sexta-feira, 12 de agosto de 2011

CAIU NA REDE É PIXEL


Vemos o que não existe e nos ilumina.

E caminhamos para a morte

tentando decifrar a babel das luzes.

Luz morta das estrelas,

piscar de lanterna em código,

silêncio de explosão atômica,

fervor de vela,

paixão de abajur lilás,

ferrugem de transformador,

ansiedade de sinal de trânsito,

lantejoula de tevê,

simples fósforo na caverna.

Luz que mostra, luz que mente.

As tesouras e as facas ficam cegas com o tempo.

Os homens não se enxergam.

Os cegos também fecham os olhos.

Depois do sol quem ilumina o seu lar é a Galeria Silvestre, a galeria da luz.

No Rio de Janeiro, dezoito horas, trinta e quatro minutos e dezesseis segundos.

CHIPS – o prazer da batata & o poder do circuito –

Eu e o meu irmão Cesar – que aliás é o editor deste blog, o latifundiário dono deste pedaço de terra virtual – decidimos escrever um livro a quatro mãos. Há algum tempo que publicamos aqui o que chamamos de haicontos. Como uma brincadeira literária, vamos nos desafiando a escrever microcontos, a partir de temas e ideias. E agora resolvemos reunir o que temos e seguir escrevendo novos textos, até acharmos que a coisa virou um livro. Óbvio que não sabemos quando nem mesmo SE isso vai acontecer. Mas até aprontarmos o livro ou encerrarmos a brincadeira, vamos em frente e publicando aqui. É o que o pessoal chama hoje de work in progress, que foi traduzido pelo espírito de Hélio Oiticica devidamente incorporado por Madame Marta por “vamu tocando essa merda aí pra ver no que dá”.

Beijos a todos, sendo os mais calientes para o meu maninho,
Alice Barreira

O OUTRO PAÍS
A paciente foi trazida para observação por sua irmã que, extremamente nervosa e preocupada, solicitou os cuidados de nosso setor de psiquiatria. Apesar de sua pouca idade, a paciente encontrava-se sem nenhuma dúvida sob o efeito de psicotrópicos, apresentando quadro alucinatório, com visões seguidas de delírios persecutórios. Dentro de nosso procedimento padrão, que segue as normas da Organização Mundial para a Saúde, nossos especialistas do setor tentaram convencer a menor a acompanhá-los ao SAP – Setor de Avaliação Padronizada – ao que a menor se recusou prontamente e com veemência. Fez-se necessário então o recurso do MCS – Modo de Convencimento Sistemático – com auxílio do PPF – Planejamento Psico-Físico, aplicado por nossos RPD – Responsáveis Personais por Deslocamentos. Mesmo assim a paciente manteve-se irredutível, apresentando quadro compatível com aceleramento cardíaco e dilatamento pupilar, o que mais uma vez caracteriza a drogadição. Procedemos então à ISA – Invitação à Sedação Absoluta, mas a paciente não correspondeu à eficácia do tratamento, balbuciando insistentemente as mesmas e únicas palavras sem sentido nem conexão com a realidade que repetiu desde que deu entrada em nosso estabelecimento de saúde: “o coelho branco, o coelho branco, o coelho branco”, enquanto entrava em convulsão seguida de óbito.

Alice Barreira

SURPRESA!
Acordei com uma sensação de enjoo. Me levantei e pude reparar que a provável causa do enjoo era que a casa balançava. Ou talvez fosse só o meu quarto. Olhei em volta. Aquele não era o meu quarto. Assustado, abri a porta e saí, mesmo estando só de calção. Havia uma enorme corredor, com muitas outras portas. A minha casa desaparecera, eu constatei, enquanto andava pelo corredor e examinava aquelas portas, que não tinham nenhuma razão para estar ali. O corredor acabava numa escada que eu subi, às pressas, pulando os degraus de dois em dois. Dei num amplo salão de refeições, com um lustre enorme no teto e centenas de mesas, todas postas para um almoço ou um jantar, com louças finas, talheres de prata, ou que eu imaginei que fossem de prata, guardanapos de linho branco e copos para água, vinho e licores. O salão tinha uma porta larga por onde eu me desabalei, estacando em seguida, paralizado. Eu via o mar. Isso, estava no enorme deck de um transatlântico e via o oceano que tomava conta de tudo em volta, muito maior do que aquele imenso navio. Mas eu tinha certeza de que fora dormir em minha cama, no meu quarto, dentro do meu apartamento, no prédio onde morava desde criança, na mesma rua, no mesmo bairro, na mesma cidade de onde nunca saí. Ou nunca saíra. Enquanto martelava a minha própria cabeça com essa realidade desaparecida, saí andando pra cima e pra baixo daquele transatlântico. Tinha muitos andares, muitas salas, muitas divisões, setores, partes, tudo, tudo, tudo deserto. Não havia ninguém a bordo. Mas isso não era possível, claro. Alguém devia estar em algum lugar daquela maldita embarcação, pelo menos para fazê-la navegar. Continuei procurando, esquadrinhando o navio todo, de ponta a ponta sem parar. Até deitar em qualquer lugar em que a exaustão me derrubasse.
Passei uma semana inteira andando sem parar pra cima e pra baixo e não encontrei ninguém. Havia comida e bebida à vontade nas diversas cozinhas espalhadas pelos andares. Mas nenhum ser humano. Aliás não vi nenhum ser vivo em todo o navio. Nenhuma mísera barata andava por ali. Nenhuma gaivota passava pelos céus sempre azuis, azuis, azuis. Eu não aguentava mais tanto azul, tanto mar. Já não conseguia mais pensar e, em desespero, me atirei na água.
Estou no mar há três dias e três noites. Talvez o impulso que me fez pular tenha sido o do suicídio, mas o baque na água fria talvez tenha despertado o instinto de vida em mim. O casco do navio possui umas reentrâncias onde posso quase me sentar e assim sigo o navio bem de perto e descanso quando preciso. Nunca me senti tão ocupado em toda a minha vida. Estou exausto. Vou me recostar mais uma vez no navio e espero finalmente conseguir dormir. E depois, quem sabe, acordar novamente em meu quarto.

