quinta-feira, 12 de julho de 2012

AVISO AOS NAUFRAGANTES

  (Detalhe da capa de O Amor Acontece)

Minha amiga e escritora Lúcia Bettencourt acaba de lançar um novo livro: O Amor Acontece. Lúcia é autora de A Secretária de Borges (Prêmio SESC de Literatura 2005 – Contos) e Linha de Sombra (2008), ambos publicados pela Record e vive dando aulas e oficinas de contos pelo planeta. O Amor Acontece é um romance delicioso, que eu recomendo. Mas tem alguém que entende do riscado mesmo e vai apresentar o livro pra vocês.

“A carioca Lúcia Bettencourt já se definiu como uma escritora que vai descobrindo suas histórias entre leituras, caminhadas e viagens sem muito método. Não por acaso, é uma viagem, embora imaginária – mas com método e risco calculado -, o motivo deste seu livro, que começa com uma proposta editorial: um mês em Veneza, para bolar uma história de amor, que depois poderá até ser filmada. A partir daí a trama passa a ter em primeiro plano a relação entre Fábio, o proponente do projeto, e Mariana, a escolhida para realizá-lo, intercalada pela entrada em cena de Paula e Francesco, que passarão a ser os protagonistas do romance buscado.
[...]
Pode-se dizer deste livro que é uma espécie de making-off de uma produção cujo desafio é contornar o dejà-vu do tema e da cenografia em causa. Ou ainda que ele reflete a experiência da autora com oficinas literárias, nas quais sempre procura transmitir os cavacos do ofício. Para ela, porém, se trata de “uma historinha divertida, que mistura melodrama com algumas conversas bem desinibidas”.
Simples assim. E com a habitual linguagem direta, sempre em busca da palavra exata, e diálogos ágeis de Lúcia Bettencourt. Divirta-se."  

ANTÔNIO TORRES

Capítulo I

— Gostou da idéia? Basta escrever uma história de amor.
— Mas… por que de amor?
—Porque vende! E porque é fácil, ora! Tudo o que você tem a fazer é ficar um mês hospedada na cidade, e, neste tempo, bolar uma história de amor, que depois até poderá ser filmada.
— E quem é que diz que uma história de amor é fácil? Inda mais numa cidade estranha. Não conheço ninguém por lá. Não falo essa língua cantada deles. Sou tímida. Vai ser impossível!
— Porra! Pára de doce! Um trabalho desses mais parece um prêmio! Toda uma população de escritores frustrados e invejosos dando qualquer coisa para estar em seu lugar e você aí reclamando que não dá. Escreve uma merda qualquer, põe uns nomes de ruas e de praças famosas e entrega. O dinheiro está garantido mesmo! Ninguém está querendo que você se apaixone, e muito menos querendo que se apaixonem por você. O negócio é inventar uma história.
— Mas é isso aí. Ir para lá, uma cidade assim tão romântica.... Tenho medo de arrumar complicações sentimentais! Minha vida está tão boa, tão descomplicada…
— Caraca! Não confunda vida real com ficção! Não é para você se envolver com ninguém, é só para você absorver a cor local. Será que vou ter que te ensinar tudo?
— Como, ensinar?
— Olha aí. Imagina a história: Você está em Veneza...
—Tá vendo? Já complica tudo. Veneza é cheio de clichês...
— Clichê facilita, pombas! Até entregador de pizza vira uma maravilha quando está numa gôndola. Põe o cara numa gôndola, descreve os músculos dos braços dele se destacando na camiseta listrada, pinga uma ou duas gotas de suor descendo lentamente pelo pescoço grosso do tipo e...
— Já sei, mas eu nunca me apaixonaria por um entregador de pizza numa gôndola, por mais tesudo que o cara fosse.
— Por quem é que você se apaixonaria?
— Deixa eu ver...
— Anda logo! Vamos decidir logo esse enredo que eu tenho que dar aula.
— Bem, acho que gostaria de me apaixonar por um poeta. É, um poeta. Inteligente, mas sem ficar se mostrando de mais. Meio inseguro. Sim, mas só às vezes. Mais para calado, mas de um silêncio prenhe de significados...
— Era você que estava falando alguma coisa contra clichês?
— Eu sei, mas, na verdade, conheci um cara assim na adolescência. Ele ainda não era poeta, era só meu colega de escola. Mas já gostava de poesia, e ficava lendo uns livros de Rimbaud...
— O cara era bicha.
— Bicha nada! Lia Rimbaud e lia Bandeira, e lia João Cabral.
— Como era a cara dele?
— Sei lá. Era uma cara de adolescente, cheia de espinha.
— E como é que você se apaixonou por um cara cheio de espinhas?
— Mas quem foi que disse que eu me apaixonei? Nós éramos bons amigos...
— Que idade vocês tinham?
— Uns dezesseis, ou dezessete.
— Um cara normal, cheio de hormônio, nessa idade, sendo apenas “amigo” de uma gatinha?
— Quem disse que eu era gatinha?
— Para um cara normal, de dezessete anos, toda menina dessa idade que se disponha a escutá-lo falar de Rimbaud, é gatinha. Gatinha não. Gatésima!
— Tudo bem. Eu até que não era das piores, mesmo. E tinha um peitão… Meu peito cresceu antes do peito de todas as garotas da turma.
— E que fim levou?
— Como? O que é que você quer dizer com isso? Está criticando o meu peito? Olha o ditado, hein? “Quem desdenha quer comprar!”
— Comprado não. Mas se você der...
— Me respeite. Você está debochando de mim.
— Não! Estou tentando te mostrar como é fácil cumprir sua tarefa. Você curte umas férias e ainda escreve uma história de amor, sem se desgastar.
— Então, vamos lá. Digamos que já estou em Veneza. Ele é poeta.
— Sim, e tem dezessete anos.
— NÃO! Imagine se eu ia me apaixonar, hoje em dia, por um fedelho cheio de espinhas na cara!
— Então ele tem sessenta e sete anos...
— Por que sessenta e sete?
— Sei lá. Gostei do número. E dá para fazer uma história legal, tipo “Morte em Veneza”, uma última paixão antes do fim. O gran finale de uma vida!
— Não. Você está com fixação em veadagem. Imagina, meu poeta cheio de maquiagem derretendo com o calor! Nunca. Prefiro não me apaixonar.
— Assim não dá. Você põe defeito em tudo o que eu falo, mas não colabora com nada.
— Desculpe, vai. Mas por que você não põe o poeta assim da sua idade?
— Mas o poeta é seu! Você dá a ele a idade que quiser. Então, ele tem a minha idade. Nasceu no mesmo ano que eu, é de uma boa safra!
— Isso mesmo.
— Mas é pálido.
— Pálido nada. Ele é poeta mas adora andar à beira-mar. Bem, no caso, à beira dos canais. Acorda cedo todos os dias e vai fazer uma caminhada. Ele caminha pelas pontes. Está sempre atravessando pontes...
— Uma mania estranha, mas até que combina com um poeta. Isso pode se tornar uma metáfora da própria poesia que ele pratica.
— Taí! Gostei. E ele trabalha, e é casado, tem dois filhos, um do primeiro e outro do segundo casamento...
— Calma, calma. Isso aqui não é biografia. É história de amor. Qual é a graça de colocar como herói um homem casado? E, pior, um homem duplamente casado, tendo que lidar com ex-mulher, pensão, TPM da nova mulher...
— Ai, não corta o meu barato! Além do mais, adultério é sempre mais interessante de que um namorico desimpedido! Se você pensar nas grandes histórias de amor, tem sempre um adultério no meio. Veja Madame Bovary! Veja Anna Karenina!
— Isso é teoria de francês.
— Pera lá! Anna Karenina é de Tolstói. Russo!
— Eu sei. Mas a Rússia, na época dele, podia ser considerada uma sucursal da França.
— Você nunca dá o braço a torcer, né?
— Prá quê? E, além do mais, estou com a razão. Os russos ricos pensavam que estavam na França. No próprio romance todo o mundo só fala francês, só veste francês, só...
— Tudo bem, mas ao menos você reconhece o valor de um bom adultério?
— Hoje em dia esta palavra nem se usa mais. A-dul-té-ri-o. Que coisa mais antiga! Mas acho que gosto da idéia de um amor que venha para resgatar o seu poeta de uma vida que se tornou muito banal. Um poeta, funcionário público, casado e com filho... só Drummond.
— Pois é, está vendo? O Drummond tinha uma amante!
— Outra palavra fora de moda. A-man-te. Você está querendo escrever algo no gênero de Nélson Rodrigues?
— Não. Detesto estas patologias sexuais suburbanas.
— Então vamos recomeçar. Esta história de amor já está nascendo muito antiga. Só que agora preciso ir dar aula. A gente se fala.
— Ah, não. Vamos marcar hora e lugar para a gente se encontrar. Esse negócio de a gente se fala é muito vago, vou ficar na ansiedade. Vamos jantar, mais tarde?
— Hoje não dá. Tenho que levar a Clarinha ao dentista. Prometi à mãe dela.
— Então a gente almoça uma saladinha amanhã.
— Nem pensar! Amanhã é dia de jogo do Brasil. Já me programei todo para assistir. Convidei uns amigos, comprei cerveja…
— Mas esse jogo nem vale para nada. É só um amistoso. Você dá mais importância a um jogo vagabundo do que à nossa amizade? Cara, preciso de você. Não me deixa na mão.
— Não estou te deixando na mão. Pelo contrário! Não se esqueça que fui eu que dei a maior força para você arrumar essa boa. Indiquei teu nome, mexi os pauzinhos… E agora estou aqui, dando uma de “personnal editor” prá tua história. Só que jogo do Brasil é minha terapia. Paro tudo e vou ver.
— Cara, você é de uma insensibilidade total! In-sen-si-bi-li-da-de. Não é assim que você gosta de dizer essas palavrinhas antigas? Pois, é. É antiga, mesmo, mas vem ao caso e cai perfeitamente aqui. Você é um insensível, um homem de palha, sacou? A gente te toca assim, ó, e você estala, cheio de palha seca, sem vida.
— Olha a agressão!
— Agressão o caramba! Quem é que agride quem? Você é que me agride com a sua indiferença e seu pouco caso. Não sei como é que eu consegui permanecer tua amiga todos esses anos. Vai. Anda logo. Não quero mais falar com você. Nunca mais! Prá mim chega! Some! E não adianta me ligar.

Capítulo II

Chegar a Veneza de trem pode parecer um contra-senso, mas é a melhor maneira de mergulhar diretamente na atmosfera da cidade. A estação agitada, os viajantes gritando suas frases longas e cantadas, o painel de avisos mudando freneticamente os dizeres, e os ruídos característicos de peças de metal se entrechocando, de freios sendo acionados, de motores se pondo em funcionamento, todas essas coisas estonteiam os viajantes e os deixam despreparados para a primeira visão da cidade, obtida ao sair do prédio da estação, datado de meados do século XIX. Com sua luz característica, a cidade parece um cenário pintado do outro lado do cais movimentado, onde toda a Europa parece convergir numa tentativa infrene de ocupar os hotéis que, dependendo de sua localização, podem cobrar tarifas de mais de mil dólares por noite.

Foi nesse burburinho que desembarquei, vinda de Milão, depois de atravessar quase meio globo terrestre de avião e de superar as barreiras linguísticas numa estação de trem hostil, ainda estonteada pelo jet-lag. As cinco horas que me foram retiradas do dia haviam se transformado em cobras, que invadiam meu cérebro e se compraziam em espremer a delicada massa pensante, até retirar dela toda e qualquer coerência. Irritada com o extravio de minha bagagem, com o rosto devastado pela falta de sono, as pernas inchadas, e precisando desesperadamente de um banho que me devolvesse a sensação de pertencer a uma sociedade civilizada, estava determinada a ignorar os encantos que a cidade lagunar tinha a oferecer, e a ir direto para o hotel, onde recuperaria minha humanidade. Estava determinada a não me deixar encantar pela beleza da cidade.

