também imaginar as outras mãos e outro corpo acariciando a mulher amada, como se a própria navalha o furasse. Esse estar em camadas era como um transe amargo, era um sofrer-estar. Quantas segundas peles, camadas de lugares, é possível um homem vestir sem se implodir em mil pedaços?

    e logo o edifício desengonçado no meio da mata, torso exógeno, está pronto despontando sobre a copa das árvores. E os meninos sobem aos montes para se arremessarem lá de cima. Amarram com cuidado o cipó aos pés como um condenado à forca ao pescoço, deixando um respiro na esperança de se livrarem daquilo. E vão de passos miúdos, apassarinhados, eternizando a caminhada até a beira, até o precipício. E lá do alto, respirando o respirar antigo da floresta, as cabeças cheia de nuvens, os jovens se atiram na profundeza de seus âmagos para se tornarem homens. Se atiram como se atirou um homem atrás de seu amor, mas amarram aos pés cipós como fez a mulher ultrajada. E se lançam não na queda amarga do homem, mas no voo singelo e feminino, bailam como bailarinas no céu. Para serem homens não devem apenas se atirar na paixão, mas ser um pouco mulheres. Os jovens se jogam não como se jogou um homem, mas como se jogou uma mulher em sua paixão de voo livre. Só se é homem quem vive por inteiro uma mulher e assim não se quebra no chão

    E ali, no estilhaço de seu ser, contemplava o amor se equilibrando na ponta da navalha, de um lado a mão dormente e de outro o corpo nu inquietante. Pode o flutuar da pena servir de contrapeso a pedra dolorosa?

    em algum lugar do Pacífico Sul jovens se jogam ao abismo aos montes para se tornarem homens.

    Em algum lugar no pacífico que o separava da mulher que ama, era preciso tornar-se homem.

“NÚNCARAS” – po+es+ia

DOS ANDES AO PATAVINA’S:
A POESIA E A PINTURA DE LEO LOBOS

Leo Lobos nasceu em Santiago do Chile em 1966. É poeta, ensaísta, tradutor e artista visual, com inúmeras publicações de poesia e exposições. Conheci sua poesia nas andanças, não por cordilheiras, mas pelas páginas virtuais dos sites e blogs da internet.

Rapid eye movement (REM) é uma seleção de cinco poemas – acompanhados com pinturas eletrônicas, também de Leo Lobos – escritos nas cidades de Ovalle e San Pedro de Atacama e editados na cidade de La Serena, no Chile, no mês de abril de 2008. A tradução para o português é de Geruza Zelnys de Almeida.

REM (rapid eye movement)


Paisagem - Miragem


Ao escritor britânico Artur C. Clarke in memoriam


As ovelhas que pastam distante são chacais
um trem
estremece a cidade
e os anjos do cemitério choram pó
As palavras são portas que abrem e fecham suas asas
as palavras são múltiplas e contraditórias
e possuem o ritmo do trote de um cavalo na campina
Um dia vem depois de outro dia
e para mim
um dia nunca é um dia qualquer
são estas as responsabilidades do ser
em uma paisagem deserta de humanidade


Sonho tenaz


Ao escritor chileno Roberto Bolaño in memoriam


Um diário descontínuo
que abre e fecha
com uma orquestra que acompanha
poesia
vertiginosa e sincopada
comovedor
romântico
Rimbaud em fuga perpétua
E já sabes como és
Cesaréa disse uma vez
para além do ano 2600
queimando as mãos e os pés
por cada poema
exalado
O que há por detrás?


Paralisia do sonho


“Pequeñas motas de luz etéreas burbujas
diminutas pecas en la lente externa del ojo”

Ray Bradbury


Nunca sinto que sou eu quem faz arte
Não sei de onde vêm minhas idéias
Eu só apareço para o trabalho
E sigo minhas ordens


Rapid eye movement


“No importa cómo se ponga la pintura, mientras que algo sea dicho”

Jackson Pollock


Viveram lendo
Escrevendo
Rezando
Muito além do monólogo interior
Muito além da morte


Temor


“La mejor parte es sentirse vivo pintando y la peor es necesitar hacer pinturas para sentirse vivo”


Geoffrey Lawrence


Reverência emocionada
quando tudo
deixa
de
importar
quando tudo está escuro
quando tudo está perdido
Que a musa te toque com seus
dedos as costas
e te empurre ao caminho
Que a frieza das cidades
que a rosa do nada
que a lama imóvel
que a areia movediça do deserto
não apaguem a tristeza da tinta
que há de alcançar a água
E seja ar movido por lábios
uma
vez
mais

PATAVINinha’s


EM 2011 lancei dois novos livros infantis pela Editora Biruta. O primeiro deles - O QUE É QUE NÃO É? – é um jogo de esconde–esconde entre as imagens e o texto, onde um inocente chafariz pode virar o esguicho de uma baleia. Ilustrado por Cris Alhadeff, o livro trabalha com uma faixa de leitores dos 3 aos 8 anos e foi selecionado para o PNBE – Programa Nacional de Biblioteca da Escola. 