Cesar Cardoso

UM ESTUDO PARA OS PRÓXIMOS PASSOS
A mulher de cabeça branca que vem ajeitando o vestido, o homem de terno amassado carregando a pasta abarrotada, a doméstica atrasada, a mulher de tailleur que solta a calcinha da bunda, o cara com a camisa do Coríntians que lê a manchete, o vendedor de vassouras a altos brados, o homem por trás do vidro escuro do 4 por 4, o pm que olha a gari, a gari que varre o meio-fio, o mendigo que conversa com seus cachorros, a criança que aprende a andar de bicicleta, a vizinha que faz cooper, o jornaleiro que sorri pra quem passa, a outra vizinha que agora está de cadeira de rodas, o senhor que era dono do botequim da esquina, o alcoólatra que espera o botequim abrir, o entregador da farmácia que ajeita o pneu da bicicleta, o vizinho cuja casa pegou fogo semana retrasada, o rapaz distraído que é dono da delicatessen da esquina, o namorado mandão que comanda a delicatessen com mão de ferro, o português dono da papelaria, o louco que fuma sem parar e torce peloBotafogo, o chaveiro da esquina, o rapaz que passeia com seis cachorros...
Qual deles será o nosso assassino?
 
Alice Barreira

BAMBA
Ele nascera no circo, filho de um casal de acrobatas. E assim, desde pequeno os pais o incentivavam a seguir seus passos. Mas o menino não gostava daqueles passos e chorava cada vez que o pai ou a mãe, brincando com ele, tentava aproximá-lo da linha acima do chão.
Os pais achavam que era apenas uma questão de tempo para o filho parar com aquela cisma, mas só mesmo sob ameaças de castigo e pancada o garoto cedeu e se iniciou na corda bamba.
E então chegou o dia de sua estreia. Seu nome no cartaz, a roupa brilhante, as sapatilhas, tudo era novo. Menos o mesmo sentimento que continuava carregando.
Subiu a longa escada, parou em frente ao arame, respirou fundo e foi caminhando, passo a passo, até a metade dele. Ali parou novamente, respirou fundo três vezes, enquanto a plateia inteira prendia a respiração, e então deu a pirueta. Um oh de admiração percorreu toda a lona. Mas em vez de pousar de volta na corda, o menino deu outra pirueta no ar, causando mais admiração ainda na plateia. E em seguida mais uma e mais uma e mais uma. A plateia, seus pais e todos no circo olhavam sem entender, enquanto ele seguia dando piruetas no ar, única forma que encontrara para não enfrentar seu medo de cair.

Cesar Cardoso

“NÚNCARAS” – po+es+ia

BRÁULIO TAVARES - O CANTADOR CIBERNÉTICO

Nascido em Campina Grande, em 1950, Braulio Tavares escreve poesia, prosa, letras de música, contos, ensaios... É um criador e um pensador da criação literária. Aqui dois poemas desse cantador cibernético: A Coisa e O Caso dos Dez Negrinhos. Se você gostou (e duvido que não goste), tem mais Braulio Tavares no blog dele: Mundo Fantasmo. (http://mundofantasmo.blogspot.com).

A coisa

Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa
que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo
com pernas que ela terá de crescer de si própria;
e que seja ela uma máquina viva, uma máquina
capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir.
Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.
Uma máquina bastarda feita de dobradiças e enzimas
e metonímias e quarks e transistores e estames
e plasma e fotogramas e roupas e sopa primordial...
Quero apenas que seja uma coisa minha, uma coisa
que eu inventei numa madrugada enquanto vocês dormiam
e quando a vi recuei, e quando a soube pronta duvidei,
e vi a eletricidade do relâmpago abrindo seus olhos
e martelei seu joelho temendo-a, e mandando-a falar,
e gritei: "Levanta-te e anda!"- e a coisa era uma galáxia
tremeluzindo no centro da folha branca, me olhando
com meus olhos de homem, me sorrindo
com tantas bocas de mulher, me envolvendo
com sua sintaxe de coisa nova que força o mundo a mover-se,
fincando uma cunha no Real e se instalando naquela fenda,
como um setor a mais invadido um círculo já completo.
Eu quero que essa coisa existisse, assim como
eu quis que eu seja. Quero vê-la brotar desarrumando.
Coisa criada, cobra criante, serpente criança,
criatura sentiente, existinte, sente, pensante,
cercada pela linha brusca do seu até-aqui
Essa coisa me conhecerá e não me reconhecerá
como seu Criador. Essa coisa terá poder de me destruir,
e de me recompor, e me mandar pedir-lhe a bênção.
Então pedirei. Sairei pelo mundo. Com minhas próprias pernas.
Finalmente leve e livre, tendo parido algo maior do que eu mesmo,
e disposto a me abraçar ao mundo, como quem desce do ônibus
na rodoviária da cidade onde nasceu. Mas o mundo!
O que é esse mundo onde eu ando agora? Olha a cor das casas,
o rosto do povo, o som da fala, a manchete dos jornais, o cheiro
do vento... que mundo é esse para onde retornarei depois de livre?
Fico parado, o coração pulando, e só daqui a pouco perceberei,
com uma surpresa antiga — que aquilo não é mais meu mundo:
e o mundo da coisa, é o mundo da minha Coisa.