Veneza era uma adversária mais poderosa do que havia julgado e me recebeu com um sol primaveril, que desmaiava ainda mais as cores desgastadas dos palácios e das paredes descascadas das vilas e igrejas. Era uma sensação diferente, pois, mesmo brilhando e desenhando caprichosamente os ornamentos excessivos dos prédios, o astro não irradiava calor. Estremecendo ligeiramente, aconcheguei meu agasalho insuficiente, e me indaguei quanto tempo levariam minhas malas para me alcançar. Com otimismo pensei que talvez não precisasse gastar o dinheiro da diária, comprando um desnecessário casaco em euros. Corajosamente, enfrentei a fila do vaporetto que havia de me levar até as proximidades de meu hotel. Embarquei e fiquei imprensada entre pessoas de todas as idades, algumas parecendo caricaturas. Tentei respirar o menos possível enquanto estivesse dentro do barco, para escapar dos fortes odores que tornavam o ar do recinto irrespirável. Em nenhum momento pensei que o cheiro talvez se desprendesse de mim mesma, há mais de vinte e seis horas sem banho.

Foi com alívio que escutei o nome da Piazza de San Marco, meu destino, e reconheci, pelas apagadas lembranças de uma antiga viagem ou talvez das muitas fotos e quadros que havia examinado, a esguia coluna, no alto da qual o leão, símbolo da antiga república, se empertigava. A maré cheia havia coberto toda a praça com a água salobra dos canais. Meus sapatos foram incapazes de manter sua integridade, e eu sentia o líquido gelado molhando minhas meias, insinuando-se por entre os meus artelhos. Antes mesmo de passar pela frente da catedral, já havia começado a espirrar.

O hotel em que os organizadores do projeto me haviam hospedado ficava numa viela por trás da arcada da praça. Programada que ia para escrever uma história de amor, estava com a cabeça cheia de episódios românticos que revisitara em velhos filmes e livros. *Um deles era “Um quarto com vista”, história passada em outro ícone do romantismo italiano: Florença. As histórias que conhecia e que eram ambientadas em Veneza, eram todas trágicas, ou grandes farsas. Shakespeare, por exemplo, tinha adoração pela Itália, e por Veneza em especial, mas suas histórias não me serviam como modelo. Os ciúmes excessivos de Otelo, sua incapacidade em confiar na mulher amada, e a facilidade com que acreditava em qualquer insinuação do amigo, me irritavam. Ou as artimanhas de trocas de sexo e os artifícios usurários de Shylock, e companhia, em O mercador de Veneza, ao invés de me fazerem rir, levantavam questões que incomodavam minha modernidade politicamente correta.

Caminhei apressada, tentando chegar ao abrigo das arcadas, e depois me esgueirar por baixo das sacadas. Ali estava eu, caminhando com os pés encharcados por uma ruela estreita e úmida, onde o cheiro de mofo suplantava meus próprios odores, e, nas circunstâncias, dando graças a Deus por não estar carregando a minha mala. Olhei para a placa onde as figuras de Arlechinno e Colombina dançavam entre as letras que anunciavam: Albergho della Commedia. Não sei como criei coragem para enfrentar a porta manchada e a escada gasta que me levariam ao meu quarto, que, sem dúvida nenhuma, não tinha vista para nada. E era ali que passaria os próximos trinta dias de minha vida.

CAPÍTULOS INICIAIS DE “O AMOR ACONTECE”, ROMANCE DE LÚCIA BETTENCOURT, EDITORA RECORD.



Já está nas melhores casas do ramo meu novo livro CAPOEIRA CAMARÁ, ilustrado pela estupenda Graça Lima e com uma produção editorial de primeira da editora Paulus, o que resultou num belo livro. Em CAPOEIRA CAMARÁ, Ana Olívia é uma adolescente enrolada com sua escola, sua casa, seus amigos... Junto com o mestre de capoeira Sorriso ela vai viver uma grande aventura, que mudará sua vida e, de quebra, vai conhecer a história da capoeira no Brasil. Para isso, ela vai viajar... no tempo!

Pra dar um gostinho, aí vai o primeiro capítulo do livro.

CAPÍTULO 1: QUANDO TUDO DÁ ERRADO.

     Na semana passada, a diretora disse pra Ana Olívia que ia expulsá-la da escola se ela saísse da sala mais uma vezinha. E não é que essa vezinha acabou de acontecer?
     Ana Olívia estava num papo animado com o Zé Moita, colega dela que estava sentado bem do seu lado. Só que isso não aconteceu no intervalo, mas no meio da aula de português. E pela quinta vez. Daí a professora interrompeu o que estava dizendo:
     – Ana Olívia, é a sexta vez que eu peço pra você calar a boca e prestar atenção.
     Ana Olívia disse que essa era a quinta, e não a sexta vez que a professora falava com ela. E completou:
     – Isso prova que eu estou prestando a maior atenção no que a senhora fala, viu?
     – Que ótimo, era isso que eu queria escutar.
     Foi o que a professora respondeu, e Ana Olívia já respirou aliviada, pensando: “me livrei dessa”. Só que a professora não parou por aí:
     – Porque assim você vai poder explicar pra turma toda o que é o sujeito inexistente.
     Ana Olívia emendou no ato:
     – Pô, teacher! Se esse carinha aí, esse tal sujeito, não existe, como é que eu vou explicar? Quem sou eu, teacher? Quem sou eu?
     Todo mundo caiu na gargalhada. Até a professora riu. E ainda rindo, falou bem assim:
     – Ótima piada, Ana Olívia. Faz uma coisa: aproveita e vai contar essa sua piada genial lá na sala da diretora – e antes que Ana Olívia tentasse se defender, ela emendou:
     – Anda, vai, pode sair. A-go-ra!
     E quando a professora de português falava qualquer palavra so-le-tran-do, não adiantava mais discutir com ela. Isso todo mundo sabia, até a Ana Olívia. Por isso, ela pegou seu material, saiu e foi andando bem devagarinho. Andando e pensando, cada vez mais devagar, até que mudou de direção e, em vez de ir pra sala da diretora, tratou foi de fugir da escola, por um buraco que havia atrás de umas tábuas velhas, num canto do muro, lá no final do pátio e que pouca gente conhecia. (Só Ana Olívia e umas cinco amigas conheciam. Afinal, elas é que tinham feito aquele buraco. E tinha dado um trabalho danado!)
     Do lado de fora, foi andando sem rumo. Até que chegou ao portão de uma casa que ela conhecia, mas onde nunca tinha entrado. Era a Associação Quilombola. Mas ela nem perguntou nada e foi entrando direto. Estava estranha, se sentia como um robô, obedecendo a ordens que nem sabia de onde vinham. Parou em frente a uma roda de pessoas que cantavam e marcavam o ritmo da música com palmas, um berimbau e vários outros instrumentos. Tinha um reco-reco, dois pandeiros, um agogô e um atabaque. No meio do grupo havia alguém que parecia comandá-lo. E ele abriu um largo sorriso. Ele sempre sorria quando ia começar a falar. Por isso, era conhecido como Mestre Sorriso.
     – Olha só, pessoal, hoje é um dia especial, estamos recebendo a visita da Ana Olívia.
     Para Ana Olívia, Mestre Sorriso era mais um adulto debochando dela. Daí ela respondeu:
     – Eu não tô visitando ninguém. Nem sei o que eu vim fazer aqui, tá legal?
     – Tá ótimo – disse o mestre. – Se você não sabe o que veio fazer aqui, aproveita e fica com a gente. Quem sabe você descobre?
     Mestre Sorriso continuava sorrindo. E Ana Olívia ia ficando cada vez mais quente por dentro. Ela conhecia bem aquilo. Quando a provocavam, ia sentindo um calor por dentro, um calor que ia subindo pelo seu corpo, ia tomando conta dela, até invadir sua cabeça. Aí é que a coisa piorava. Foi por isso que ela respondeu assim:
     – Descobrir o quê? Que aqui tem um monte de palhaço que fica brincando de dar pulinho de um lado pro outro? Isso lá é jeito de brigar? Isso é briga de mané, de mulherzinha.
     – Mas, se é briga de mulher, tá feita pra você. Por que você não participa? Vamos lá, pessoal?
     Foi bem assim que Mestre Sorriso respondeu. O berimbau e os outros instrumentos voltaram a tocar, as pessoas voltaram a marcar o ritmo com palmas e todos cantaram:

Cheguei numa perna agora,
Vim jogando da Bahia.
Vim jogando da Bahia, camará.

Trouxe a lição de Angola,
Capoeira é quem vadia.
Capoeira é quem vadia, camará.

     Aquilo só serviu pro calor ferver de vez na cabeça de Ana Olívia. Sem pensar, ela partiu pra cima de Mestre Sorriso, com chutes e socos. Se pudesse, ela daria unhada e até mordida. Mas o problema é que ela não alcançava o mestre. Nunca. O danado ia se esquivando, se esquivando sempre. Ana Olívia tentava se concentrar e atingi-lo, mas o cara parecia até que tinha asas nos pés. E a música parecia ficar mais alta. Era como se o atabaque, o agogô, os dois pandeiros e o reco-reco não parassem nunca de tocar bem dentro da cabeça dela. Sem parar, sem parar, sem parar. E o som do berimbau? Era uma corda de metal se enrolando e se enrolando em volta de Ana Olívia. Até que ela mesma não se Aguentou mais e caiu, cansada, mal conseguindo respirar. Queria xingar Mestre Sorriso e todo mundo ali, mas o ar lhe faltava na garganta apertada. Ficou agachada, recuperando o fôlego, olhando o chão e não vendo nada. Quando finalmente tornou a encher os pulmões, saiu correndo.
     Ana Olívia não olhava pra trás. Andou, andou, andou até anoitecer. E só então voltou pra casa. Quando foi entrando, ficou imaginando qual seria a bronca que a mãe lhe daria: “você não vai mais a baile funk nenhum!”. Ou: “você está de castigo até o fim do ano!”. Ou, pior ainda: “vou te tirar da escola e te botar pra trabalhar”. Mas o que a mãe falou foi:
     – Ana Olívia, você foi expulsa da escola.
     E mais nada.
     No dia seguinte de manhã, Ana Olívia não encontrou a mãe. Procurou pelo bilhete que ela sempre deixava quando tinha que sair ainda de madrugada para pegar o ônibus a tempo de chegar à casa da patroa e preparar o café da manhã. Mas também não havia bilhete nenhum. E pela primeira vez num dia de semana, ela saiu de casa sem os cadernos e os livros da escola.
     Tinha passado a noite toda sem dormir. Foi andando sem rumo – pelo menos era o que ela achava – até estar diante do mesmo portão do dia anterior, Onde se lia: “Associação Quilombola”. Entrou e foi espiando sala por sala. Numa delas encontrou Mestre Sorriso, que acabava de abrir um armário e tirava de lá seu berimbau. E Ana Olívia se pegou dizendo:
     – Você vai me ensinar capoeira.
     – Vou mesmo? Mas que Maravilha! Só que eu posso saber por que você quer aprender capoeira?
     – Eu fiquei pensando a noite toda. Se eu tiver asas nos pés, que nem você tem, ninguém mais me alcança. Eu posso me vingar de todo mundo e ninguém me alcança.
     – Pode ser, pode ser. Mas por que você quer se vingar de todo mundo? Isso dá muito trabalho, viu?
     – Todo mundo vive tripudiando e zombando de mim. Os professores, a diretora, minha mãe. Ontem até você ficou me zoando. Me fez de palhaça, até eu cair na frente daquelas pessoas todas.
     – É, talvez você tenha razão, mas nesse caso é melhor pra mim não te ensinar capoeira, não. Senão, na hora em que você conseguir me alcançar, vai querer fazer picadinho de mim.
     – Vou mesmo.
     – Tá certo, tá certo. Mas você acha mesmo que a capoeira é a melhor forma pra fazer picadinho de todo mundo?
     – Por enquanto é a única que eu conheço. Você pergunta muito, hein?
    – É verdade. Mas sabe que você responde bem? – Mestre Sorriso empunhou seu berimbau, o caxixi e a vareta, mais o dobrão de bronze e deu um toque, que ficou vibrando no ar.
     – E a capoeira, você sabe de onde vem?
     – Eu não. Vai ver alguém inventou. Sei lá.
     O mestre deu mais um toque no berimbau, e o som novamente vibrou na sala. Ana Olívia se sentiu estranha, até pensou que o calor ia voltar a tomar conta dela. Mas não, agora era alguma coisa diferente que começava aos poucos a acontecer. Ela ainda não sabia o quê. Mestre Sorriso continuou:
     – É, alguém deve ter inventado. Mas quem terá sido, hein?
     – Não faço a menor ideia. Eu não sei quem é que inventa essas coisas. Algum maluco que não tinha o que fazer.
     – E se a gente fosse atrás desse maluco?
     – Pra quê?
     – Ué, se foi ele que inventou, ele vai te ensinar muito melhor do que eu.
     E você vai poder sair rapidinho por aí fazendo os teus picadinhos. Você não acha? – E Mestre Sorriso deu mais um toque no berimbau. Ana Olívia se sentia confusa, confusa. E pensava: “o que será que tá acontecendo?”.
     – Você quer descobrir como nasceu a capoeira? – Outro toque. Aquele som! Ana Olívia começou a desconfiar que era ele que a deixava zonza.
     – Vamos, você está com todo o tempo do mundo. Foi expulsa da escola, né?
     Ana Olívia ia perguntar como ele sabia daquilo, mas acabou só balançando a cabeça para dizer que sim. E Mestre Sorriso continuou:
     – Eu levo você lá.
     Ana Olívia ia perguntar: “lá aonde?”, mas não conseguiu. Algo muito estranho estava realmente acontecendo naquela sala. Ana Olívia tinha a sensação de que estava flutuando. Como podia? Ela olhou em volta e viu que Mestre Sorriso também flutuava, enquanto tocava mais e mais seu berimbau.
     – Eu tô sonhando que tô voando – disse Ana Olívia.
     – Mas é um sonho bem real esse, não é? E você não disse que queria ter asas nos pés?
     – Mas como é que você faz isso? Você é mágico?
     – Eu não. Mas meu berimbau é – e Mestre Sorriso tocou mais forte, enquanto cantava:

– Berimbau foi instrumento
Que nasceu lá na Bahia.
Que nasceu lá na Bahia, camará.

