sábado, 13 de novembro de 2010

ATO LITERÁRIO Nº 5

O Presidente Do Conselho de Segurança Nacional de Invenção Literária,

Considerando que a Literatura Brasileira tem fundamentos e propósitos que visam dar ao país um regime de autêntica imaginação democrática, baseada no respeito à dignidade da personagem e no combate às ideologias contrárias às tradições de nossas obras em prosa e verso,
E de maneira a poder enfrentar os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem artística de nossa pátria
Resolve editar o seguinte ATO LITERÁRIO

Art. 1º - Estão proibidas em todo território nacional as caçadas de Pedrinho, as reinações de Narizinho, as viagens ao céu e as histórias do mundo para crianças.
Art. 2º - Serão investigadas todas as contas da aritmética da Emília. Para tal, o Tribunal de Contas da União indicará especialistas de renome nacional.
Art. 3º - Estão suspensos temporariamente os Doze Trabalhos de Hércules, até que se prove que nenhum deles envolve trabalho escravo.
§ 1º - Quem souber do paradeiro do Sr. Hércules deve informar às autoridades literárias constituídas.
Art. 4º - Serão alvo de investigação todas as fronteiras estabelecidas pela geografia de Dona Benta, sendo providenciadas pelos órgãos responsáveis as necessárias remarcações daí advindas.
Art. 5º - Está decretado o estado de sítio do Picapau Amarelo e estão proibidas quaisquer reuniões com o objetivo de contar histórias em todo o seu território.
Art. 6º - Fica proibida a partir dessa data a fabricação, bem como a distribuição, a venda e o consumo, do pó de pirlimpimpim.
Art. 7º - Estão suspensos por tempo indeterminado os direitos literários dos personagens Dona Benta, Pedrinho, Narizinho, Emília, Tia Nastácia, Visconde de Sabugosa, Quindim e Rabicó.
Art. 8º - O presente Ato Literário entra em vigor nesta data, revogadas as criações em contrário.
Pasárgada, 12 de novembro de 2010.


TIA ANASTÁCIA PROCESSA DONA BENTA

Os advogados de Anastácia Dória, 78, conhecida como Tia Nastácia, entraram ontem com processo na 13ª Vara de Trabalho de Taubaté contra dona Benta Encerrabodes de Oliveira. Anastácia alega ter trabalhado para Dona Benta por 45 anos no Sítio do Picapau Amarelo, exercendo as funções de empregada doméstica, babá, governanta e agricultora, sem receber nenhum salário. E há três anos teria sido despedida e despejada de sua moradia, um barraco nos fundos da casa da fazenda, sem nenhuma indenização. Já os advogados de dona Benta afirmaram em juízo que Anastácia e Benta eram simples amigas e moravam juntas no sítio, nunca tendo havido nenhum vínculo empregatício entre elas. Segundo eles, Benta e Anastácia faziam várias atividades juntas e em comum acordo, como cozinhar, lavar, passar, varrer, cuidar da horta e das crianças. Os sobrinhos de dona Benta, Pedro Encerrabodes de Oliveira e Lucia Encerrabodes Cambará, conhecida como Narizinho, confirmaram em juízo as declarações da tia. E embora não tenha sido levado em consideração pelo juiz, causou frisson no tribunal o depoimento do travesti conhecido como Boneca Emília, que afirmou que Nastácia e Benta eram mais do que amigas, eram amigadas.

Um item apresentado como prova de trabalho pela acusação - o “Livro de Receitas de Dona Benta”- acabou sendo motivo de grande tumulto no tribunal pois nesse momento Tia Nastácia levantou-se e, bastante nervosa, acusou dona Benta de ter roubado dela todas as receitas publicadas na obra. O julgamento teve que ser interrompido até que a Anastácia fosse acalmada por seus advogados. Aguarda-se para amanhã o depoimento-chave do escritor Monteiro Lobato.