O CASO DOS DEZ NEGRINHOS
(Romance Policial Brasileiro)

Dez negrinhos numa cela
e um deles já não se move.
Fugiram de manhã cedo,
mas eram nove.

Nove negrinhos fugindo
e um deles, o mais afoito,
dançou: cruzou com uma bala...
Correram oito.

Oito negrinhos trabalham
de revólver e canivete;
roupa caqui vem chegando,
fugiram sete.

Sete negrinhos passando
pela rua de vocês;
alguém chamou a polícia,
correram seis.

Seis negrinhos dão o balanço:
bolsa, anel, relógio, brinco...
Houve um erro na partilha,
sobraram cinco.

Cinco negrinhos de olho
na saída do teatro.
Um vacilou, deu bobeira...
Correram quatro.

Quatro negrinhos trombando,
todos quatro de uma vez.
Um deles a gente agarra,
mas fogem três.

Três negrinhos que batalham
feijão, farinha e arroz.
Um se deu mal: a comida
dava pra dois.

Dois negrinhos se embebedam
de Brahma, cachaça e rum.
Discussão, briga, navalha...
e fica um.

E um negrinho vem surgindo
no meio da multidão.
Por trás desse derradeiro...
vem um milhão.

RINHA DE GALINHA


                                                                    Por Don King 
           nosso correspondente na Academia Brasileira de Letras e Artes Marciais

Waaaaalll, mais uma luta de morte, um ultimate fight literário. Num canto, os punhos de ferro do Destruidor das Laranjeiras – Sergio Sant’Anna. No outro, o Rei da Ginga de Copacabana, Rubens Figueiredo. Sergio com seus 80 quilos de humor e sarcasmo. Rubens e sua técnica de nanoliteratura, com seu microscópio esquadrinhando tudo que vê pela frente. Não sobra pedra sobre pedra no meio do caminho e o pau come na casa de Noca. Holly shit!


Despertei sobressaltado, por volta das seis horas da manhã, ouvindo toques na campainha da porta e uma voz que, mesmo manifestando autoridade, parecia emitida por alguém que não queria chamar muita atenção. Não tive dificuldades de reconhecê-la como sendo do inspetor Arnoceck, com o seu inglês carregado de sotaque.
- Abra a porta! Polícia!
Ouvi também uma voz feminina e outra masculina falando brevemente em tcheco, e ainda o barulho de um molho de chaves.
Apesar de tão cedo, imaginei que se a polícia vinha incomodar-me novamente só podia ser pela trágica complicação em que eu estivera envolvido. Mas seria muito, muito embaraçoso se eles vissem uma boneca em minha cama. Minha primeira reação, quase em pânico, foi tentar tirar Gertrudes dali para colocá-la na poltrona. Mas fiquei muito surpreso e assustado ao perceber que, no meio das cobertas em desalinho, Gertrudes se encontrava toda descomposta, com a saia meio levantada, a liga à mostra. Seus cabelos caíam sobre um dos olhos, enquanto a parte superior do corpo estava descoberta, com dois botões desabotoados e um arrancado. Também o colarzinho fora rompido e contas se espalhavam pela roupa de Gertie e pela cama.
Isso foi o que pude ver de relance, e, como a porta do quarto logo foi aberta pelo lado de fora, larguei a boneca na poltrona sem poder recompô-la direito. Entraram o delegado, a subgerente do hotel e um outro homem, com uma máquina fotográfica numa das mãos.
- Onde está a menina? – perguntou o delegado, lançando olhares para o quarto todo. Ao ver Gertrudes, sua expressão foi de grande espanto, mas eu também estava espantado.
- Menina? Que menina? Não posso compreender – eu disse com a voz trêmula e o coração batendo, e tenho certeza que muito pálido.
- Não se faça de desentendido – o delegado disse. – Parece que o senhor não se cansa de se meter em complicações.
A um sinal do delegado, o homem com a câmera passara a fotografar tudo, detendo-se mais nas cobertas revoltas e na boneca. Com toda a certeza, trabalhava como perito.
Visivelmente tentando manter a calma, o delegado falou algo em tcheco para a subgerente, que me dirigiu a palavra num bom inglês e com ar bastante severo e também de constrangimento.
- Hóspedes telefonaram para a portaria reclamando que ouviram o senhor e uma moça muito jovem, com certeza menor de idade, trocando palavras obscenas nesta madrugada. Ouviram também queixumes da mocinha.
- Isso é mentira... uma infâmia – defendi-me com veemência.
- Foram exatamente quatro hóspedes que ouviram tudo, em quartos vizinhos ao seu – disse a subgerente.
O delegado chegou bem perto de Gertrudes, na poltrona, olhando-a detidamente, mas tendo o cuidado de não tocá-la. Depois, arriscando-se até ao ridículo, olhou dentro do banheiro e do armário e, curvando-se a uma certa distância, lançou olhares para debaixo da cama.
- E essa boneca? – finalmente ele perguntou. – O que faz aí?
- Comprei-a no teatro – eu disse. No Ta Fantastika Black Light Theatre. Mas algo me escapa nisso tudo. – Minha voz traía total insegurança. Eu estava perplexo. – Não posso compreender como ela ficou nesse estado.
- Ah, não compreende? –ironizou o delegado. – Mas o que eu quero saber é o que aconteceu com a menina.
- Que menina? – voltei a dizer, impaciente.
- A que estava no quarto com você. Bonecas não falam. É melhor você contar logo, pois queremos evitar um escândalo envolvendo uma menor de idade.
- Já disse que nenhuma menina esteve aqui. Alguém viu alguma menina comigo? Ou entrando ou saindo do meu quarto? – Eu agora me dirigia à subgerente do hotel.
- Não, que eu saiba, até agora, não – a funcionária disse. – Mas as vozes, as reclamações dos hóspedes...
Bem, não adianta reproduzir em minúcias tudo o que se disse. Fui obrigado a acompanhar os policiais à delegacia e Gertrudes também foi levada, na própria sacola do Ta Fantastika Black Light Theatre, que o delegado viu e pegou no armário, entregando-a ao perito, que colocou a boneca lá dentro, tendo o cuidado de calçar luvas, com toda a certeza para não destruir evidências.
Felizmente pude trocar-me no banheiro, mas a roupa que usara para dormir foi apreendida e levada numa sacola de lavanderia, juntamente com a roupa de cama.