Berimbau é um invento
Que tem ritmo e magia.
Que tem ritmo e magia, camará.

E ele sempre vai cantar
Pra quem o acaricia.
Pra quem o acaricia, camará.

     E os dois foram girando e voando e voando e girando pra fora daquela sala e da casa. Ana Olívia só teve tempo de perguntar:
     – E pra onde ele tá levando a gente, Mestre Sorriso?
     Mas não escutou a resposta.


JÁ LEU SEU TREVISAN HOJE?


Uma amiga que pede para eu não revelar sua identidade foi ao médico. O doutor auscultou-a, mediu sua pressão e analisou detalhadamente o calhamaço de exames que ela levava. Depois pegou o receituário mas, em vez de escrever o nome ilegível de algum remédio, ficou com a caneta balançando na mão e disse:
- Você deve ler Dalton Trevisan toda noite.
É um caso estranho mas eu aconselhei minha amiga a seguir a receita médica. Nunca se sabe se Dalton Trevisan é a cura ou a doença. O vampiro de Curitiba já foi considerado uma espécie de praga. Mas este ano parece que está mais para a cura. Ganhou o Prêmio Camões, considerado o maior da literatura de língua portuguesa, e o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Mas continua sumido. Ou está só um pouco oculto atrás de seus textos.

E você? Já leu seu Trevisan hoje?


111.

Amor – esse mesmo dedo amputado que se ergue e te aponta.

Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.


DIA DE MATAR PORCO

Aos setenta anos, Onofre era velhinho sem moral. Bebia desde manhã e, borracho, maltratava a mulher. Por vezes, recolhia dama no sítio, atropelando a companheira. Os filhos casados, a pobre pedia pouso na vizinhança. Enfim o recado que voltasse para ele. Onofre tornava a beber e batia sem dó.
Fugiu Sofia para casa de uma filha, descansar um pouco das surras e, ao mesmo tempo, esperar que se acalmasse. O velho resolveu carnear um porco, avisou que viesse lidar com o bicho. Quem atendeu foi a filha Natália.
─ E a mãe, onde está?
─ Lá em casa.
─ Se ela não vem, eu vou lá. Esfolo uma por uma.
Recebido o recado, a dona achou melhor voltar. Deu com a porta aberta, garrafa vazia por todo canto. Acendeu o fogo para derreter a banha.
─ Ah, você está aí? É bom, porque é teu dia. Hoje acabo com tua vida.
Onofre investiu a soco e pontapé:
─ Outra vez fique em casa e cuide do teu homem.
A velha livrou o braço, ferrou-lhe as unhas no rosto:
─ Eu ando onde quero. Você não me manda.
A muito custo, Sofia chegou até à janela. O velho empinou a garrafa para cobrar fôlego. Ela rolou no monte de lenha picada. Onofre saiu cambaleando:
─ Será que esta cadela fugiu?
Escondida debaixo da carroça, ouvia-o estralar o chicote.
─ Se não fugisse, hoje o fim da tua vida.
Era ela o porco que o velho pretendia carnear. Onofre a buscava no paiol. Ela entrou em casa, armou-se com a espingarda pica-pau, de chumbo perdigoto.
─ Ah, você está aí.
─ Olhe o que me fez, seu bandido.
Onofre espiou de longe, meio ressabiado. A velha toda ferida era uma sangueira.
─ É só pelanca. Já não preciso de você. Outra mais moça.
Sentou-se no banco diante da casa. Bebeu no gargalo: ia embora do sítio, antes acabava com todos. Fingiu de dorminhoco para que Sofia se distraísse.
Com grande alarido vibrava chicotadas na perna, gostando de ver os pulos aflitos da mulher, que trazia na orelha esquerda a marca de uma dentada.
─ É certo, velha, que teve um filho em solteira?
─ Isso eu não conto. Isso não há-de saber até o dia de tua morte.
Aos gritos chegou a filha Natália:
─ Que é isso, pai?
─ A porqueira me fugiu.
Sofia surgiu de trás da cerca.
─ Não fugi. Estou aqui.
Apesar de embriagado, Onofre estava firme. Corria de um lado para outro, estralava o chicote. Então a espingarda explodiu, levantando um bando de passarinhos no caquizeiro, o velho foi ao chão. Era tiro de espingarda pica-pau e foi para assustar, mas acertou na barriga de Onofre. Caiu de costas, meio que se ergueu e voltou a cair.
─ Velha, me acuda. Estou atirado.
Olho branco, estirou-se no terreiro. Pediu um gole d'água. Sofia trouxe a caneca. Estava mudo, a garrafa na canhota, o chicote na destra. Bem quieto, assim escutasse o pio dos pardais que anunciavam chuva.

Dalton Trevisan, no livro Cemitério de Elefantes. Editora Record.


38.

- Se você me deixa, ó cara, quem espreme as tuas espinhas nas costas? E recorta no teu dedão, com tanto amor, essa unha encravada?

Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.

Além da invisibilidade, Dalton cultiva outra característica pessoal que o liga aos vampiros: o horror ao presente. Tornou-se um sujeito inadaptado, em eterno conflito com seu tempo, preso às lembranças de um mundo que acabou e que, hoje, só sobrevive em suas narrativas. Ele mesmo já definiu o papel do escritor, certa vez, como o de um “vampiro de almas”. Espírito do passado detido em um mundo futurista, Dalton se recusa a existir. Mas Curitiba não seria Curitiba sem a presença ausente de Dalton Trevisan. É como se ele tivesse se transformado num zelador do passado, vigiando as ruínas da cidade verdadeira que a modernização se encarregou de soterrar. Guardador do passado, Dalton passa a ter o poder de apontar a falsidade do presente. Não é sem razão que a Curitiba moderna lhe desagrada: cidade do design, do marketing e dos arquitetos, tem um rosto que a deixa (para o bem ou para o mal) em sincronia com seu tempo, e essa claridade solar é tudo de que um vampiro mais deseja fugir.

Já em O Vampiro de Curitiba, o conto de 1965 que terminou por ligar a imagem de Dalton definitivamente ao vampirismo, o vampiro é apenas uma metáfora da obsessão sexual. Os personagens são pessoas comuns da classe média baixa, com a vida monótona e o sexo como último consolo. Nelsinho, o protagonista do conto, com um apetite sexual insaciável, sai às noites pelas ruas de Curitiba para perseguir mulheres. A imagem é quase ingênua: Nelsinho precisa do sexo a qualquer custo, assim como os vampiros necessitam do sangue de suas vítimas para sobreviver. Tudo se dá, como sempre ocorre em Dalton Trevisan, de modo muito simples e direto. As histórias de Dalton se passam em ritmo substantivo e acelerado. Seus diálogos são curtos, desprovidos de divagações ou, como diriam seus críticos menos inspirados, “sem profundidade”. Ele não perde tempo com exercícios de estilo, nem está preocupado em mostrar que “escreve bem”. Só grandes escritores como Dalton, aliás, podem dispensar a beleza com tanta displicência.

José Castello, em Dalton Trevisan – o manto do vampiro, no livro Inventário das Sombras, Editora Record.


CEMITÉRIO DE ELEFANTES

À margem esquerda do rio Belém, nos fundos do mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro - ali os bêbados são felizes. Curitiba os considera animais sagrados, provê às suas necessidades de cachaça e pirão. No trivial contentam-se com as sobras do mercado.
Quando ronca a barriga, ao ponto de perturbar a sesta, saem do abrigo e, arrastando os pesados pés, atiram-se à luta pela vida. Enterram-se no mangue até os joelhos na caça ao caranguejo ou, tromba vermelha no ar, espiam a queda dos ingás maduros.
Elefantes malferidos, coçam as perebas, sem nenhuma queixa, escarrapachados sobre as raízes que servem de cama e cadeira. Bebem e beliscam pedacinho de peixe. Cada um tem o seu lugar, gentilmente avisam:
- Não use a raiz do Pedro.
- Foi embora, não sabia?
- Aqui há pouco...
- Sentiu que ia se apagar e caiu fora. Eu gritei: Vai na frente, Pedro, deixa a porta aberta.
A flor do lodo borbulha o mangue - os passos de um gigante perdido? João dispõe no braseiro o peixe embrulhado em folha de bananeira.
- O Cai N`água trouxe as minhocas?
- Sabia não?
- Agora mesmo ele...
- Entregou a lata e disse: Jonas, vai dar pescadinha da boa.
Lá do sulfuroso Barigui rasteja um elefante moribundo.
- Amigo, venha com a gente.
Uma raiz no ingazeiro, o rabo de peixe, a caneca de pinga.
No silêncio o bzzz dos pernilongos assinala o posto de um e outro, assombrado com o farol piscando no alto do morro.
Distrai-se um deles a enterrar o dedo no tornozelo inchado. Puxando os pés de paquiderme, afasta-se entre adeuses em voz baixa - ninguém perturbe os dorminhocos. Esses, quando acordam, não perguntam aonde foi o ausente. E, se indagassem, para levar-lhe margaridas do banhado, quem saberia responder? A você o caminho se revela na hora da morte.
A viração da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés disformes. Nas folhas do ingazeiro reluzem lambaris prateados - ao eco da queda dos frutos os bêbados erguem-se com dificuldade e os disputam rolando no pó. O vencedor descasca o ingá, chupa de olho guloso a fava adocicada. Jamais correu sangue no cemitério, a faquinha na cinta é para descamar peixe. E, aos brigões, incapazes de se moverem, basta xingarem-se à distância.
Eles que suportam o delírio, a peste, o fel na língua, o mormaço, as câimbras de sangue, berram de ódio contra os pardais, que se aninham entre as folhas e, antes de dormir, lhes cospem na cabeça - o seu pipiar irrequieto envenena a modorra.
Da margem contemplam os pescadores mergulhando os remos.
- Um peixinho aí, compadre?
O pescador atira o peixe desprezado no fundo da canoa.
- Por que você bebe, Papa-Isca?
- Maldição de mãe, uai.
- O Chico não quer peixe?
- Tadinho, a barriga d`água.
Sem pressa, aparta-se dos companheiros cochilando à margem, esquecidos de enfiar a minhoca no anzol.
Cospe na água o caroço preto do ingá, os outros não o interrogam: presas de marfim que apontam o caminho são as garrafas vazias. Chico perde-se no cemitério sagrado, as carcaças de pés grotescos surgindo ao luar.

Dalton Trevisan, no livro Cemitério de Elefantes, editora Record.


SÓ MEU

Descansa a pobre mulher.
No velório o viúvo e a filha solteirona se abraçam e choram.
Ela aperta-lhe a mão com força.
- Você agora é só meu, pai. Só meu.

Dalton Trevisan, no livro Arara Bêbada, Editora Record.