O segundo livro – VOCÊ NÃO VAI ABRIR? – foi ilustrado por Salmo Dansa e propõe um outro jogo. Nas suas páginas, o autor e o próprio livro discutem quem é que realmente conta as histórias. E na briga dos dois quem sai ganhando é o leitor, que se delicia com poesias, contos, notícias e outros textos, sempre com muito humor. VOCÊ NÃO VAI ABRIR? é mais apropriado para leitores dos 7 aos 11 anos.


Os dois livros podem ser encontrados nas livrarias Malasartes, do Museu da República e Travessa (no Rio) e na Cultura, em São Paulo. Ou pelo site da editora Biruta: www.editorabiruta.com.br . E agora um gostinho de um deles: o poema Por que Você Não Dorme, Pixote?, do livro Você Não Vai Abrir?


THE PATAVINA’S PICTURE PRESENTS

Pode botar a pipoca no micro-ondas. Chegou THE PATAVINA’S PICTURE,
o complexo cinematográfico do PATAVINA’S. Inaugurado por Luiz Carlos Barreto,
elogiado por Paulo Francis Ford Coppola e assombrado por Fellini,
nosso megaplexmark traz pra você poesia na beira do Tejo,
o escritor Mia Couto mostrando que fala tão bem quanto escreve,
e o Poeta do Castelo, Manuel Bandeira,
num curta metragem poético e imperdível de Joaquim Pedro de Andrade.
Lembramos ao distinto público que é proibida
a entrada virtual de cachorros e leões da Metro.

Ciclovia do Tejo (Cais do Sodré - Belem). Passeio de bicicleta na margem norte do Tejo ao som de "Cais" do projecto "Os Poetas" de Rodrigo Leão e Gabriel Gomes. Filmado por Nuno Trindade Lopes. Editado por Abilio Vieira. Poema "O Tejo é mais belo", de Alberto Caeiro, em "Guardador de Rebanhos".

Numa conferência sobre segurança o escritor Mia Couto lê um texto seu, onde começa dizendo que o medo foi um de seus primeiros mestres. A poesia de sua prosa de ficção também está presente nesta fala.  

O Poeta do Castelo é um pequeno e belo documentário de Joaquim Pedro de Andrade, onde vemos o cotidiano simples de Manuel Bandeira envolto em seus versos falados por ele mesmo.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

PATAVINA’S NEWS

Nosso correspondente Jean Prévert
direto de N.York

Meu caro Cesar,

Estou na Rua 45, entre a Quinta e a Sexta Avenidas, mais precisamente num sebo chamado Book Off, que além de livros usados em muito bom estado tem dois andares só com cds, dvds, videogames e mangás, tudo em japonês. Sentado na casa de chá da loja, te escrevo para contar uma história.
Kasato Maru é um hábil manipulador de facas, apesar de possuir apenas três dedos na mão esquerda. A história de como perdeu esses dedos está tatuada em suas próprias costas. Se você souber ler essas e as outras tatuagens que tomam conta do corpo de Kasato, vai descobrir que ele nasceu em Osaka, em 1949, entrou para a Yakuza, a temível Máfia japonesa, aos 13 anos, passou 15 anos numa cadeia de Tókio, condenado pela morte de cinco deputados do parlamento japonês, lá perdeu os dois dedos da mão esquerda e se tornou um mestre na arte de manejar facas. Para matar, é claro.
Mas mesmo tomando todo o corpo de Kasato, as tatuagens não contam tudo. Não contam, por exemplo, como Kasato consegue fugir do Japão e sobreviver à perseguição da Yakuza, como vem para São Paulo para construir uma vida nova longe do crime, como acaba se envolvendo com o crime organizado daqui e liderando o tráfico de drogas na favela do Jardim Jangadeiro, no Capão Redondo e, por fim, como encontra o budismo tendai e desaparece no mundo.
Muita gente quer encontrar Kasato Maru, todas com intenções nem um pouco amistosas. Eu, que não o procuro, acabei sendo encontrado por ele. Kasato me mandou por e mail um pouco da sua história, que resumi mais um pouco para o PATAVINA’S. Atualmente ele é monge em algum lugar do planeta e se dedica a meditar, cuidar de uma horta e escrever haicais que, fugindo da tradição dessa poesia, têm como tema a violência, que ele experimentou na carne, sua e dos outros.
Essa é a história, Cesar. E agora os haicais.