– Trecho de O Livro de Praga – Narrativas de amor e arte, novo livro de Sérgio Sant’Anna, lançado pela Cia das Letras.

Havia agora pessoas naquela fila à espera da sua vez com as compras na mão ou também num carrinho. A primeira era uma mulher de boné preto, com o umbigo à mostra abaixo da barra da blusa. Trazia na mão apenas um saco plástico transparente, borrado de sangue por dentro, com mais ou menos um quilo e meio de carne de boi. O rapaz com crachá voltou, depois de conferir o preço do produto. A tia de Rosane deu o cartão para a caixa e mostrou sua carteira de identidade plastificada. Quando a moça passou o cartão na máquina, soou um apito.
Pela cara que ela fez, o pai de Rosane viu logo que não tinha dado certo. A caixa tentou de novo e soou o mesmo apito. Dessa vez ele teve a impressão de que o apito zuniu mais alto, teve mesmo a certeza de que as lâmpadas lá em cima brilharam mais forte, cuspiram uns raios tão brancos que ofuscaram a forma das pessoas em sua volta. Durou só um instante. Pois logo viu com nitidez que a moça da caixa ergueu o cartão acima da cabeça, brandiu no ar e, inclinada na direção da caixa do lado, perguntou em voz alta:
- Como é que passa isto aqui mesmo?
A outra, com uma embalagem de doze latas de cerveja nas mãos, parou na mesma hora, virou, olhou para o cartão por um segundo e respondeu:
- Ontem foi o último dia. Agora só mês que vem. Talvez.
A caixa devolveu o cartão para a tia de Rosane e perguntou se não queria pagar em dinheiro. Mas falou em voz baixa, mansa, um pouco automática: é claro, nem precisava perguntar, já sabia a resposta. Com seu cartão de volta na mão, a tia de Rosane olhava para o cunhado, para a moça da caixa, para o cartão, para os sacos plásticos cheios e amontoados sobre o piso de cerâmica e sentiu o ar fugir.
Já o pai de Rosane esfriou de repente por dentro: uma corrente gelada desceu até os pés. Com uma clareza também fria, entendeu que ele já contava com aquilo ou com algo parecido desde o início, desde o caminhão parado lá na praça. A primeira coisa que pensou e que o preocupou a sério foi que as pessoas na fila iam ficar irritadas com ele. Olhou de relance e percebeu na sua fila uns quatro ou cinco fregueses – os dois mais atrás levantavam a cabeça para ver o que estava acontecendo, o motivo da demora. Nos olhos brancos, meio arregalados, uns riscos de sangue – e lá estava a mulher com o saco transparente cheio de carne.
A segunda ideia que passou pela cabeça do pai de Rosane foi que estavam na Várzea. E agora sim aquilo ganhou um peso diferente, com as lembranças de histórias brutais, vinganças horríveis praticadas à toa. A terceira foi a imagem do grupo de jovens que chegara pouco antes ao supermercado, seus risos e cantorias sem música, o jeito como abanavam os braços comprimidos a caminho das prateleiras de cervejas.
Disse para a moça que talvez aquela máquina estivesse com defeito, quem sabe numa outra o cartão funcionaria. Mas a moça respondeu que não, a máquina estava boa, e olhou para baixo, para as mãos de unhas pintadas, o esmalte já um pouco descascado, os dedos a postos na frente do teclado só de números. Um anel no polegar brilhava. Então a caixa deu um relance para o primeiro freguês na fila e voltou-se.
Se eles não tinham como pagar – explicou a moça com uma voz calma, de quem parecia entender a situação, de quem compreendia tudo, até bem demais, só que gostaria que nada daquilo tivesse acontecido e preferia que eles fossem embora logo – se não tinham como pagar, explicou a moça, teriam de por tudo de volta nas prateleiras. Pois é. Não havia um funcionário para arrumar as mercadorias de novo. Se não fosse assim, a bagunça aumentava, já vinha muita gente ao mercado só para criar confusão, mexer nas coisas, tentar roubar, justificou ela mais apressada agora: um desinteresse novo, uma falta de paciência começava a dominar. E aquilo era verdade, claro, está certo, é razoável, pensou o pai de Rosane, que respirou fundo e se deu conta da presença de um segurança parado a uns cinco passos, com um colete preto sem botões aberto sobre a barriga proeminente.
Ele e a cunhada foram buscar outro carrinho, que logo encheram com as sacolas colhidas do chão e levantadas duas a duas, uma em cada mão, até a última, e voltaram para os corredores do mercado. Os dois empurravam devagar o carrinho, mais pesado agora. Pareciam subir uma ladeira. Uma das rodas da frente meio torta soltava guinchos num ritmo que entorpecia. Achar um produto no meio daquelas sacolas de plástico, todas iguais – todas chiando com o mesmo barulho quando eles mexiam -, era tão difícil quanto localizar a prateleira onde o produto tinha sido apanhado. Tentavam lembrar, davam voltas, passavam várias vezes nos mesmos lugares. E um por um foram todos retirados do carrinho e colocados nas prateleiras certas.