UMA VELA PARA DARIO

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo. Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque. Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado.O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar.Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta.Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espumas surgiram no canto da boca. Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver.Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela.O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada,soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede.Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado. A velinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o taxi da esquina. Já no carro a metade do corpo,protestou o motorista: -Quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede-não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata. Alguém informou da farmácia na outra rua.Não carregaram Dario além da esquina;a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado.Foi largado na porta de uma peixaria.Enxame de moscas lhe cobriu o rosto,sem que fizesse um gesto para espantá-las. Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario ficou torto como o deixaram,no degrau da peixaria, sem relógio de pulso.Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados- com vários objetos- de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca.Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença.O endereço na carteira era de outra cidade .Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas:era a polícia.O carro negro investiu a multidão.Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes. O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo – os bolsos vazios.Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo- só podia destacar umedecida com sabonete.Ficou decidido que o caso era com o rabecão.A última boca repetiu – Ele morreu, ele morreu.A gente começou a se dispersar.Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim.Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo ar de um defunto. Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos. Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva. Fecharam-se uma a um as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

Dalton Trevisan, no livro Vinte Contos Menores, Editora Record.

Este texto também está no livro Os Cem Melhores Contos Brasileiros Do Século, seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva.


23

Com a morfina seu João esmorece, aliviado.
- Agora está melhor. Chegando o fim.
À sombra da laranjeira trina o canarinho. A velha espia da porta, sem coragem de entrar. Ele geme.
- Puxa, como dói.
Num longo suspiro:
- Agora me vire. Bem deva...
No meio da palavra, se foi. A velha pára o relógio da sala - cinco e dez em ponto. Pintassilgo, canário, sabiá começam a cantar. Bem o velho tinha razão:
- Quando está pra chover eles fazem música.

Dalton Trevisan, no livro Ah, É?, Editora Record.


Felizmente, Dalton Trevisan está condenado a ser sempre Dalton Trevisan. Sua nota pessoal é imutável e está no seu texto cada vez mais cerrado. O escritor busca sem descanso uma concisão, que é cada vez mais rica. Asceta impenitente, suas histórias se escrevem com palavras e com silêncio.

Otto Lara Resende


QUEM TEM MEDO DE VAMPIRO?

Há que de anos escreve ele o mesmo conto? Com pequenas variações, sempre o único João e a sua bendita Maria. Peru bêbado que, no círculo de giz, repete sem arte nem graça os passinhos iguais. Falta-lhe imaginação até para mudar o nome dos personagens. Aqui o eterno João: “Conhece que está morta.” Ali a famosa Maria: “Você me paga, bandido.”
Quem leu um conto já viu todos. Se leu o primeiro pode antecipar o último – bem antes que o autor. É a sagrada família de barata leprosa com caspa na sobrancelha, rato piolhento na gravata de bolinha, corruíra nanica do dentinho de ouro. Trincando broinha de fubá mimoso e bebendo licor de ovo?
Mais de oitenta palavras não tem o seu pobre vocabulário. O ritmo da frase, tão monótona quanto o único tema, não é binário nem ternário, simplesmente primário. Reduzida ao sujeito sem objeto, carece até de predicado – todos os predicados.
Presume de erótico e repete situações da mais grosseira pornografia. No eterno sofá vermelho (de sangue?) a última virgem louca aos loucos beijos com o maior tarado de Curitiba. Explica-se: não foi ele fabricante de tradicionais vasos de barro? E seus contos, o que são? Miniaturas de bispote em série, com florinha e filete dourado.
Um mérito não se lhe pode negar: o da promoção delirante. Faz de tímido, não quer o rosto no jornal – e sempre o jornal a publicá-lo. Nunca deu entrevista e quanta já foi divulgada, com foto e tudo? Negar o retrato é uma secreta forma de vaidade, a outra face do cabotino.
Pretende, forte modéstia, ser o último dos contistas menores – e não é que tem razão? Aliás, nem contista. Nas frases mutiladas e estripadas, um simples cronista de fatos policiais. Nele não há outra postura ética e moral. Nem simpatia e amor pelo semelhante. Só e sempre os tipos superficiais de dramalhão, fantoches vazios, replicantes sem alma. Vítimas e carrascos no circo de crueldade, cinismo, obsessão do sexo, violência, sangue – e onde o único toque de humor? Iconoclasta ou alienado, abomina o social e o político. Daí as criaturas desumanas, os velhinhos pedófilos, museu de monstros morais, como reconhecer num deles o teu duplo e irmão?
Mestre, sim, no plágio descarado: imita sem talento o grafito do muro, a bula do remédio, o anúncio da sortista, a confissão do assassino, o bilhete do suicida. Sinistro espião de ouvido na porta e olho na fechadura. Não é o pasticho a falsa moeda desse mercador sovina de gerúndios?
Exibicionista, quer o nome sempre em evidência. Já ninguém fala ou escreve sobre seus livros – e você os suporta, um por ano, todo ano? Na fúria do ressentido, busca atingir as nossas glórias sacrossantas: Emiliano, a poesia, Turin, a escultura, Mossurunga, a música. Tudo em vão: a grotesca imagem do vampiro já desvanecida aos raios fúlgidos da História.
Pérfido amigo, usará no próximo conto a minha, a tua confidência no santuário do bar. Cafetão de escravas brancas da louca fantasia, explora a confiança de velhas, viúvas e órfãs. Ó maldito galã de bigodinho e canino de ouro, por que não desafia os poderosos do dia: o banqueiro, o bispo, o senador, o general?

Dalton Trevisan, no livro DINORÁ, Editora Record


NERO

Eu, o piromaníaco.
O teu corpo de brasa viva, sarça ardente, línguas de fogo...
Você: Curitiba em chamas!

Dalton Trevisan, no livro Arara Bêbada, Editora Record.


18.
Assustada, a velha pula da cadeira, se debruça na cama:
- João. Fale comigo, João.
Geme lá no fundo, abre o olhinho vazio:
- Bruuuxa... diaaaba...
- Ai, que alívio. Graças a Deus.

Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.


AS LOUCURAS DO MINOTAURO


— Sabe que toda família curitibana tem um louquinho fechado no porão?
— ...
— Não. Sente no sofá. Aqui é melhor.
— Estou com pressa doutor.
— É loiro natural teu cabelo?
— Clareio com xampu.
— Pensou na minha proposta?
— Não vim aqui para isso.
— De fato. É que a assinatura na procuração não confere.
— Uns rabinhos que inventei. Para enfeitar. Só de nervosa.
Pego na mãozinha — ela deixa.
— O que eu quero é isso. Por mim ficava a manhã inteira. Namorando você. Mãozinha dada. É o que me basta.
Longe o olhinho azul, quem está enjoada de ouvir elogio.
Me achego e beijo a face — sem pintura, que maravilha. Fagueira penugem de nêspera madurinha.
— Na boquinha? Bem de leve.
— Não.
— Hoje está cheirosa.
Perfumou-se para vir aqui. Mais indiferente que pareça.
— É francês.
— Nem precisa. Já viu macieira iluminada em flor toda suspirosa de abelha?
É você.
— ...
— Me conte a tua vida. Disse que trabalha desde os onze anos. O que aconteceu nos últimos dez?
— Primeiro a mãe veio morar aqui. Viúva, uma tropa de filhos. De oito sou a terceira. Ela não se acostumou. Daí eu fiquei. Como um traste esquecido.
— Morava com quem?
— Na casa de outra menina.
— Pagava com meu trabalhinho. Na vida nada é de graça. Daí fui mudando de emprego. E hoje aqui estou. Sofrida e triste.
— Esses anos terão sido difíceis. Não quer ou não gosta de falar? A palma de tua mão está úmida. Será de aflita?
Os dedos entrelaçados, vez em quando os aperto — uma em cinco ela responde.
— Acho que sim.
- De mim não tenha medo.
— E hei de ter?
— Já que não fala de tua vida. Me conte como você é. Que mãozinha linda. Quanto você tem de quadril?
— Não sei.
Afagando e medindo coxa acima.
— Calculo uns noventa.
— Emagreci bastante.
— E o teu peitinho? Posso pegar?
Alcanço o primeiro botão da blusinha branca, já se defende.
— Assim não.
— Como será que é? Muita vontade de ver o biquinho.
— Igual ao das outras.
— Aí que se engana. Cada peitinho é diferente. Um tem o bico mais escuro. Outro durinho e rosado. O teu deve ser assim.
— Nunca reparei.
— Sabe que um é mais pequeno que outro? Será o teu esquerdo?
— ...
— De uma, o seio raso da taça de champanha. De outra, bojudo copo de conhaque para aquecer na palma da mão.
— ...
— Pensou na minha proposta? Umas poucas de concessões.
— Como assim?
— Primeiro pego na tua mão. O que já deixou. Isso é bom. Me faz tanto bem.
Não me contenho e agarro uma e outra.
— Depois te apalpo. Aqui.
Em delírio apalpo a coxa trêmula.
— Daí te beijo. Não esse beijinho na face. Um turbilhão louco de beijos.
E dou um, dois, três. De leve, para não assustar.
— Enfim um beijo de língua. Que você retribui.
Dardejo a linguinha de lagartixa sequiosa debaixo da pedra.
— Sabe o que é acabar?
— ...
— Sabe ou não?
— Para mim é terminar alguma coisa.
— Não é bem isso. Os livros dizem orgasmo. A parte mais gostosa do ato sexual. Já experimentou?
— Não sei o que é.
— Será que é fria? Ou não achou quem te entendesse. Te iniciasse com doçura e paciência. Sabe o que eu faria?
— ...
— Te ajudava a baixar essa calça azul. Abria as tuas pernas. E com este dedinho acordava o teu vulcão.
— Credo, doutor.
Interessada, quem sabe. Um tantinho incrédula.
— Nunca mais seria a mesma. Chamaria você de nuvem, anjo, estrela. O que alguém jamais disse a ninguém. Sabe, Maria?
— ...
— Você é a redonda lua verde do olho amarelo...
— Nossa, doutor.
— ...que, aos cinco anos, desenhei na capa do meu caderno escolar.
— ...
— Mimosa flor com duas tetas. Dália sensitiva com bundinha.
— ...
— Uma empadinha recheada de camarão e premiada com azeitona preta.
— ...
— Já viu canarinha branca se banhando de penas arrepiadas na sua tigela florida?
— ...
— Você faz de mim uma criança com bichas que come terra.
- Assssim eu encabulo, doutor.
— No meio das pernas um botão chamado cli-tó-ris. Ali é que meu dedinho ia bulir.
Cada vez mais afrontada e afogueada.
— Depois te beijava da ponta do cabelo até a unha encarnada do pé. Cada pedacinho escondido de teu corpo. Afastava essa coxa branquinha de arroz lavado em sete águas. E me perdia no teu abismo de grandes lábios de rosa.
Agora a mãozinha quente e molhada.
— Sou homem de certa idade. Com a minha vivência faria você sentir prazer até no terceiro dedinho do pé esquerdo. De tanto gozo sairia flutuando pela janela sobre os telhados da praça Tiradentes.
— ...
— E virgem, se quiser, você continua.
—...
— Juro que te respeito. Como está me vendo assim eu fico: todinho vestido. De colete abotoado e gravata.
— ...
— Até de óculo. Só tiro o paletó. Nenhum perigo para você.
— ...
— Em troca dessa alegria lhe ofereço um prêmio. Duas notas novas.
—...
— Quer experimentar hoje?
— Próxima vez eu resolvo.
— Por que não agora? Já está aqui. Tão fácil. Até chovendo. Mais aconchegante.
— Hoje, não.
— Você que sabe. Só não creio na tua frieza. Tudo me diz que é moça fogosa. Essa boca vermelha e carnuda. É de quem gosta. Mais uma coisa, anjo. Enquanto eu falava, o teu narizinho abria e fechava.
— ...
— Veja. Como está fremente.
— ...
— Ninguém te diz nada? O noivinho não te canta?
— Cantar, todos cantam. Eu sei me defender.
— Por que a cisma da virgindade? Se gosta dele, algum mal em deitar no sofá?
— Prefiro assim. Ele é ciumento. Sempre está brigando.
— Monstro moral. Só quer para ele. Já provou beijo de noventa segundos?
— Não contei.
— Ao teu noivo falta imaginação. Fico um dia inteiro olhando você. De joelho e mão posta. Louvado essas graças que Deus te deu. Agora um beijinho. Na boca.
Seguro o rosto, forcejo, ela resiste.
— Ah, ingrata. Que tamanho o teu pé. Isso você sabe.
— Trinta e cinco.
— Bonitinho deve ser. Aposto que sem joanete. Sabe que as moças se masturbam? Você não tem experiência? Todas têm. De noite pensa num rapaz bonito e brinca com o dedinho. Nunca fez isso?
Sem resposta.
— Teu noivo é bonito?
— Nem tanto.
— Então algum artista famoso. Deixa ler a palma da mão.
De repente muito curiosa.
— Este xis é uma boa notícia. Que não esperava.
— O quê?
— Rolar comigo no tapete.
Nem sorri.
— Você não sonha, amor?
— Todos sonham. Eu, ter o meu cantinho.
— Não é isso. De olho aberto. Visões eróticas. Em toda família...
— É tarde. Preciso ir, doutor.
- Então me dá um abraço. Assim.
Envolvo-a nos braços. Ela não corresponde.
— Ai, me deixa. Beijar essa carinha mais santa.
E osculo as duas faces rosadinhas.
— Agora a tua vez.
Um furtivo beijo. Seco, unzinho só.
— Aqui o teu presente.
— Não posso, doutor.
— Sabe que toda família curitibana...
— Sou moça de princípios.
— ...tem um louquinho fechado no porão?
— Cruzes, doutor.
Ó maldito Minotauro uivando e babando perdido no próprio labirinto.
— Me trate de você. Doutor já não sou. Apenas um doidinho manso. De paixão cativo.
Indecisa, morde o beicinho.
— De mim o que vai pensar?
Guarda na bolsa as duas notas. E concede o primeiro sorriso.