CHIPS – o prazer da batata & o poder do circuito –

Um novo haiconto de Alice Barreira.

A VISITA

Como faço todas as tardes, tomei meu banho, botei um vestido bem leve, me maquiei, passei perfume, ajeitei os cabelos com gel, fui até a sala, chamei um táxi, desci no elevador, cumprimentei o porteiro, peguei o taxi, dei a volta no quarteirão, saltei, tornei a cumprimentar o porteiro, subi no elevador, parei em frente à porta e toquei a campainha.

Ninguém abriu.

Insisti. Uma, duas, três, quatro vezes. Nada. Não adianta. Não estou. Nunca estou. E fico aqui parada, diante da porta, na dúvida: deixo um bilhete para mim?

DÁ LICENÇA DE CONTAR

MATOU A NOIVA EM FRENTE À FÁBRICA DE TECIDOS

O guarda noturno desempregado João Ninguém invadiu na noite de ontem o pátio da fábrica de tecidos Confiança, no bairro de Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, e matou a tiros sua noiva, Rosa Esteves de Souza, conhecida como Rosinha e moradora do morro de Mangueira. Segundo depoimento de outra operária amiga da vítima e que se identificou apenas como Risoleta, o motivo do crime seriam os ciúmes incontroláveis do noivo. Risoleta declarou que, enquanto atirava várias vezes na noiva já caída, João Ninguém berrava: “Finge agora que não me vê, finge!” e “cadê o gerente impertinente que dar ordens pra você?”.

O assassino conseguiu escapar pois o barulho dos tiros foi abafado pelos apitos da chaminé de barro da fábrica, fazendo com que a segurança nada percebesse. Apesar da baixa temperatura registrada nessa que foi a noite mais fria do ano, o corpo de Rosinha permaneceu estirado no pátio, sem meias nem agasalho.

O guarda civil que trabalha como chefe do setor de segurança da fábrica e é vizinho de Rosinha no morro de Mangueira afirmou que não é a primeira vez que homens criam tumulto por conta dela. Segundo ele, no morro de Mangueira, onde Rosinha é cabrocha de alta linha, um homem foi encontrado na ribanceira com um punhal no coração e o crime seria resultado de mais uma disputa amorosa pela cabrocha. A polícia não soube informar se João Ninguém também estaria envolvido neste outro assassinato. Mas o guarda civil, que não quis declarar seu nome, garantiu que sim e ainda afirmou à nossa reportagem: “é assim mesmo, doutor, o homem já nasceu dando a costela à mulher”.

(Da reportagem local)

MERCADO FINANCEIRO - o melhor investimento para o seu dinheiro


Com o impasse na reunião do G 20,
o Mercado mundial está temendo uma retração nas ações ao portador
e nos esfíncteres dos acionistas.
Mas nossa coluna sempre tem uma informação que mais ninguém tem.
Sabe por que? Porque nós, como tudo que é jornal, inventamos o que noticiamos.
E no atual momento, tão cambial e cambiante,
o melhor lugar pra você torrar a sua pouca grana é nos...

CEM MENORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO

Lançada pela Ateliê Editorial, essa coletânea foi organizada pelo escritor Marcelino Freire, que disse no prefácio: “... resolvi desafiar cem escritores brasileiros, deste século, a me enviar histórias inéditas de até 50 letras (sem contar título, pontuação). Eles toparam.”
Aqui vai uma seleção preparada pelo Patavina’s, só pra te dar água na boca!
(P.S.: o século a que ele se refere é o 20.)



Ali, deitada, divagou:
Se fosse eu,
Teria escolhido lírios.

Adriana Falcão


ARRUDA

- Se for o Capeta,
Diz que eu tô no banho.

Andrea Del Fuego


MAS O RIO CONTINUA LINDO

Pensa o desempregado
Ao pular do Corcovado.

Antônio Torres


OUTRA VIAGEM

A mala é bem grande,
Mas não sei se cabem as pernas.