- Trecho de Passageiro do Fim do Dia, o novo livro de Rubens Figueiredo, que acaba de ganhar o Prêmio Cidade de São Paulo - 2011 como Melhor Livro do Ano. Um lançamento da Cia das Letras.


PATAVINA’S NEWS

Nosso correspondente Jean Prévert
direto de N.York

Meu caro Cesar,
O sol me esquenta nesse banco do Central Park e eu batuco essas linhas pra você e pro PATAVINA’S. Desta vez te apresento Miklós Pörkölt, um escritor húngaro que acaba de ser publicado pela Gulliver’s Travels, uma pequena editora novaiorquina com nome de gigante. O texto que apresento faz parte do livro “Venha Ser Um Criminoso”, onde Miklós debocha de tudo que existe na Hungria de ontem e de hoje. (E que também existe espalhado pelo mundo, é claro.) Nesse texto ele também se revela um discípulo de Jonathan Swift e apresenta uma solução gastronômica de pouco custo para os paladares mais exigentes, húngaros ou não.
Abracadabraço do
Jean Prévert

RECEITAS MAGIARES

Desde o século IX a Cozinha Magiar, ou Húngara, como alguns preferem, vem se construindo junto com a nacionalidade. É um dos pontos altos de nossa cultura, junto com a matemática e os massacres. Não somos apenas um goulash cheio de páprica e pimenta preta. Na verdade nosso prato preferido é o caldo de culturas, uma mistura de otomanos com ocidentais, de resultados indigestos se não for bem preparada. E por vezes, até mesmo se for.
O Danúbio reclama de cruzar este país onde só existem planícies, mas nós adoramos seus peixes, como o tisza e o neusiedl, e nos esmeramos a criar molhos para prepará-los. Mas hoje vamos conhecer um prato típico das grandes cidades húngaras, modernizadas graças à economia de mercado.

A empregada.
A empregada é uma carne de segunda, mais barata mas nem por isso menos saborosa. E por ser um prato bem popular deve ser acompanhado de uma Slivovitz Pálinka, nossa melhor aguardente de ameixa. Mas nossa receita traz um toque de sofisticação.

EMPREGADA AO CREME DE LARANJA COM COUVE DE BRUXELAS

Ingredientes:
Uma empregada nova, de porte médio.
Dez tomates amarelos.
Um pacote de couve de Bruxelas.
5 dentes de alho bem socados.
Pimenta chinesa.
Creme de laranja.
Cogumelos.
Páprica doce.

Modo de preparar:
Na véspera pegue uma empregada limpinha, sem carteira assinada e ainda viva, mande ela se lavar e ficar de molho no creme de laranja. No dia seguinte, proceda ao abate da empregada, evitando macerar as partes que serão consumidas: a alcatra e o lombo. Frite os cogumelos e reserve. Tire a pele dos tomates amarelos e da empregada. (Atenção: não jogue fora a pele. Deixe secar e doe para um curso de artesanato.) Tempere com páprica doce, sal a gosto e pimenta chinesa, para dar um toque de mistério oriental ao prato. Bote numa panela grande, em fogo brando, e acrescente aos poucos água quente e os cogumelos. Espete com uma faca para ter certeza que a carne está ficando macia e que a empregada está morta (não se pode confiar nessa gentinha, se for romena então, hum!). Junte o alho bem socado (mande a empregada socá-lo antes de abatê-la). E nos últimos dez minutos de cozimento acrescente a couve de Bruxelas. Sirva com arroz soltinho e coma durante a novela. Dá para toda a família.

O chef Miklós Pörkölt é escritor e carne de pescoço.