Um abraço do

Jean Prévert


olhares cruzados
entre cerveja e ciúme
navalha na carne


no fogo da noite
clarão que dissolve a luz
o corpo crepita


chupeta pulando
solta pipa toma pico
a velha criança


essa casa santa
quanto poder tem jesus
na poça de sangue?


infância de irmãos
perdidos. Até o reencontro
do fogo cruzado


prazer te rever
no cumprimento final
a mão que esquarteja


a bênção meu filho
deus te abençõe meu pai
tiros já perdoados


não há de afogar
a mágoa, a chuva na cara
de quem nem respira


doce filho meu
sangue na faca com faca
ah minha mãezinha

CAIU NA REDE É PIXEL

AO MEU AMIGO HELIO JESUINO
Tinha resolvido caminhar todos os dias durante uma hora e já estava na Gago Coutinho quando me veio uma ideia para um texto. Apanhei o papel e a caneta no bolso e tentava anotar sem perder o passo quando alguém saiu detrás de uma árvore e se plantou bem na minha frente.
- Arrá!
Era Helio Jesuino que, com sua voz rascante, me provocou em tom de deboche:
- Um escritor atuante e contemporâneo tem sempre lápis e papel para anotar alguma ideia genial...
Eu contei que estava caminhando, ele deu sua risada, disse que me viu e se escondeu atrás da árvore pra me esperar passar e me sacanear. Helio não estava caminhando, isso realmente não fazia parte de seus planos. Estava era sentado no bar do outro lado da rua tomando umas cervejas e me convocou a ter uma atitude séria na vida, parar com esse negócio de caminhar e ajudá-lo a secar umas garrafas. Diante da gravidade da ponderação de meu amigo, tive que tomar um posicionamento sério e dividir a mesa e as cervejas com ele, além de vários tira-gostos que foram sendo pedidos ao longo da tarde, enquanto discutíamos todas as questões fundamentais para o bom andamento da humanidade. Lá pelas tantas começamos a falar sobre o que cada um andava criando e acabamos bolando um projeto juntos, onde eu entrava com fotografias, Helio com gravuras e iríamos misturando nossas linguagens em novos trabalhos.
Eu e Helio já havíamos trabalhado em parceria muitos anos e cervejas antes, lá pelo início da década de 90, no jornal carioca de cultura Verve, que era editado pelo Ricardo Oiticica e pela Claudia Roquette-Pinto. Fizemos uma tira mensal, onde eu entrava com o texto e Helio com o desenho. Depois, há cerca de dois anos, fizemos duas histórias em quadrinhos, a partir de uma releitura que escrevi da história da Chapeuzinho Vermelho. Agora criávamos mais uma ideia, que apresentamos ao Centro Cultural Justiça Federal e não foi aprovada. Mas foi um prazer desenvolver o projeto e passar aquela tarde tomando cervejas e conversando sobre tudo e nada com Helio, coisa que repetimos algumas outras tardes na casa dele e no Estação Largo do Machado, para finalizar a coisa toda. Ou só para tomar cerveja juntos mesmo. O Estação era um pouco a segunda sala de estar do Helio, ali a gente se encontrou muitas noites, às vezes ele e nosso amigo Armando, às vezes ele e a mulher, Silvia. Sentar na mesa com Helio sempre foi garantia de um bom papo, que podia ser intenso, polêmico, provocador, mas nunca dentro dos padrões estabelecidos pela caretice reinante. Helio sempre olhou o mundo de forma muito particular, sua, criativa. E assim também o representava em sua obra.  
Nos últimos dias de dezembro de 2011 voltei a prometer a mim mesmo que vou caminhar. E na quinta feira, 29, fui inaugurar minha promessa na pista Claudio Coutinho, na Praia Vermelha. Lá pelas tantas comecei a pensar nos meus projetos para 2012 e lembrei-me de falar com Helio para bolarmos juntos mais alguma ideia. Dessa vez ninguém saiu detrás de uma árvore para interromper minha caminhada. Como eu soube uma hora depois, ao chegar em casa, meu amigo Helio Jesuino havia morrido na noite anterior. Uma úlcera perfurou seu estômago, seu caminho, nossos possíveis projetos e sua risada. E eu fui tomar umas cervejas em homenagem a ele.

Cesar Cardoso

(As ilustrações são gravuras de Helio Jesuino com elementos de fotografias minhas, em montagens que ele realizou.)