111.


Amor – esse mesmo dedo amputado que se ergue e te aponta.


Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.



Se você vai ler Dalton Trevisan pela primeira vez, eu o invejo. Não é todos os dias que temos essa revelação do primeiro encontro com um grande escritor. Digo-lhe mais: você vai encontrar Dalton Trevisan em um dos melhores momentos, este Cemitério de Elefantes.
Os elefantes são, por definição, mitológicos, não tivessem eles carregado o mundo no dorso durante tanto tempo. Dalton Trevisan é também um mito.
[...]
Os elefantes morrem na solidão, você sabe, e além da tromba e do marfim têm os seus dias de circo e furor. No mais, são medíocres e pacíficos. Não diferem muito dos homens. Para Dalton Trevisan, os homens vivem sua florestazinha particular, num assombro. O homem e a mulher são animais que precisam de ternura e de sonho, e se alimentam de frustrações e de chocolates.


Fausto Cunha, na orelha do livro Cemitério de Elefantes.

O BAILE DO COLIBRI NU


SENTADINHO na escada, mão no queixo: a carinha enrugada no corpo do menino de oito anos. Em cada olhinho suspensa uma lágrima vermelha.
O doutor abre a porta. Mais que o João se esforce, não acodem as pernas.
— Fique sentado, rapaz. O que foi?
— O juiz me chamou. Quer pensão, a desgracida.
— A Maria?
— Amanhã no fórum. Dez horas. Levo o doutor comigo.
— O oficial de justiça que intimou?
— Dou uma nota para o doutor.
— Não posso, João. Amanhã eu viajo. Ouça meu conselho.
— Então não vou.
— Se foi chamado, vá. Mas não assine nada. Entendeu bem?
— Estou carpindo a rocinha.
— Que rocinha é essa?
Chega-se o parceiro das noitadas no Balaio de Pulga.
— Sou o Carlito, doutor. É uma rocinha de milho. Às meias com o Perereca.
— Ih, meu Deus. Logo o Perereca. Não é ele que bebe?
— Mais que o pai, doutor.
— Só milho torto há de vingar.
João cabeceia, um fio de baba fosfórea no queixo imberbe.
— Oi, João. Está me ouvindo?
Exibe a linguinha azul do vinagrão — uma ostra que não pode engolir nem cuspir.
— O doutor vai. Não é, doutor?
— Já disse que não. Você deve ir. Só não assine.
Derruba no joelho o chapelão de palha, um risco branco na testinha lavada de suor frio.
— Já sei. Não assino.
Grugruleja um palavrão e oscila perigosamente no degrau. .
— Carlito, não é? Me diga. Ele quis mesmo se enforcar?
Subiu na cadeira, enfiou a corda no pescoço, o nó correu. E caiu de pé bem vivinho.
— E a Maria? Está com o André?
— Do André não sei. Com o Joaquim é todo dia. Não tem segredo.
— Como é que pode? Feia, peluda, óculo escuro?
— Tem mais, doutor. Quando estavam juntos, o João voltou de repente. As duas da tarde. Deu com ela e o Juca. Na cama.
— Não adiantou prendê-la na garupa da bicicleta.
— Pelas costas só xinga de Colibri o hominho.
— E os barracos quantos são?
— Eram três. Agora dois. Vendeu um, que foi desmanchado. E bebeu todinho no Balaio de Pulga.
O triste colibri ressona, bolhas de espuma no canino de ouro.
— Ei, João? E a tua filha, João? Com quem ficou?
— Diabo de nego. Toquei o porco do nego.
— Você não respondeu. Está com você? Ou com a Maria?
— Comigo. Tanto quer saber. Ajeitei o paiol para o nego.
— Que negro é esse?
— ...
— O negro fez arte com a menina, doutor.
— Peste de nego. O nego sujo.
— Deu queixa para o sargento?
Sacode a cabecinha grisalha, bate a pestana que já se fecha.
— O doutor não sabia do baile nu?
— Epa, que história é essa?
— O negro já de olho na menina. Que é bonitinha. Embebedou o João. O negro na cachaça. O João no vinho tinto. E deu a ideia do baile.
— Barbaridade.
— Trouxe a filha do Gervásio para o Colibri. E quis para ele a menina.
— Ah, negro safado.
— O doutor sabe aquela radiolinha do João? Ligou a todo o volume. Nosso Colibri, o mais pequeno e barulhento. No melhor da festa os vizinhos reclamaram do barulho. E a polícia acabou com o baile.
— Não me diga.
— Quando chegou o sargento viu todos pelados. O negro com a menina do João. E ele com a filha do Gervásio. De doze anos. Que tinha fugido do asilo.
Daí o Carlito ri gostoso. O doutor dá um passo para trás.
— Ele se gabou. Fui preso, sim. E batia no peitinho sem nenhum cabelo. Antes derrubei dois praças.
— Pouca vergonha, João.
— Dele não é a culpa, doutor. Foi o negro. O sargento abriu a porta, a música bem alto — e todo mundo nu. .
— Com a menina de doze anos!
— Tivesse mais, doutor, já seria maior que ele.
— ...
— Não fez mal para ela. O negro, esse, fugiu pela janela. Mas o João foi fácil. Carregado — nu e esperneando de botinha vermelha — no colo de um praça. Sem tempo de alcançar a pistolinha.
— O último dos heróis.
— Levaram para a cadeia. As meninas na sala do sargento. Não é que o velho Gervásio quis dar parte do João? A guria, sorte dele, estava inteira.
—...
— O negro, sim, perdeu a filha do João. Um negro daquele tamanho, já viu? E o juiz casou com separação.
— De corpos. E o bandido guardou a menina?
- O João arrumou para os dois o ranchinho dos fundos.
Furioso o colibri ostenta na cinta o punhal e a pistolinha.
— Esse nego porco. O diabo do nego sujo.
— Entendeu bem, João? Você precisa ir. Nada não assine.
Repuxa no pescocinho o enorme lenço encarnado.
— O doutorzinho é meu pai.
— Só faça trato de boca.
— Os três barracos são meus. O hominho que ganhou. Foi o hominho que trabalhou.
— Metade é do hominho. E metade da Maria.
— Não se fie, doutor. Essa é uma traidora: De que lado o doutor está?
— Vá para casa, João. Dormir na cama.
O gigante dos colibris ergue-se no salto da botinha.
— Acuda o hominho.
Pende para cá e para lá, upa, abraçado na palmeira.
— Não vai longe esse hominho.


Dalton Trevisan, no livro Virgem Louca,Loucos Beijos, Editora Record.


100.


A velhinha:
- Se um de nós faltar... ai, João... o que vai ser de mim?


Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.


NOVE HAICAIS


1
Dou com um perneta na rua e, ai de mim, pronto começo a manquitolar.


2
Uma bandeja inteira de pastéis. Como escolher um deles? São tantos.
— Fácil: deixe que ele te escolha.


3
A tipinha de tênis rosa para o avô que descola um dinheirinho:
— Pô, você me salvou a vida, cara!


4
O inimigo de futebol:
— O meu amor pela Fifi é maior que o amor pelo Brasil.
A doce pequinesa que sofre dos nervos com a guerra da buzina, corneta, bombinha, foguete.


5
— Sabe o que o João deu para o nenê, filho dele? Meia dúzia de fraldas e um pião amarelo.


6
— Casei com uma puta do Passeio Público. Tinha tanto piolho que, uma noite dormia de porre, botei um pó no cabelo dela. Dia seguinte, lavou a cabeça e ficou meia cega.


7
De repente a mosca salta e pousa na toalha branca. Você a espanta, sem que voe — uma semente negra de mamão.


8
Parentes e convidados rompem no parabéns pra você. De pé na cadeira, a aniversariante ergue os bracinhos:
— Pára. Pára. Pára.
Na mesa um feixe luminoso estraga o efeito das cinco velinhas.
— Mãe, apaga o sol.


9
A chuva engorda o barro e dá de beber aos mortos.


Dalton Trevisan, no livro Dinorá, Editora Record.


90.


A barata – hóstia da náusea metafísica que se oferece às três da manhã na tua missa negra da insônia.


Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.



EM BUSCA DA CURITIBA PERDIDA


Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja. Curitiba cedo chegam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça - galiii-nha-óóó-vos - não é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental discursa para a estátua do Tiradentes.
Viajo Curitiba dos conquistadores de coco e bengalinha na esquina da Escola Normal; do Jegue, que é o maior pidão e nada não ganha (a mãe aflita suplica pelo jornal: Não dê dinheiro ao Gigi); com as filas de ônibus, às seis da tarde, ao crepúsculo você e eu somos dois rufiões de François Villon.
Curitiba, não a da Academia Paranaense de Letras, com seus trezentos milhões de imortais, mas a dos bailes no 14, que é a Sociedade Operária Internacional Beneficente O 14 De Janeiro; das meninas de subúrbio pálidas, pálidas que envelhecem de pé no balcão, mais gostariam de chupar bala Zequinha e bater palmas ao palhaço Chic-Chic; dos Chás de Engenharia, onde as donzelas aprendem de tudo, menos a tomar chá; das normalistas de gravatinha que nos verdes mares bravios são as naus Santa Maria, Pinta e Nina, viajo que me viaja.
Curitiba das ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço; da zona da Estação em que à noite um povo ergue a pedra do túmulo, bebe amor no prostíbulo e se envenena com dor-de-cotovelo; a Curitiba dos cafetões - com seu rei Candinho - e da sociedade secreta dos Tulipas Negras eu viajo.
Não a do Museu Paranaense com o esqueleto do Pithecanthropus Erectus, mas do Templo das Musas, com os versos dourados de Pitágoras, desde o Sócrates II até os Sócrates III, IV e V; do expresso de Xangai que apita na estação, último trenzinho da Revolução de 30, Curitiba que me viaja.
Dos bailes familiares de várzea, o mestre-sala interrompe a marchinha se você dança aconchegado; do pavilhão Carlos Gomes onde será HOJE! SÓ HOJE! apresentado o maior drama de todos os tempos - A Ré Misteriosa; dos varredores na madrugada com longas vassouras de pó que nem os vira-latas da lua.
Curitiba em passinho floreado de tango que gira nos braços do grande Ney Traple e das pensões familiares de estudantes, ah! que se incendeie o resto de Curitiba porque uma pensão é maior que a República de Platão, eu viajo.
Curitiba da briosa bandinha do Tiro Rio Branco que desfila aos domingos na Rua 15, de volta da Guerra do Paraguai, esta Curitiba ao som da valsinha Sobre as Ondas do Iapó, do maestro Mossurunga, eu viajo.
Não viajo todas as Curitibas, a de Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de Alberto de Oliveira do céu azulíssimo; a de Romário Martins em que o índio caraíba puro bate a matraca, barquilhas duas por um tostão; essa Curitiba não é a que viajo. Eu sou da outra, do relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto; dos sinos da igreja dos Polacos, lá vem o crepúsculo nas asas de um morcego; do bebedouro na pracinha da Ordem, onde os cavalos de sonho dos piás vão beber água.
Viajo Curitiba das conferências positivistas, eles são onze em Curitiba há treze no mundo inteiro; do tocador de realejo que não roda a manivela desde que o macaquinho morreu; dos bravos soldados do fogo que passam chispando no carro vermelho atrás do incêndio que ninguém não viu, esta Curitiba e a do cachorro-quente com chope duplo no Buraco do Tatu eu viajo.
Curitiba, aquela do Burro Brabo, um cidadão misterioso morreu nos braços da Rosicler, quem foi? quem não foi? foi o reizinho do Sião; da Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo, esta Curitiba viajo.
Curitiba sem pinheiro ou céu azul pelo que vosmecê é - província, cárcere, lar - esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo.