AVISO AOS NAUFRAGANTES

O CRÍTICO JOSÉ CASTELLO E A PSICANALISTA
MARIA HENA LEMGRUBER LÊEM MACHADO DE ASSIS

EXTREMOS – CÍRCULO DE LEITURA DE FICÇÕES RADICAIS
Leitura comentada dos contos Teoria do medalhão, O espelho e A cartomante, de Machado de Assis.
Leitores-regentes:
José Castello – Escritor, crítico literário, cronista de O Globo
Maria Hena Lemgruber – Psicanalista e educadora

Data: 15, 17 e 18/8 – das 18h às 20h30min
Local: Biblioteca Popular Municipal de Botafogo
Endereço: Rua Farani, 53 – Botafogo – RJ
Inscrições gratuitas pelo telefone (21) 3237 3947 ou pelo email estacaopensamento@gmail.com

O QUE É O EXTREMOS

1- Num mundo cada vez mais confuso e indecifrável, viemos oferecer uma idéia: a de usar a literatura como instrumento privilegiado de interpretação da realidade. Um instrumento tão potente e precioso quanto a filosofia, a ciência, a religião ou a psicanálise. Esta é a idéia base deste ciclo de leitura, que batizamos simplesmente de Extremos.

2- A formação de círculo de leitores tem sido cada vez mais comum e aponta para os limites, quando não para os fracassos, da especialização, não só na área literária, mas do saber em geral. Às leituras feitas em círculo de leitores nada se pede, além da paixão pela literatura. Empenho e prazer de ler, nada mais.

3- Um ciclo não de leitores profissionais, mas de leitores amadores, que se orgulham desta posição e apostam em sua eficácia. Amadores nos dois sentidos da palavra: um ciclo não especializado, que reúne leitores de diversas procedências e de diferentes áreas do conhecimento; e um ciclo de pessoas que amam a literatura e nela confiam como instrumento especial de interrogação do presente.

PATAVININHA’S

– O PLAYGROUND DO PATAVINA’S –

DO ALTO DO MEU CHAPÉU

Do Alto do Meu Chapéu é um livro simplesmente fascinante. É um livro de poemas infantis muito bem escritos pela carioca Gláucia de Souza. Gláucia tem outros livros publicados, é doutora em Letras, trabalha como professora. Ou seja: mais do ramo, impossível. E realmente seus poemas em Do Alto do Meu Chapéu são gostosos de ler. Mas Gláucia é sobretudo corajosa. Pois sabem quem ilustra seu livro? O Hans. Qual Hans? O Hans Christian Andersen. É isso mesmo, não estou brincando não. O diabo do dinamarquês, além de escrever do jeito que escrevia, ainda fazia recortes em papel. Gláucia explica na apresentação do livro: “Como forma de entreter amigos grandes e pequenos, inclusive enquanto contava histórias, o escritor recortava e criava figuras ricas em detalhes: um mundo de fadas, duendes, pierrôs, aves, bailarinas, compondo um universo fantástico e simétrico. Ao final da história, desdobrava os papéis recortados para seus ouvintes atentos.” Pois é este mundo de fadas, duendes, pierrôs, etc que ilustram os textos de Gláucia. Não preciso dizer que são trabalhos de uma delicadeza e de uma beleza emocionantes. Tudo isso junto faz de Do Alto do Meu Chapéu uma pequena obra-prima que vale a pena conhecer, ter em casa pra reler e rever de vez em quando e dar de presente pra criançada.

(Do Alto do Meu Chapéu, poemas de Gláucia de Souza, com ilustrações de Hans Christian Andersen. Projeto Editora.)


DO ALTO DO MEU CHAPÉU

Do alto do meu chapéu,
vejo um moinho de ideias:
um castelo de bailarinas,
anjos de asas meninas
e um cisne jardineiro,
brotado ao pé do canteiro.

Do alto do meu chapéu,
me espanto com quase nada:
mil degraus em pouca escada,
um punhedo de rimas
e um poema quase inteiro,
nascido ao sol de janeiro.





















BORBOLETA

Borboleta, me traz um dia
de presente?
Pula e dança
na minha frente?
Faz nuvem torta
ter cara de gente?
Ou cara triste
ser contente?

Borboleta, sem nem mais,
me ensina:
a ter cara de menina?
a gritar que nem buzina?
a catar vento em esquina?

Mas se não der...
Borboleta, me faz...
Ah! Me faz ser...
... bailarina!


IMPRESSÕES DIGITAIS

O escritor Bartolomeu Campos Queiroz e algumas instituições criaram o Movimento Brasil Literário (www.brasilliterario.org.br), que eu estou conhecendo. Me inscrevi e recebi o e-mail que publico abaixo. Seguem também um texto onde os criadores do Movimento Brasil Literário se apresentam e o manifesto do grupo. É literatura na veia, que se não for poética, pode vir a ser.

Belo Horizonte, 09 de agosto de 2011

CESAR CARDOSO,

Hoje, me vi pensando como seria viver em um país de leitores literários. Pode ser apenas um sonho, mas estaríamos em um lugar em que a tolerância seria melhor exercida. Praticar a tolerância é abrigar, com respeito, as divergências, atitude só viável quando estamos em liberdade. Desconfio que, com tolerância, conviver com as diferenças torna-se em encantamento. A escrita literária se configura quando o escritor rompe com o cotidiano da linguagem e deixa vir à tona toda sua diferença . e sem preconceitos. São antigas as questões que nos afligem: é o medo da morte, do abandono, da perda, do desencontro, da solidão, desejo de amar e ser amado. E, nas pausas estabelecidas entre essas nossas faltas, carregamos grande vocação para a felicidade. O texto literário não nasce desacompanhado destes incômodos que suportamos vida afora. Mas temos o desejo de tratá-los com a elegância que a dignidade da consciência nos confere.