Arthur Nestrovski


- Diz que me ama.
- Aí é mais caro.

Beto Villa


Uma vida inteira pela frente.
O tiro veio por trás.

Cíntia Moscovich


- Lá no caixão...
- Sim, paizinho.
- ... não deixe essa aí me beijar.

Dalton Trevisan




Se eu soubesse o que procuro
Com esse controle remoto...

Fernando Bonassi


FEIJOADA

Confesso.
Fui eu que enfiei a faca
Na barriga desse porco.

Ivana Arruda Leite


VIGÍLIA

Pronto nos olhos,
O pranto só espera a notícia.

João Anzanello Carrascoza


A DÍVIDA

Mata o pai,
Arromba o cofre,
Só uma caixa vazia.

José Castello


DISQUE-DENÚNCIA

- Cabeça?
- É.
- De quem?
- Não sei. O dono não tá junto.

Marçal Aquino.


PEDOFILIA

Ajoelhe, meu filho.
E reze.

Marcelino Freire


CEIA EM FAMÍLIA

- Sempre foi um bom pai.
- Ótimo. Passa um pedaço do fígado.

Mauro Pinheiro


CRIAÇÃO

No sétimo dia, Deus descansou.
Quando acordou, já era tarde.

Tatiana Blum.

RARO EFEITO

INÉDITO DE CAMÕES

O crítico literário e pesquisador de fontes arcaicas português Pedro Velludo acaba de abalar o mundo literário com mais uma de suas descobertas. Em 2002 Velludo encontrou os documentos que comprovaram a improvável luta de box entre Kafka e Borges na Primeira Bienal do Livro do Rio de Janeiro no ano de 1923; agora ele descobriu em Moçambique, na cidade de Beira (antiga Sofala), três arcas com objetos e papéis que teriam pertencido ao poeta Luiz Vaz de Camões. O pesquisador ainda está estudando o material mas já trouxe a público uma carta encontrada em uma das arcas, que teria sido escrita por Camões para o governador de Moçambique, Pedro Barreto, em 1565, quando o poeta vivia em extrema penúria e tentava regressar a Portugal, o que só conseguiu quatro duros anos depois, em 1569. A carta revela um Camões dilacerado não só pela pobreza mas sobretudo pela perda de sua amada, a chinesa Dinamene, que teria morrido afogada no naufrágio em que o poeta consegue salvar os manuscritos dos Lusíadas. No texto, Camões se culpa, pensa que poderia ter abandonado seu poema e salvado a mulher. Assim, o documento comprova a até então duvidosa existência de Dinamene, revela um lado íntimo de Camões desconhecido e pode jogar uma nova luz sobre a lírica amorosa do poeta. Mas alguns estudiosos, principalmente o grupo construtivista ligado à Faculdade Letras da Universidade de Viana do Castelo, põe em dúvida a veracidade da carta e mesmo de toda a descoberta de Pedro Velludo.

Mas, verdadeira ou falsa, vamos a ela
.

“Sofala, 12 de setembro de 1565

Senhor meu mui amigo,

Já me põe a vida em tamanho espanto como descontentamento. É verdade que me encontro tão pobre que me alimento graças aos amigos e nem mais me lembro do gosto de um caril de caranguejo em ananás. Mas quisera fossem esses meus males. Se o que vejo em volta são águas claras, árvores altas, fontes que correm, aves que cantam, tudo no entanto me sabe a nada e tudo me enfada já. Ah, tivesse deixado em Ceuta toda a visão! Porque em verdade, Senhor, já nada me interessa ver, desde que não a vejo. Sabeis bem do que vos falo, mesmo tendo eu até hoje calado. E se vou aos solavancos nessa conversa é que tanto me custam as lembranças e tanto anseio me forrar de esquecimento antes de me ir. Mas, vos peço, não largai deste papel no qual vos dou conta de mim.