Dalton Trevisan, no livro Mistérios de Curitiba, Editora Record.


53.


Tão deprimida. Bebo em jejum dois copos do vinho laranja. Fico bem tonta. E varro alegrinha a casa inteira.


Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.



O contista dessacraliza a morte, incorpora-a ao nosso mundo diário, retira-lhe o nimbo mítico, ritualístico. Como em relação a outros temas, o insuperável estilista capta-a nas imagens fragmentárias da vida. Da morte desmistificada, ao nível dos interesses e da mesquinhez das humanas paixões, resulta o efeito entre trágico e ridículo que é um desafio impiedoso a todos nós. E nenhuma figura da escrita literária mostra-se mais adequada para isso do que a elipse, com a sua carga potencial de sugestão, a significar o máximo com o mínimo essencial de palavras. E, muitas vezes, só com as pausas, as reticências , o silêncio.


Haroldo Bruno



AH, É?
(ministórias)


01
Domingo inteiro em pijama, coça o umbigo. Diverte-se com os pequenos anúncios. Em sossego na poltrona, entende as borbulhas do gelo no copo de bebida. Uma velhice tranquila, regando suas malvas à janela, em manga de camisa. Única dúvida: ganhará o concurso de palavras cruzadas?


02
Rataplã é o gato siamês. Olho todo azul. Magro de tão libidinoso. Pior que um piá de mão no bolso. Vive no colo, se esfrega e ronrona.
— Você não acredita. Se eu ralho, sai lágrima azul daquele olho.
Hora de sua volta do colégio, ele trepa na cadeira e salta na janela. Ali à espera, batendo o rabinho na vidraça.
Doente incurável. O veterinário propõe sacrificá-lo. A moça deita-o no colo. Ela mesma enfia a agulha na patinha. E ficam se olhando até o último suspiro nos seus braços. Nem quando o pai se foi ela sentiu tanto.


03
Ao tirar a calcinha, ele rasga. Puxa com força e rasga. Vai por cima. Ó mãezinha, e agora? Com falta de ar, afogueada, lavada de suor. Reza que fique por isso mesmo.
Chorando, suando, tremendo, o coração tosse no joelho. Ele a beija da cabeça ao pé — mil asas de borboleta à flor da pele. O medo já não é tanto. Ainda bem só aquilo. Perdido nas voltas de sua coxa, beija o umbiguinho.
Deita-se sobre ela — e entra nela. Que dá um berro de agonia: o cigarro aceso na palma da mão. Mas você para? Nem ele.


04
Só de vê-la — ó doçura do quindim se derretendo sem morder — o arrepio lancinante no céu da boca.


Dalton Trevisan, no livro Ah, É?, Dinorá, Editora Record.


34.

Seu João, perdido de catarata negra nos dois olhos:
- Meu consolo que, em vez de Nhá Biela, vejo uma nuvem.

Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.


61.


- Você conhece o antigo rótulo da Emulsão de Scott? Assim eu me sinto. Casada... Não, não. Cansada, isso. Ao peso do eterno bacalhau nas costas.


Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.


Um moço em Curitiba só tem um remédio: afogar-se. Como não há mar, um tonel de rum serve. Mas nem todos encontram coragem ou lucidez para o tonel de rum. Há então o noivado, ser noivo de alguma coisa ou pessoa, evitar a garoa das noites, encontrar uma sala com sofá e o retrato de um parente morto suspenso na parede, tomar o café que lhe traz a futura sogra, e, aos domingos, há o ajantarado pegajoso da província: a noiva bordará, costurará, fará qualquer coisa com as mãos, talvez uma carícia. As mulheres estarão sempre costurando, solteiras, casadas, viúvas, velhas ou moças terão os dedos picadinhos de agulha, até que um dia o ovo de costura rolará de suas mãos e a cabeça tombará para sempre – não, nada é para sempre, ainda com ovo de costura caído no chão o pescoço é alvo útil para a navalhada. [...] Trevisan situa-se adequadamente na linha nauseada da literatura, aquela linha que não usa a literatura para salvar ou para acusar o homem, apenas para aproximá-lo de nossas retinas, mostrá-lo a nós mesmos e, através de diferentes planos, através de diversos retratos, constatarmos que somos iguais a ele, que somos nós mesmos esses eternos noivos de província, esses ébrios e desesperados das noites de garoa, esses estupradores envinhados das beiras de estrada.


Carlos Heitor Cony


MACHO NÃO GANHA FLOR


Olha que tarde gloriosa de sol. O vento belisca de leve a cortina do quarto. Lá fora uma corruíra canta alegrinha. No teu peito essa outra acorda e já responde.
Minha irmã e a mãe faziam compras. Afinal sozinha, a casa inteira para mim. De roupão, antes de entrar no banho, dava os últimos retoques diante do espelho.
De repente, com susto, senti que não estava só. Um cheiro no ar? Um estalido no soalho? Uma sombra no canto do olho?
Pronto! Aquela mão suada me tapou a boca. E a outra afogava o pescoço.
— Não grite! Nem um pio. Que eu te mato!
Me empurrou contra a parede. Abriu com violência o roupão.
— Oba!
Ai de mim, apenas calcinha e sutiã. Daí ele começou a fazer coisas.
Me beijou o rosto, o pescoço, um seio e outro. Ui, que nojo. Gemendo, se esfregava no meu corpo.
Todo vestido. Só abriu o zíper da calça.
— Faça tudo o que eu mandar. Bem quietinha.
Sem aliviar a mão esquerda no meu pescoço.
— Já matei uma. Não me custa apagar outra!
E arrancou o meu roupão. Tentei correr para a porta. Me sacudiu pelo cabelo e esfregou a cara na parede.
— Quer morrer, sua vadia?
Era o bafo podre da morte. O corpo não parava quieto, tanto que eu tremia. O coração me batia aos saltos no joelho.
Em desespero, chorava e soluçava baixinho. Tão assustada, nem me defendia. Sem força de erguer os braços.
Daí percebi que ele tentava, mas não conseguia. Acho que eu estava muito nervosa e chorando sem parar. Ele beijava e chupava ora um seio, ora outro. Me corria a mão boba pelo corpo.
— Não sabe que deve lutar? Por que não se defende como as outras?
Ele que não sabia: essa carne, com fúria manuseada, já não era a minha. Para não enlouquecer, de tamanho horror, me desligara do próprio corpo. Aquele pobre objeto seminu pertencia a outra.
A minha querida boneca, ela sim a melhor amiga, chorando com olhinho de vidro ao meu lado — e não eu, não eu —, que era desfrutada pelo monstro.
Me xingava de piranha e cadela. Mandava eu calar a boca, assim ele não conseguia.
— Abra o olho. Não pisque. Feche o olho. Que porra. É o mesmo olho azul de minha mãe.
Daí eu pedi e supliquei. Em nome da santa mãezinha dele. Não me fizesse mal.
— Ela está me olhando com a tua cara!
Podia levar tudo de valor na casa. Pelo amor de Deus, me deixasse em paz. Era noiva e ia casar em três meses.
Ao falar que estava noiva ele assanhado começou tudo de novo.
— Aposto que é muito safadinha, né? Não transa com teu noivo? O que você faz com ele? Fala, sua vadia!
Ah, não fala? Que ficasse de joelho. Outra vez, de pé. Sentada. Deitada. De costas. Pernas fechadas. E abertas. Bem abertas.
E nada.
Cada vez mais irritado. E mais gago. A culpada era eu. Que só chorava. E só sabia tremer. Que porra.
— Não aprendeu nada? Não trepa com teu noivo? É boiola, por acaso?
Esse viadão, ele bem podia avisá-lo: eu era imprestável. Mais fria que uma puta velha. Se, ao menos, estivesse vestida. Gostava mesmo era de arrancar a tua roupa. Rebentar. Rasgar. Assim, quase nua, calcinha muito sem graça, não lhe agradava.
Disse que todas choram. Mas eu era a pior. Se a mulher soubesse a bruxa que fica, nunca mais chorava. Grande merda.
Chegou a mandar que botasse uma saia e blusa. Sapato de salto alto. Ou, melhor, um vestido. Vermelho, se tivesse.
Então olhou o relógio. E desistiu. Porra. E mais porra.
— Que tanto chora e treme e se desespera? O que tem de mais? Pensa que é a primeira? E a única? Nem é tão ruim assim. Algumas bem que gostam. Uma ruiva, quando eu saía, pediu que voltasse. E quis me dar uma rosa ou cravo, sei lá.
Ofendido e gaguejando.
— Mas eu avisei: "Macho não ganha flor."
Me olhou de soslaio.
— O que eu quero...
Enxugava a cara molhada de suor — e sem tirar o óculo escuro.
— ...vou lá e me sirvo.
Jogou a toalha num canto.
— Ah, se eu tivesse tempo. Porra. Já te ensinava o que é bom. Porra.
Uma hora tinha se passado. Uma hora que, no relógio parado da memória, se repetiria em mil horas inteiras de tortura e terror. E pelo resto da vida quantas vezes seria eu, indefesa no sonho, o pasto de tal bicho espumante de raiva?
Afinal ele parava de tentar. E fechou o zíper da calça.
Já não me olhava de frente. Acho que com vergonha, já pensou? Porque nada tinha conseguido.
— Agora te deixo aqui pelada.
Chutando o roupão debaixo da cama.
— Você desta vez se livrou.
Ressentido e com ódio.
— Só porque é uma vadia de olho azul. Como aquela outra.
Recolheu no chão a sua velha mochila.
— Senta aí na cama. Não se mexa daí. Até eu bater a porta. Senão eu volto. E será pior pra você. Ouviu, sua puta?
Foi catando na penteadeira o meu relógio de pulso, o celular, o cartão do banco. E, no estojinho azul de porcelana — ai, não —, até umas pobres jóias que a avó deixou.
Antes de sair, espiou em volta.
— Me dá a calcinha.
Que desgracido.
Colheu a última peça. Macho não ganha flor. Se olhou demorado no espelho. Ainda surpreso e incrédulo, gaguejante.
— Que porra. Isso nunca me aconteceu!
Ajeitou o óculo escuro e o boné vermelho. Gostou do que viu. O que eu quero, vou lá e me sirvo.
E lá se foi.
Tremendo e chorando, me vesti todinha. Mas não deixei o quarto. Ali sentada, chorando e tremendo, até a volta de minha mãe.
Nunca mais ela esqueceu de fechar a porta. Com dois giros na chave.
Cada dia a gente notava a falta de algum objeto. Mas isso era o de menos.
Mudamos de bairro. Fiz tratamento com uma terapeuta. Tomei tranquilizante e antidepressivo. Dois a três comprimidos por dia, mas pouco adiantou.
Uma vez engoli um punhado deles. Não foi o bastante. Só dormi uma noite e um dia inteiro.
Na mesma cama, do olhinho de vidro escorrendo uma lágrima azul, essa boneca toda em cacos.
O noivo, que me adora, apoiou sem reserva. Ao meu lado no desespero e no horror. Não perdeu a esperança. E me salvou de mim mesma.
Seis meses depois, casamos.
Deve ser problema meu, sei lá. O nosso relacionamento não está dando certo.


Dalton Trevisan, no livro Macho Não Ganha Flor, Editora Record.