A leitura literária, a mim me parece, promove em nós um desejo delicado de ver democratizada a razão. Passamos a escutar e compreender que o singular de cada um - homens e mulheres - é que determina sua forma de relação. Todo sujeito guarda bem dentro de si um outro mundo possível. Pela leitura literária esse anseio ganha corpo. É com esse universo secreto que a palavra literária quer travar a sua conversa. O texto literário nos chega sempre vestido de novas vestes para inaugurar este diálogo, e, ainda que sobre truncadas escolhas, também com muitas aberturas para diversas reflexões. E tudo a literatura realiza, de maneira intransferível, e segundo a experiência pessoal de cada leitor. Isto se faz claro quando diante de um texto nos confidenciamos: "ele falou antes de mim", ou "ele adivinhou o que eu queria dizer".

O texto literário não ignora a metáfora. Reconhece sua força e possibilidade de acolher as diferenças. As metáforas tanto velam o que o autor tem a dizer como revelam os leitores diante de si mesmo. Duas faces tem, pois, a palavra literária e são elas que permitem ao leitor uma escolha. No texto literário autor e leitor se somam e uma terceira obra, que jamais será editada, se manifesta. A literatura, por dar a voz ao leitor, concorre para a sua autonomia. Outorga-lhe o direito de escolher o seu próprio destino. Por ser assim, a leitura literária cria uma relação de delicadeza entre homens e mulheres.

Uma sociedade delicada luta pela igualdade dos direitos, repudia as injustiças, despreza os privilégios, rejeita a corrupção, confirma a liberdade como um direito que nascemos com ele. Para tanto, a literatura propõe novos discernimentos, opções mais críticas, alternativas criativas e confia no nosso poder de reinvenção. Pela leitura conferimos que a criatividade é inerente a todos nós. Pela leitura literária nos descobrimos capazes também de sonhar com outras realidades. Daí, compreender, com lucidez, que a metáfora, tão recorrente nos textos literários, é também uma figura política.

Quando pensamos em um Brasil Literário é por reconhecer o poder da literatura e sua função sensibilizadora e alteradora. Mas é preciso tomar cuidados. Numa sociedade consumista e sedutora, muitos são leitores para consumo externo. Lêem para garantir o poder, fazem da leitura um objeto de sedução. É preciso pensar o Brasil Literário com aquele leitor capaz de abrir-se para que a palavra literária se torne encarnada e que passe primeiro pelo consumo interno para, só depois, tornar-se ação.

O Brasil Literário pode, em princípio, parecer uma utopia, mas por que não buscar realizá-la?

Com meu abraço, sempre, Bartolomeu

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Este website nasceu da vontade do Instituto C&A, da Associação Casa Azul – organizadora da FLIP -, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), do Instituto Ecofuturo e do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) de juntar esforços e experiências para incentivar a criação de um Movimento por um Brasil literário. Um movimento não passa a existir de repente, nem se baseia em uma ideia inédita. Ele é feito de pessoas e organizações, com propósitos e desejos semelhantes, experiências e anseios complementares, mas comporta a diversidade, o que o enriquece. Ele organiza e sistematiza ações e pensamentos para um determinado objetivo, a fim de causar um impacto na busca por esse propósito. É fruto de uma mobilização. Por essas características, este espaço é também dinâmico, como é um movimento. Vai crescendo conforme o movimento ganha corpo, participantes, embasamento e direção. Vai se transformando de acordo com as ações que se realizam e – principalmente -, dependerá do engajamento de seus integrantes. É neste website que as instituições proponentes esperam que cada vez mais gente possa opinar, comentar e informar sobre o tema da leitura literária. É aqui, também, que nos comprometemos com esta causa. Os conceitos que fundamentam este movimento estão no Manifesto por um Brasil literário.

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O Instituto C&A, se somando às proposições da Associação Casa Azul . organizadora da Festa Literária Internacional de Paraty -, à Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, ao Instituto Ecofuturo e ao Centro de Cultura Luiz Freire, manifesta sua intenção de concorrer para fazer do País uma sociedade leitora. Reconhecendo o êxito já conferido, nacional e internacionalmente à FLIP, o projeto busca estender às comunidades, atividades mobilizadoras que promovam o exercício da leitura literária.

Reconhecemos como princípio o direito de todos de participarem da produção também literária. No mundo atual, considera-se a alfabetização como um bem e um direito. Isto se deve ao fato de que com a industrialização as profissões exigem que o trabalhador saiba ler. No passado, os ofícios e ocupações eram transmitidos de pai para filho, sem interferência da escola.

Alfabetizar-se, saber ler e escrever tornaram-se hoje condições imprescindíveis à profissionalização e ao emprego. A escola é um espaço necessário para instrumentalizar o sujeito e facilitar seu ingresso no trabalho. Mas pelo avanço das ciências humanas compreende-se como inerente aos homens e mulheres a necessidade de manifestar e dar corpo às suas capacidades inventivas.

Por outro lado, existe um uso não tão pragmático de escrita e leitura. Numa época em que a oralidade perdeu, em parte, sua força, já não nos postamos diante de narrativas que falavam através da ficção de conteúdos sapienciais, éticos, imaginativos.