A lagarta sem piedade da morte não me roi de vez a vinha da vida, onde só o que faço é relembrar o naufrágio triste e miserando, de onde um pobre homem pensa que sobreviveu só porque trouxe ao regaço aqueles Cantos molhados. Mas naquele triste dia no Camboja, se com os braços alcancei os manuscritos do meu poema que ainda considero tão valeroso, vi escapar-me entre os dedos a cativa que me tem cativo. Por que não larguei o papelame e me embarafustei mais uma vez ao mar para buscá-la? Lembro ainda sentir seus cabelos a me roçarem os dedos. Ah dia, que de noite me cobriu a vida! Poderia tê-la salvado? Não saberei nunca. E poderei esquecer este fado? Isso sei que não. Pois que é este o mais certo costume da Fortuna: consentir que mais se deseje o que mais presto há-de-negar.

Senhor, depois que daquela terra parti, com minha obra já completa e a vida partida nas algibeiras, ando como quem o faz para o outro mundo, e joguei pelas traseiras da casa quantas esperanças dera de comer até então. Vejo que desenganei os pensamentos e que em mim não ficou pedra sobre pedra. E assim posto em estado que me não via senão por entre lusco e fusco, as derradeiras palavras que disse já em terra firme foram as que depois me entraram pelo poema - a dor que me ficou da mágoa, sem remédio, de perder-te. Ah! Fortuna cruel! Ah! Duros Fados!

Enfim, Senhor, sinto-me perdido pois não sei tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armaram os acontecimentos e me conduziu a vida madrasta, nessa tormenta grande em que me vi e ainda me vejo. Sou já um fruto que antes que amadureça, se seca. Nem mesmo consigo chegar ao fim do soneto que vós me encomendaste pela morte de D. Antônio de Noronha. E mal a mal consigo manter a ocupação de escrever as tantas cartas para o Reino.

Eis, Senhor, a triste situação em que me encontro. Agora que sabeis que eu ando não de paz, vos peço: não vos esqueçais de me valer e de me escrever, porque ainda me fica o que dizer e o que fazer nesta hora em que tudo é contra o pobre de Camões.

(Modernização do texto: Miguel Outorga do Castello)

LHUFAS - coisa com coisa nenhuma –

CANTIGUINHA

O Cravo brigou com a Rosa. Foi semana passada, bem aqui debaixo da minha sacada. A gente nem conseguiu dormir. Mas também não chega a ser uma novidade. Pelo menos uma vez por semana eles berram e se xingam. Cada nome. Minha avó pega o terço e fica andando de um lado pro outro. Sabe que isso me deixa mais nervosa do que a berraria dos dois? Mas se fosse só a berraria, só que aí eles começam a quebrar coisas, jogar louça, panela, o que for. É que eu não sou de reza mesmo, mas tira a gente do sério. Bom, lá pelas tantas chegou a polícia. O seu Nezinho do botequim é quem chama. Ele conhece os pms, que sempre comem e bebem de graça no bar. Normalmente eles chegam, dão uns três ou quatro berros, também quebram um troço qualquer, só pra fazer um barulho maior e os dois acabam sossegando. Mas dessa vez a coisa tava feia mesmo. Chamaram até a ambulância. Saíram os dois juntos, um em cada maca. Mesmo sangrando, continuavam a se xingar. Que coisa. Pelo menos a gente conseguiu dormir. Só que também não foi por muito tempo. No dia seguinte, de manhãzinha bem cedo, eles voltaram. Aí, já viu: logo, logo começou a berraria de novo. Mas dessa vez não era briga. O Cravo teve um desmaio, caiu da cama, babando e se urinando, todo torto. Parece que foi derrame. Não dava pra entender direito o que a Rosa berrava, porque ao mesmo tempo ela chorava, ainda por cima de boca inchada e sem dois dentes da frente. Mas deu pra perceber que ela tava culpando os médicos do hospital. Bom, culpados ou não, a ambulância voltou e levaram o Cravo outra vez. Parece que ele morreu no caminho. A Rosa? Desde esse dia que só chora, berra, xinga e se descabela. E a gente continua sem dormir.

