( CRÔNICAS TEU MELHOR INIMIGO )
PATAVINA’S
O BLOG DO CESAR CARDOSO
Fundado na semana de 1922
TEU MELHOR INIMIGO – CRÔNICAS
E
vamos à primeira crônica do livro, que dá título a ele.
TEU MELHOR INIMIGO
Procura teu melhor inimigo.
Aquele que nunca te foi indiferente. Aquele que com
certeza foi grande amigo um dia, ou pelo menos você assim achava, e talvez ele
também. Até que ele te traiu, te passou a rasteira, afundou tua cabeça que
buscava a tona e o ar. Se ninguém agiu assim contigo, o dia está prestes e ele
está à espreita, pronto para o bote. E se você ficar atento, ele saberá
esperar, até que tua atenção se canse, esmoreça, cochile.
Porque ele é teu melhor inimigo. Ele te trai, mas compra
uma roupa especial pra ocasião. Ele te passa uma rasteira, mas é aquela que ele
nunca ensinou pra ninguém. É te mostrando o pulo do gato que ele voa na tua
carótida. Ele espera que você se vire, pensando em nada, e te esfaqueia pelas
costas, esquarteja tua carne, separa tuas costelas, secciona veias, perfura teu
pulmão. E o faz com uma adaga moura antiquíssima. Enquanto você agoniza, ele
ampara teu rosto e te conta dos sultões que possuíram aquela adaga e dos
tesouros que mudaram de mão graças a ela e dos bravos que sucumbiram pelo golpe
fatal que só ela sabe desferir, independente da mão que a segura. Ela esteve
com Silvério dos Reis, esteve em Roma, entre os Césares, talvez até mesmo nas
mãos de Caim. Ela é quem comanda a mão e se a mão não tiver a estirpe
necessária, ela cortará, não a tua jugular, mas a própria mão do inimigo, para que
ele aprenda que não estava à altura do teu ódio, não era digno de teu asco,
nunca fora merecedor de tua repulsa, não foi sem seria nunca teu melhor
inimigo.
É inútil. Por mais olhos que você tenha ou contrate,
você nunca vê teu melhor inimigo chegar. Se você pensa que vê, ou tua vista é
quem te trai ou tua ideia está variando ou é você inteiro que não o conhece.
Você ainda vive no engano, no logro, no erro. Mas teu melhor inimigo não erra
nem vem te enganar, que pra enganar qualquer inimigo serve. Ele, o teu melhor
inimigo, ele vem te desenganar.
É uma
paixão esse ódio a que ele dá de comer cotidianamente, como um pássaro, um
louva-a-deus. E para amparar tamanho ódio, para construir tanto rancor, ele se
dedicou a te conhecer a fundo, como só tua mãe te conhece. Nenhuma amizade tua
é capaz dessa dedicação, dessa fidelidade canina, de cão hidrófobo. Ele te
prepara uma canção que embosque como dois olhos de felino no escuro. E irá te
destruir com a melhor repugnância, o mais alto nojo, a mais dedicada raiva. Com
um desprezo fraterno, com uma ira maternal. E mesmo depois de te aniquilar, ele
não te esquecerá. Quando ninguém mais lembrar de ti, quando você for nada para
o mundo e os que nele vivem, para os que te conheceram, para os que te amaram
um dia, para os que choraram tua morte, só teu melhor inimigo irá te ver na tua
última morada e cuspir na tua cova e urinar sobre o teu nome, quase apagado na lápide.
Teu melhor inimigo é coisa pra se
guardar debaixo de sete chaves. E ele há de te guardar debaixo de sete
palmos.
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