É no mundo possível da ficção que o homem se encontra realmente livre para pensar, configurar alternativas, deixar agir a fantasia. Na literatura que, liberto do agir prático e da necessidade, o sujeito viaja por outro mundo possível. Sem preconceitos em sua construção, daí sua possibilidade intrínseca de inclusão, a literatura nos acolhe sem ignorar nossa incompletude.

É o que a literatura oferece e abre a todo aquele que deseja entregar-se à fantasia. Democratiza-se assim o poder de criar, imaginar, recriar, romper o limite do provável. Sua fundação reflexiva possibilita ao leitor dobrar-se sobre si mesmo e estabelecer uma prosa entre o real e o idealizado.

A leitura literária é um direito de todos e que ainda não está escrito. O sujeito anseia por conhecimentos e possui a necessidade de estender suas intuições criadoras aos espaços em que convive. Compreendendo a literatura como capaz de abrir um diálogo subjetivo entre o leitor e a obra, entre o vivido e o sonhado, entre o conhecido e o ainda por conhecer; considerando que este diálogo das diferenças . inerente à literatura . nos confirma como redes de relações; reconhecendo que a maleabilidade do pensamento concorre para a construção de novos desafios para a sociedade; afirmando que a literatura, pela sua configuração, acolhe a todos e concorre para o exercício de um pensamento crítico, ágil e inventivo; compreendendo que a metáfora literária abriga as experiências do leitor e não ignora suas singularidades, que as instituições em pauta confirmam como essencial para o País a concretização de tal projeto.

Outorgando a si mesmo o privilégio de idealizar outro cotidiano em liberdade, e movido pela intimidade maior de sua fantasia, um conhecimento mais amplo e diverso do mundo ganha corpo, e se instala no desejo dos homens e mulheres promovendo os indivíduos a sujeitos e responsáveis pela sua própria humanidade. De consumidores passa-se a investidores na artesania do mundo. Por ser assim, persegue-se uma sociedade em que a qualidade da existência humana é buscada como um bem inalienável.

Liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia são elementos que fundam a infância. Tais substâncias são também pertinentes à construção literária. Daí, a literatura ser próxima da criança. Possibilitar aos mais jovens acesso ao texto literário é garantir a presença de tais elementos . que inauguram a vida . como essenciais para o seu crescimento. Nesse sentido é indispensável a presença da literatura em todos os espaços por onde circula a infância. Todas as atividades que têm a literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma sociedade leitora. O apoio de todos que assim compreendem a função literária, a proposição é indispensável. Se é um projeto literário é também uma ação política por sonhar um País mais digno.

THAT’S ALL, FOLKS!

Esta, pois, é minha história. Acabo de relê-la. Tem pedaços de medula ainda presos a seus ossos, e sangue, e belas e reluzentes moscas verdes. Num ou noutro trecho sinuoso, sinto que a escorregadia personagem central me escapa, mergulhando em águas profundas e tenebrosas demais para que eu tenha a coragem de persegui-la. Camuflei o que pude para não ferir ninguém. E ponderei muitos pseudônimos para mim mesmo antes de descobrir o que era particularmente apropriado. Encontro em minhas anotações “Otto Otto”, “Mesmer Mesmer” e “Lambert Lambert”, mas, por alguma razão, creio que minha escolha é a que melhor exprime a sordidez.

Quando, há cinquenta e seis dias, comecei a escrever Lolita, inicialmente sob observação na enfermaria psiquiátrica, e depois nessa cela bem aquecida, conquanto sepulcral, pensei usar essas anotações in totum durante o julgamento, evidentemente não tanto para salvar minha pele, mas sim minha alma. A meio caminho, contudo, dei-me conta de que não podia exibir Lolita enquanto ela estivesse viva. Talvez ainda use partes dessas memórias em sessões a portas fechadas, mas sua publicação tem de ser adiada.

Por motivos que podem parecer mais óbvios do que realmente o são, sou contrário à pena de morte; espero que tal atitude seja compartilhada pelo juiz que proferirá minha sentença. Estivesse eu no seu lugar, condenaria Humbert a pelo menos trinta e cinco anos de prisão por estupro, ignorando todas as demais acusações. Mas, mesmo que isso ocorra, Dolly Schiller provavelmente sobreviverá a mim por muitos anos. A declaração que faço a seguir equivale formalmente a um testamento assinado: é minha vontade que essas memórias só sejam publicadas quando Lolita já não estiver viva.

Portanto, nenhum de nós estará vivo quando o leitor abrir este livro. Mas, enquanto o sangue ainda pulsa nesta mão com que escrevo, você faz parte, como eu, da bendita matéria universal, e daqui posso te alcançar nas lonjuras do Alasca. Seja fiel a teu Dick. Não deixe que nenhum outro homem te toque. Não fale com estranhos. Espero que você ame teu bebê. Espero que seja um menino. Esse teu marido, assim espero, sempre te tratará bem, porque, se não, meu fantasma o atacará como uma nuvem de negra fumaça, como um gigante insano, e o destroçará nervo por nervo. E não tenha pena do C.Q. Era preciso escolher entre ele e o H.H., e era desejável que H.H. existisse pelo menos alguns meses a mais a fim de que você pudesse viver para sempre nas mentes das futuras gerações. Estou pensando em bisões extintos e anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que você e eu podemos partilhar, minha Lolita.

Páginas finais de Lolita, de Vladimir Nabokov. Tradução de Jorio Dauster, Companhia das Letras.




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