- Lá no caixão...
- Sim, paizinho.
- ... não deixe essa aí me beijar.

Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.


Seu nome: Dalton Trevisan. Seu instrumento de trabalho: o conto. Sua vítima: o leitor incauto. Sua meta: amedrontar, deliciando. Sua cara: pouco veiculada. Seu endereço: desconhecido. Seu diálogo com o público: um monólogo interior. Sua foto mais conhecida:a tirada por um repórter com uma teleobjetiva atrás de uma árvore em uma tarde de outono. Seu número de telefone: nem mesmo sua família sabe.


Duílio Gomes
  



A VELHA QUERIDA


Ao calor das três da tarde, dormia a cidade sob o zumbido das moscas. O rapaz de linho branco dobrou a esquina — "Eis que eu vejo a sarça ardente" —, o asfalto mole e pegajoso debaixo dos pés. Todas as ruas desertas, mas não aquela, apinhada de gente e de tal maneira que transbordava das calçadas. "É um enterro", disse consigo, "mas não há morto". Arrastava-se o estranho cortejo por dois ou três quarteirões e voltava sobre os passos na busca aflita do defunto,com grupos que, ao longo das portas, apertavam-se e de repente se desfaziam — "Onde está Verônica", indagou ele, "que não canta?" Procissão triste e preguiçosa, metade a ir ou voltar e a outra metade imóvel, enquanto o cadáver, cujo fedor sebento empesta o ar e move a asa alucinada das moscas, jazia no interior de uma das casas, ainda que ninguém soubesse qual, pois os curiosos insinuavam as cabeças à sua procura pelas portas e janelas escancaradas. Procissão ou enterro, a multidão seguia um destino conhecido de todos. Ele abriu caminho por entre os outros, alerta para não atropelar aqueles que estacavam sem aviso ou faziam meia volta ou enfiavam de repente a cabeça por uma das portas e tão-somente a cabeça — raríssimo o que por elas entrava. Às portas e janelas, no místico velório, estavam alinhadas as viúvas que carpiam o mesmo defunto e pareciam de ouro na sua cara pintada. Enquanto os homens (pois era enterro ou procissão unicamente de homens) estavam decentemente trajados, as mulheres, empurrando-se às janelas e portas, em virtude do fogo que ardia no porão das casas decrépitas, vestiam apenas calcinha e porta-seio de cores berrantes, onde predominavam o vermelho, o azul e o amarelo e, assim à vontade, eram damas de grande luxo, uma ou outra com sandália de púrpura.
Todas elas, solitárias à janela ou enfileiradas uma atrás da outra, nos degraus vacilantes das escadas, comidos ali no meio, de tantos passos que os subiram e desceram, todas elas, serenas ou entoando ladainhas em voz baixa e lamuriosa, repetiam o mesmo gesto em que, após unir o polegar e o indicador, formavam com os dois dedos o símbolo da inocência perdida e, sem que movessem o braço, agitavam incansavelmente a mão em todas as portas e janelas, de tal modo sincronizadas que ao olhá-las o rapaz de linho branco acreditava-se numa loja de relógios, com seus pêndulos balançando, e única diferença era que tais pêndulos (as mãos dessas senhoras) trabalhavam sem ruído. E, como se estivesse afinal atrás de um relógio, examinava cada uma delas, detendo-se às portas e, como os outros, introduzia a cabeça a fim de encarar as damas ou relógios que marcavam todos a mesma hora.
Quase nada empertigado, observava duro e fixo à sua frente, no cuidado do bêbado que não quer parecer que o é, e o faz planejar lucidamente (segundo ele) seu movimento seguinte, esquecendo sempre um pequeno detalhe que afinal o denuncia, assim por exemplo depois de se despir sem um erro à vista inquisitorial da esposa, apaga enfim a luz e imagina que está salvo, eis quando ouve a pergunta melifluamente simplória — "Querido, agora dorme de pijama e sapato?" Com toda a cautela, pois, de não parecer embriagado, o rapaz analisava criteriosamente o mostruário de ponteiros e, consoante o seu hábito quando alcoolizado, permitia-se um comentário em tom levemente sarcástico. Resistindo aos sorrisos aliciantes dos dentes de ouro — "Olá, querida, as suas prendas morais quais são?" —, arrepiava caminho sob a lancinante queixa das carpideiras, indiferente ou insensível à dor que as fazia insistir no apelo monocórdio de — "Vem cá, benzinho ... vem cá, benzinho . . . vem cá, amorzinho. . ." e algumas, indignadas de não serem atendidas por ele ou pelos outros (distinto senhor de guarda-chuva no braço, marinheiro bêbado, negros de pé descalço), depois de inúmeros acenos da mão desocupada — sem adiantar ou atrasar a marcha do pêndulo à direita —, furiosas de tanto gemer em vão, enlouquecidas por um gesto ou simples olhar, davam um passo à frente e, prendendo-lhes a mão ou o braço, atraíam-nos patamares adentro e eles se deixavam conduzir ou então lutavam por se desvencilhar. Soltando-os, prosseguiam tranquilamente no movimento pendular, de tal sorte automático que, conversando volúveis ou absortas em meditação, não o interrompiam e as que se ocupavam em acender o cigarro, chupar sorvete ou descascar tangerina, faziam-no com a outra mão (a esquerda).
Após longa espreita, no meio da rua a princípio, depois na calçada e afinal no limiar, ele subiu os degraus de madeira, enquanto se defendia de uma mulata gorda, que lhe enlaçou perdidamente o pescoço, mas como permanecesse, o pé no ar, vigiando impávido em frente, deixou-o seguir, não sem que ele notasse numa das coxas a tatuagem do coração azul e, dentro do coração, um nome que, por coincidência, era o seu próprio. Havia cinco senhoras no corredor, além da mulata, e as que se dispunham ao longo dos degraus abriam alas para as últimas, sentadas em cadeiras comuns, das quais (mulheres) uma — a derradeira e a que ele buscara com tanto afã, impaciência e uma ponta de desespero — instalara-se em cadeira antiga de vime, a única que poderia descansá-la, após tão implacável perseguição. Fitaram-no com sorrisos insinuantes, mas não ela, de olhos tímidos sobre as mãos fatigadas. O rapaz estava de linho branco e gravata de seda e, posto nem uma desconfiasse do seu negro coração, a velha — pois que era uma velha — mantinha a cabeça baixa e, na postura indefesa e nostálgica, parecia capaz de chorar por ele que, vencido o quarto degrau, alcançou o corredor e até que enfim a cadeira. De pé a seu lado, notou que ela aparava pensativa com uma tesourinha a unha grossa do polegar, e disse com voz que não era a sua, de tão rouca:
— Você é toda minha, querida?
Enquanto as demais senhoras, nos degraus e nas cadeiras, eternamente a girar seus pêndulos, viravam-se para ele, admiradas da emoção que lhe tremia na voz — e estava comovido porque ia finalmente ter a sua velha — a velha (que podia ser a mãe e a avó de todas elas e não se confundia com nenhuma outra até você descobrir que simplesmente estava vestida) ergueu-se com dificuldade, apoiada nos braços da cadeira e, sem interesse ao menos de olhá-lo, enfiou pelo corredor escuro, indicando com voz cansada e displicente, de tantos anos esquecida na cadeira amarela de vime:
— Por aqui.
Desconsolada ou preguiçosa, seguiu à sua frente, estalando o chinelinho de pano. Ao passo que não sentira curiosidade pela nudez das outras, sugerida ou devassada por entre e através das calcinhas e dos porta-seios, tremia ao sonhar com as intimidades da velha, pois pensava nela como – "A sua velha", merecida e enfim conquistada na mais feroz caça às velhinhas de Curitiba, a qual trajava — apesar do calor e do traje oficial de duas peças coloridas — vestido singelo de algodão, sem mangas e outrora encarnado. Arrastava os chinelos, com pés inchados de gordas veias azuis e, atrás dela, sem que pudesse adivinhar-lhe as formas, porque era antes mortalha o tal vestido vermelho, o rapaz enxugava o suor das mãos na expectativa do mistério daquele enterro ou procissão que, se bem não o merecesse, por certo ela lhe desvendaria graças aos inúmeros lustros de vivência. No fim do corredor em penumbra, que exalava forte à creolina, a velha abriu uma porta e os dois entraram.
O quarto era separado do corredor por um tabique pouco mais alto que suas cabeças e mobiliado apenas de cama e mesa de cabeceira. Olhando a pobre cama coberta por uma colcha esverdinhada, estendida com desleixo ou às pressas, quem sabe usada havia pouco, o moço voltou-se para a companheira imóvel ao lado da porta aberta:
— A boneca? Onde está a boneca?
Era verdade, sentia a ausência da boneca de cachos, sentadinha na colcha purpurina ou dourada e, encontrando os olhos ausentes, vagos e distraídos da criatura, já se apressava a corrigir, enquanto reconhecia com espanto que não envelhecem os olhos — ao menos os azuis —, dirigindo-lhe o primeiro dos galanteios que se atropelavam nos lábios sôfregos:
— Ela é você, querida. É você a boneca.
Ela sorriu com a dentadura antiga, em que as gengivas tinham uma cor que podia ser de qualquer tonalidade menos de carne e os dentes alvares como dentes jamais usados. Despindo-se, eis que ele se persignava — "Deus louvado, tenho a minha velha, eu que não mereço a última das mulheres, pois nenhuma é suficientemente indigna para mim" — enquanto ela, com a mão na bola da maçaneta, o que a fazia mais desejável, como se quisesse fugir-lhe antes que a pudesse ter, espiava-o a despir-se com inesperada pressa, pendurando o paletó no prego que ela indicou atrás da porta, estendendo a calça e a camisa ao pé da cama. Já descalçava o sapato, e somente então — ainda se recusando como se nunca fosse merecê-la — a velha murmurou em voz baixa, onde ele percebeu pela primeira vez um acento estrangeiro:
— Já volto, nón?
Deixou de escutar os chinelos, estendeu-se apenas de meias na cama e, por maior que fosse o terror de percevejos, largou todo o peso sobre a colcha assinalada aqui e ali de manchas. Estava em paz consigo, pensava que estava ou procurava fingir que estava, até que descobriu dois ou três orifícios no tabique por onde o olho que tudo vê, seja ou não o olho de Deus, poderia espioná-lo e, cruzando as mãos na nuca, pois a cama não tinha travesseiro, observou a lâmpada que sobre a sua cabeça pendia de um fio pontilhado de moscas mortas. Depois de admirar a lâmpada enrolada em papel de seda escarlate e a parede manchada de goteiras, identificou atrás da porta o retrato colorido de Ramon Novarro, do qual desviou depressa os olhos, porque um dia — ai, que náusea lhe vinha daquele dia — quisera ser Ramon Novarro enquanto, lá do corredor, chegava o eco das carpideiras. Sem ouvi-las dialogar, distinguia as vozes apenas quando as elevavam ao tom mais alto de sua monótona litania — "Vem cá, amorzinho... vem cá, vem cá, meu bem... vem cá, benzinho... ó você aí, ó zarolho, vem cá... ó belezinha, vem cá. . ."
Não tinha janela o quarto, e sentiu-se de repente aflito. "Não é um quarto", pôs-se a repetir, "é a alcova da minha perdição". Gemia de impaciência com a demora da velha, se ela se atrasasse demais ou se não voltasse, temia pelo que pudesse acontecer. Já pensava em iniciar um padre-nosso ou uma ave-maria, senão quando ela entrou, desdenhosa de sua nudez e beleza que o próprio Ramon Novarro invejaria.
— Quer pagar, bem?
Fechou a porta apenas com a maçaneta, impassível ao lado da cama e, embora fosse uma súplica no ritual da paixão, não estendia sequer os dedos. Sem discutir o preço, ele ergueu-se e apanhou do bolso da calça a maior nota:
— O troco é seu, querida.
Pela primeira vez ela sorriu e tudo nela era primeira vez. Segurou o dinheiro e os óculos na mão, enquanto se desfazia do vestido pela cabeça, a despentear o cabelo grisalho na testa e nas têmporas.
— Quer que tire?
Depois de arrumar o vestido ao pé da cama, indicou o porta-seios de algodão e alças de pano, sob os quais o rapaz podia adivinhar os seios pesados e murchos, quem sabe com cabelos nos biquinhos pretos, e respondeu negativamente, quando então, ela que conservava o dinheiro na mão, dobrou-o três vezes e o guardou no porta-seios. Ainda de pé, abriu-lhe os moles braços alvacentos de mãe d'água, nos quais surpreendeu o primeiro sinal de sedução: as axilas depiladas, e pensou — "sob a velha dorme a cortesã" que, com algum esforço, ajoelhou-se na cama e, ao tilintarem duas ou três medalhinhas no pescoço, atirou-as para as costas. Afastou-as simplesmente, não as atirou, pois tal verbo sugere ação de qualquer maneira apressada, a velha era lerda e trazia nos gestos graves o sossego adquirido na cadeira de vime e, enquanto isso, o rapaz percorria-lhe vagarosamente as costas lisas com os dedos de quem acaricia um bicho de estimação até que eles encontraram um caroço ou ruga, começando então a descrever lentos círculos, que fugiam e voltavam sempre àquele duro nódulo, e ele se pôs a engolir ruidosamente. Mão viscosa de suor, agarrou com brutalidade a nuca da velha, que tinha os cabelos curtos e, atraindo-a para si, constatava a relutância dela ainda se negando ao seu feroz desejo. Girando levemente a cabeça para a mesa, onde havia um rolo de papel, ela quis estender a mão, mas o rapaz a impediu e, já de olhos fechados, aproximava-lhe aos poucos a cabeça da sua, entre os protestos inúteis de — "Nón ... nón ... Na boca nón .. .", beijando-a enfim e, até no beijo, a velha resistia, sem descerrar os lábios frios e enrugados, presa a dentadura com a ponta da língua no céu da boca.
Compunha a dama as dobras da mortalha quando ele abriu os olhos em agonia, pois o amor não o esvaziara do desprezo de si mesmo. Ao erguer-se da cama, a colcha colada de suor nas costas e três vezes imundo, decidiu que não se lavaria, para conservar entre as mãos peganhentas o odor de carne mofada da velha que, com toda a febre da luxúria, não tinha uma gota de suor no rosto. Nem um dos dois se penteou e, com a ponta dos dedos, um dos quais enfeitado por anel de falso rubi, alisando os cabelos brancos e alvoroçados na nuca, ela lhe pediu:
— Tire o batón.
O rapaz não aceitou o retalho de papel e esfregou a boca no lenço:
— A mais doce lembrança!
Quedaram-se diante da porta e, primeira vez, ela o encarava:
— Volta, nón?
— Como é seu nome?
— Pergunta por Sofia.
Ele não pode abrir a porta, com a bola amarela de latão a escorregar entre os dedos.
— Eu sabe o jeito, bem.
Desta vez o moço seguiu na frente. No umbral do corredor ensolarado, as mulheres estavam no mesmo lugar e a mulata chupando uma laranja e cuspindo as sementes, que bem podiam ser as da inveja, resmungou para os dois — "Eu, hein? Eu, hein?" Em adeus à sua querida, beijou-lhe a mão gélida de velha. Desceu os degraus, atravessou a rua e piscando ao sol esperou na esquina. A casa tinha uma única janela e aguardou que a mão com o falso rubi acenasse por entre as palhetas verdes da veneziana, e tão-somente a mão, pois tinha vergonha dele ou por ele. "Agora posso ir para casa", pensou o moço, "abraçar minha mulher e beijar meus filhos. Agora eu me sinto bem".
Misturou-se com o povo que, ora diante das portas, ora de cabeça erguida para as janelas, adorava as imagens douradas nos seus nichos, dir-se-ia indiferentes à aflição dos homens, não fora o gesto de esperança com que todas elas balouçavam a mão direita, unindo o polegar e o indicador, como o símbolo da inocência perdida, até que o rapaz de linho branco as deixou para trás, enquanto duas varejeiras lhe zumbiam em volta da cabeça e ele mais uma vez repetiu: “Aquilo já passou, não era. Realmente não era nada. Tudo já passou. Agora estou bem".