RINHA DE GALINHA




Por Don King
- nosso correspondente na Academia Brasileira de Letras e Artes Marciais -

Wall, a mulher amada! A musa! Quanta porrada já saiu no mundo por causa delas. E agora pra vocês mais um combate. De um lado, o peso pesado mais leve da poesia brasileira. Sim, ele, o cara da pedra no meio do caminho. Isso mesmo: Carlos Drummond de Andrade, O Demolidor de Itabira!. No outro corner, com 80 quilos de pura metáfora, um estreante que vem desafiar o cinturão do Itabirense. É Fabrício Corsaletti, conhecido (e temido) no bairro da Liberdade como “A Fera do Kintarô”.

SENTIMENTAL

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçadas na mesa todos completam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!
- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar।"

Carlos Drummond de Andrade

SEU NOME

se eu tivesse um bar ele teria o seu nome
se eu tivesse um barco ele teria o seu nome
se eu comprasse uma égua daria a ela o seu nome
minha cadela imaginária tem o seu nome
se eu enlouquecer passarei as tardes repetindo o seu nome
se eu morrer velhinho, no suspiro final balbuciarei o seu nome
se eu for assassinado com a boca cheia de sangue gritarei o seu nome
se encontrarem meu corpo boiando no mar no meu bolso haverá um bilhete com o seu nome
se eu me suicidar ao puxar o gatilho pensarei no seu nome
a primeira garota que beijei tinha o seu nome
na sétima série eu tinha duas amigas com o seu nome
antes de você tive três namoradas com o seu nome
na rua há mulheres que parecem ter o seu nome
na locadora que frequento tem uma moça com o seu nome
às vezes as nuvens quase formam o seu nome
olhando as estrelas é sempre possível desenhar o seu nome
o último verso do famoso poema de Éluard poderia muito bem ser o seu nome
Apollinaire escreveu poemas a Lou porque na loucura da guerra não conseguia lembrar o seu nome
não entendo por que Chico Buarque não compôs uma música para o seu nome
se eu fosse um travesti usaria o seu nome
se um dia eu mudar de sexo adotarei o seu nome
minha mãe me contou que se eu tivesse nascido menina teria o seu nome
se eu tiver uma filha ela terá o seu nome
minha senha do e-mail já foi o seu nome
minha senha do banco é uma variação do seu nome
tenho pena dos seus filhos porque em geral dizem “mãe” em vez do seu nome
tenho pena dos seus pais porque em geral dizem “filha” em vez do seu nome
tenho muita pena dos seus ex-maridos porque associam o termo ex-mulher ao seu nome
tenho inveja do oficial de registro que datilografou pela primeira vez o seu nome
quando fico bêbado falo muito o seu nome
quando estou sóbrio me controlo para não falar demais o seu nome
é difícil falar de você sem mencionar o seu nome
uma vez sonhei que tudo no mundo tinha o seu nome
coelho tinha o seu nome
xícara tinha o seu nome
teleférico tinha o seu nome
no índice onomástico da minha biografia haverá milhares de ocorrências do seu nome
na foto de Korda para onde olha o Che senão para o infinito do seu nome?
algumas professoras da USP seriam menos amargas se tivessem o seu nome
detesto trabalho porque me impede de me concentrar no seu nome
cabala é uma palavra linda, mas não chega aos pés do seu nome
no cabo da minha bengala gravarei o seu nome
não posso ser niilista enquanto existir o seu nome
não posso ser anarquista se isso implicar a degradação do seu nome
não posso ser comunista se tiver que compartilhar o seu nome
não posso ser fascista se não quero impor a outros o seu nome
não posso ser capitalista se não desejo nada além do seu nome
quando saí da casa dos meus pais fui atrás do seu nome
morei três anos num bairro que tinha o seu nome
espero nunca deixar de te amar para não esquecer o seu nome
espero que você nunca me deixe para eu não ser obrigado a esquecer o seu nome
espero nunca te odiar para não ter que odiar o seu nome
espero que você nunca me odeie para eu não ficar arrasado ao ouvir o seu nome
a literatura não me interessa tanto quanto o seu nome
quando a poesia é boa é como o seu nome
quando a poesia é ruim tem algo do seu nome
estou cansado da vida, mas isso não tem nada a ver com o seu nome
estou escrevendo o quinquagésimo oitavo verso sobre o seu nome
talvez eu não seja um poeta a altura do seu nome
por via das dúvidas vou acabar o poema sem dizer explicitamente o seu nome

(O poema “Seu Nome” está no livro “Esquimó”, de Fabrício Corsaletti, lançado pela Companhia das Letras. )

“A LÍNGUA PORTUGUESA É MINHA PÁTRIA”

NASCER NO CAIRO, SER FÊMEA DE CUPIM

Rubem Braga

Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?
O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Alias, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.
Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.
Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência" — mas não o fiz para não entristecer o homem.
Espero que uma velhice tranqüila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios — me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?).
Alguém já me escreveu também — que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação — contra a língua". Mas acho que isso é exagero.
Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos cinqüenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.
Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.
Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa unia série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas da "Última Hora" ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de "O Globo?".
No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, ruas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.
Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de Cachoeiro de Itapemirim!
Rio, novembro, 1951

(Texto extraído do livro "Ai de Ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 197.)

2222 - FLOR DO LÁCIO - ÁFRICAS, VIA COPACABANA

Nosso ônibus anfíbio começa sua viagem. Por favor, facilite o troco e fale ao motorista tudo que lhe der na telha. Vamos às Áfricas, sempre tão plurais. E no meio de todos esses “Esses”, nosso caminho é pelas Áfricas de língua portuguesa, tão próximas entre si e de nós. E todos tão distantes. Quem são? Quem somos? As Áfricas e a última flor do Lácio.

JOSÉ CRAVEIRINHA
O poeta e contista José João Craveirinha (1922-2003) nasceu em Moçambique, trabalhou como jornalista e esteve preso entre 1965 e 1969 por fazer parte da Frelimo – Frente de Libertação de Moçambique e lutar pela independência de seu país. Exerceu diversos cargos na área cultural, nos governos pós-independência. Em 1991 tornou-se o primeiro escritor africano a ganhar o Prêmio Camões. A Editora UFMG, da Universidade Federal de Minas Gerais, acaba de lançar no Brasil os dois primeiros livros da Coleção Poetas de Moçambique, um com poemas de Rui Knopfli e outro com poemas de José Craveirinha.
Algumas de suas obras publicadas: Xibugo, (1964); Cântico a um Dio de Catrane (1966); Karingana Ua Karingana (1974); Cela 1 (1980) e Maria (1988).

A BOCA

Jucunda boca
deslabiada a ferozes
júbilos de lâmina
afiada.

Alva dentadura
antónima do riso
às escâncaras desde a cilada.

Exotismo de povo flagelado
esse atroz formato
da fala.

(do livro Babalaze das Hienas, 1997)

Depoimento autobiográfico, em janeiro de 1977:

"Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José.
Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Mae e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.
Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato. A seguir fui nascendo à medida das circunstancias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão. E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.
Nasci ainda mais uma vez no jornal "O Brado Africano". No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noemia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa da minha mãe só resignação.
Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.
Minha grande aventura: ser pai. Depois eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país tamé'm। Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes altas horas da noite."

PLEASE MISTER POSTMAN


Meu e mail: cesarcar@uninet.com.br
©Cesar Cardoso, 2010. Todos os direitos e esquerdos reservados. Que os 40 mil piolhos infectados de 18 mil camelos morféticos infestem as partes pudendas de quem publicar algum texto daqui sem avisar nem dar meu crédito.