Dalton Trevisan, no livro Novelas Nada Exemplares, Editora Record.

22.


- Teu seio mais lindo – já viu dois gatinhos brancos bebendo leite no pires?


Dalton Trevisan, no livro 111 Ais, L&PM Pocket.




O mundo ficcional de Dalton Trevisan é o da pobre gente batida não apenas por condições econômicas desfavoráveis, mas também por tempestades emocionais e desencontros afetivos. O universo pequeno burguês de funcionários públicos, damas da noite, velhos solitários, homens e mulheres traídos, doentes desenganados, filhos desamparados. Reina a impiedade.
[...]
Ler estas narrações que o contista expõe em seu estado de chaga é inquietar-se. O contista convoca o solidarismo mediante esse tratamento de choque. Ao acentuar a precariedade de suas criaturas, cria um universo quase mitológico, varrido pela tragicomédia. E não faltam, nesta coleção de alegrias e dores sórdidas, outros mitos: a mulher castradora de maridos, a noiva esfaqueada no banquete de núpcias, o moço loiro. Em todos Trevisan deixa os dentes do vampiro.


Hélio Pólvora




CANTARES DE SULAMITA


Cantar 1


Se você não me agarrar todinha
aqui agora mesmo
só me resta morrer

se não abrir minha blusa
violento e carinhoso
me sugar o biquinho dos seios
por certo hei de morrer

estou certa perdidamente certa
se não me der uns bofetões estalados
não morder meus lábios
não me xingar de puta
já hei de morrer

bata morda xingue por favor
morrerei querido morrerei
se você não deslizar a mão direita
sob a minha calcinha
murmurando gentilmente palavras porcas
sem dúvida hei de morrer

também certa a minha morte
se você não acariciar o meu púbis de Vênus
com o terceiro quirodátilo
já caio morta de costas
defuntinha
toda morta de morte matada

morrerei gemendo chorando se você titilar
a pérola na concha bivalve
morrerei na fogueira aos gritos
se não o fizer

amado meu escuta
se você não me ninar com cafuné
me fungar no cangote
mordiscar as bochechas da nalga
me lamber o mindinho do pé esquerdo
juro que hei de morrer
certo é o meu fim

te peço te suplico
meu macho meu rei meu cafetão
eu faço tudo o que você mandar
até o que a putinha de rua tem vergonha

eu fico toda nua
de joelho descabelada na tua cama
eu fico bem rampeira
ao gazeio da tua flauta de mel
eu fico toda louca
aos golpes certeiros do teu ferrão de fogo
ereto duro mortal

ó meu santinho meu puto meu bem-querido
se você não me estuprar
agora agorinha mesmo
sem falta hei de morrer

se não me currar
em todas as posições indecentes
desde o cabelo até a unha do pé
taradão como só você
é certo que faleci me finei
todinha morta

se não me crucificar
entre beijos orgasmos tabefes
só me cabe morrer
minha morte é fatal
de sete mortes morrida
mortinha de amor é Sulamita

Cantar 2

Ó não amado meu
moça honesta já não sou
e como poderia
se você me corrompeu até os ossos
ao deslizar a mão sob a minha calcinha
acariciou a secreta penugem arrepiada?


como seria honesta
se você me deitou nos teus braços
abriu cada botão da blusa
sussurrando putinha no ouvido esquerdo?

se pousou delicadamente sem pressa
a ponta dos dedos nos meus mamilos
até que ficassem duros altaneiros
apontando em riste só pra você?

maneira não há de ser moça direita
depois de ter as bochechas da nalga
mordidas por teu canino afiado
que gravou em brasa para sempre
com este sinal sou tua

não nenhum resto de pureza
assim que descerrou os meus lábios
dardejando a tua língua poderosa
na minha enroscada em nó cego

como ser mocinha séria
depois de beijar todinho o teu corpo
com medo com gosto com vontade
de joelho descabelada mão posta
à sombra do cedro colosso do Líbano
mil escudos e troféus pendurados

é possível ser moça de família
se me sinto a rosa de Sarom
orvalhada da manhã
com um só toque do teu terceiro quirodátilo?

ai precioso amado querido
meu corpo tem memória e febre
meu puto me abrace me beije
sirva-se tire sangue me rasgue inteira
satisfaça a tua e a minha fome
finca o teu pendão estrelado
onde ele deve estar

oh não meu príncipe senhor da guerra
mocinha séria já não sou
me boline devagarinho
no uniforme de gala da normalista
atenção às luvas brancas de renda
me derrube na tua cama
de lado supina de bruços

me desnude diante do espelho
me arrume de pé dentro do armário
me ponha de quatro
me faça de carneirinha viciosa do bruto pastor
me violente sem dó com firmeza
só isso mais nada

sim bem-querido meu
sou putinha feita pra te servir
me abuse desfrute se refocile

quero sim apanhar de chicotinho
obedecer a ordens safadas
submissa a todos os teus caprichos
taras perversões fantasias
quais são? como são? onde são?

me diga como posso ir à igreja
de véu no rosto Bíblia na mão
se você afastou com dois dedos firmes e doces
o mar vermelho entre as minhas pernas
expondo à vista ao ataque frontal
meu corpinho ansioso e assustado
me estuprou me currou me crucificou?

quando separou os joelhos
abrindo as minhas coxas
um querubim fogoso
de delícias me cobriu
com sua terceira asa de sarça ardente

como ser moça ingênua
se antes sou uma grande vadia
o teu exército com fanfarras desfilando
na minha cidadela arrombada?

ai quero te dar até o que não tenho
amado meu santuário meu
quero ser a tua cadelinha mais gostosa
como nunca terá igual
serei vagabunda eu juro
todas as posições diferentes
todos os gemidos gritos palavrões
todas as preces atendidas

desfaleço de desejo por você só você
montar o teu corpo cândido e rubicundo
é galopar no céu
entre corcéis empinados relinchantes

vem ó princesinha minha
depressa vem ó doce putinha
aos gritos fortes do rei que batem à porta
o meu coração se move
salta de um a outro lado do peito
já se derretem as minhas entranhas
o rosto do amor floresce neste copo dágua
eu sou tua você é meu
por você inteirinha me perco
quem fez de mim o que sou?

sim amado meu
sou virgem princesa concubina
égua troteadora no carro do Faraó
vento norte água viva
sou rameira tua rampeira Sulamita
lírio-do-vale pomba branca
morrendinha de tanto bem-querer
até que sejamos um só corpo
um só amor
um só

Dalton Trevisan, no livro Capitu Sou Eu, Editora Record.




O vampiro de Curitiba é um jogador de xadrez que sempre lança mão de idêntica abertura de jogo e adota um único sistema defensivo, porém nunca repete o xeque-mate! Detalhe relevante, porque ele costuma vencer suas partidas.
[...]
O retorno de personagens em narrativas do mesmo autor não é exatamente novidade e nem precisamos mencionar a Honoré de Balzac. Por exemplo, Quincas Borba surge como personagem em Memórias Póstumas de Brás Cubas e posteriormente volta no romance homônimo.
Contudo, Dalton Trevisan vira o recurso de ponta-cabeça. Nos casos de Balzac e Machado, os personagens que retornam são tipos excepcionais. Na literatura de Trevisan, “João” e “Maria” retornam precisamente por não possuírem traços singulares.
Ora, se a galeria de personagens é escolhida por ser exemplarmente medíocre, mesmo banal, a linguagem que os define não pode ser exuberante, muito menos barroca.
[...]
Por isso no seu conto, menos é sempre mais. Esteta da concisão, Trevisan vislumbra no conto a possibilidade de um haicai narrativo.

João Cezar de Castro Rocha em Quem Tem Medo de Dalton Trevisan, publicado no caderno Sabático, do Estado de São Paulo, em 26 de maio de 2012.

THAT’S ALL, FOLKS!


As ilustrações para Você Já Leu Seu Trevisan Hoje? são de Poty, todas para os livros de Dalton.

41

Sete da noite. Um simples toque na campainha. Abro a porta:
- Oi.
Oh, meu Deus, não. Você aqui? Não. Tudo menos você.
- Alguém já veio?
- Você é o primeiro.
Me acuda, Olga. Toca, telefone. Chora, nenê, chora.

(Capítulo final de A Polaquinha, único romance escrito pelo sempre contista Dalton Trevisan.)


Meu e mail: cesarcar@uninet.com.br

©Cesar Cardoso, 2010. Todos os direitos e esquerdos reservados. Que os piolhos infectados de 18 mil camelos infestem as partes pudendas de quem publicar algum texto daqui sem avisar nem dar meu crédito.