quinta-feira, 4 de outubro de 2012

CONVERSA TAMBÉM É LITERATURA

            Ao preparar essa nova edição do PATAVINA’S fui notando que havia muitas conversas. Mulheres conversando através da poesia, escritores através dos temas de seus textos, seja pelo mistério presente nos contos meu e de Pedro Veludo, seja pela prosa poética como construção literária, caso de Mia Couto e Eduardo Galeano. Conversas em forma de memórias, de frases ou de poemas visuais. Entre Machado, Oswald e Manuel Antonio de Almeida. Entre Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes e Ivan Lessa.
          O Aurélio define conversa como “ajuste de contas, entendimento” ou “mentira”. Nada mais literário. Então, estamos conversados?

Cesar Cardoso

CONVERSAS POÉTICAS

          Eduardo Galeano e Mia Couto têm, no mínimo, dois continentes, dois oceanos e dois idiomas a separá-los. E no entanto conversam e se aproximam em sua construção de uma prosa sempre poética. Os textos que aqui estão são de seus mais recentes livros.
          Além deles, quatro poetas. Marina Colasanti fala de nossa condição mais humana, a de passageiros em trânsito. A polonesa Wislawa Szymborska continua em trânsito e mergulha no tempo, revisitando a mulher de Lot, na Bíblia. Ana Martins Marques pensa a própria palavra e sua força e, por fim, Maria Helena Castro Azevedo estica até o fim essa corda que nos une ao tempo e à falta que nos impulsiona... para onde?

Janeiro
12
A urgência de chegar

          Nesta manhã do ano de 2007, um violinista deu um concerto numa estação de metrô da cidade de Washington.
          Apoiado na parede, perto de um cesto de lixo, o músico, que mais parecia um rapaz do bairro, tocou obras de Schubert e outros clássicos, durante três quartos de hora.
          Mil e cem pessoas passaram sem deter seu passo apressado. Sete pararam durante pouco mais de um instante. Ninguém aplaudiu. Houve umas crianças que quiseram ficar, mas foram arrastadas pela mãe.
          Ninguém sabia que ele era Joshua Bell, um dos virtuosos mais cotados e admirados do mundo.
          O jornal The Washington Post havia organizado aquele concerto. Foi sua maneira de perguntar:
          - Você tem tempo para a beleza?

Junho
9
Sacrílegas

          No ano de 1901, Elisa Sanchez e Marcela Gracia contraíram matrimônio na igreja de São Jorge, na cidade galega de A Corunha.
          Elisa e Marcela se amavam às escondidas. Para normalizar a situação, com boda, sacerdote, certidão e foto, foi preciso inventar um marido: Elisa se transformou em Mario, vestiu roupa de cavalheiro, cortou os cabelos e falou com outra voz.
          Depois, quando ficaram sabendo, os jornais da Espanha inteira puseram a boca no mundo diante daquele escândalo asquerosíssimo, essa imoralidade desavergonhada, e aproveitaram aquela tão lamentável ocasião para vender como nunca, enquanto a Igreja, enganada em sua boa-fé, denunciava para a polícia o sacrilégio cometido.
          E desatou-se a caçada.
          Elisa e Marcela fugiram para Portugal.
          Caíram presas na cidade do Porto.
          Quando escaparam da cadeia, trocaram de nomes e foram mar afora.
          Na cidade de Buenos Aires perdeu-se a pista das fugitivas.

Julho
16
Meu querido inimigo

          A camisa do Brasil era branca. E nunca mais foi branca, desde que a Copa de 50 demonstrou que essa era a cor da desgraça.
          Duzentas mil estátuas de pedra no Maracanã: a final tinha acabado, o Uruguai era o campeão do mundo, e o público não se mexia.
          No campo, alguns jogadores ainda perambulavam.
          Os dois melhores, Obdúlio e Zizinho, se cruzaram.
          Se cruzaram, se olharam.
          Eram muito diferentes. Obdúlio, o vencedor, era de ferro. Zizinho, o vencido, era feito de música. Mas também eram muito parecidos: os dois tinham jogado a copa inteira machucados, um com o tornozelo inflamado, o outro com o joelho inchado, e de nenhum deles ninguém ouviu uma única queixa.
          No fim do jogo não sabiam se trocavam uma porrada ou um abraço.
Anos depois, perguntei a Obdúlio:
- E você tem visto o Zizinho?
- Tenho. De vez em quando. Fechamos os olhos e nos vemos.

Dezembro
20
O encontro

          A porta estava fechada:
          - Quem é?
          - Sou eu.
          - Não conheço você.
          E a porta continuou fechada.
          No dia seguinte:
          - Quem é?
          - Sou eu.
          - Não sei quem você é.
          E a porta continuou fechada.
          E no outro dia:
          - Quem é?
          - Sou você.
          E a porta se abriu.

          (Do poeta persa Farid al-din Attar, nascido em 1119, na cidade de Nishapur)

Eduardo Galeano, em Os Filhos dos Dias, L&PM Editores.


A Guerra dos Palhaços

          Uma vez dois palhaços se puseram a discutir. As pessoas paravam, divertidas, a vê-los.
          - É o quê?, perguntavam.
          - Ora, são apenas dois palhaços discutindo.
          Quem os podia levar a sério? Ridículos, os dois cómicos ripostavam. Os argumentos eram simples disparates, o tema era uma ninharice. E passou-se um inteiro dia.
          Na manhã seguinte, os dois permaneciam, excessivos e excedendo-se. Parecia que, entre eles, se azedava a mandioca. Na via pública, no entanto, os presentes se alegravam com a mascarada. Os bobos foram agravando os insultos, em afiadas e afinadas maldades. Acreditando-se tratar-se de um espetáculo, os transeuntes deixavam moedinhas no passeio.
          No terceiro dia, porém, os palhaços chegavam a vias de facto. As chapadas se desajeitavam, os pontapés zumbiam mais no ar que nos corpos. A miudagem se divertia, imitando os golpes dos saltimbancos. E riam-se dos disparatados, os corpos em si mesmo se tropeçando. E os meninos queriam retribuir a gostosa bondade dos palhaços.
          - Pai, me dê as moedinhas para eu deitar no passeio.
          No quarto dia, os golpes e murros se agravaram. Por baixo das pinturas, o rosto dos bobos começava a sangrar. Alguns meninos se assustaram. Aquilo era verdadeiro sangue?
          - Não é a sério, não se aflijam, sossegaram os pais.
          Em falha de trajetória houve quem apanhasse um tabefe sem direção. Mas era coisa ligeira, só servindo para aumentar os risos. Mais e mais gente ia juntando.
          - O que se passa?
         - Nada. Um ligeiro desajuste de contas. Nem vale a pena separá-los. Eles se cansarão, não passa o caso de uma palhaçada.
          No quinto dia, contudo, um dos palhaços se muniu de um pau. E avançando sobre o adversário lhe desferiu um golpe que lhe arrancou a cabeleira postiça. O outro, furioso, se apetrechou de simétrica matraca e respondeu na mesma desmedida. Os varapaus assobiaram no ar, em tonturas e volteios. Um dos espectadores, inadvertidamente, foi atingido. O homem caiu, esparramorto.
          Levantou-se certa confusão. Os ânimos se dividiram. Aos poucos, dois campos de batalha se foram criando. Vários grupos cruzavam pancadarias. Mais uns tantos ficaram caídos. Entrava-se na segunda semana e os bairros em redor ouviram dizer que uma tonta zaragata se instalara em redor de dois palhaços. E que a coisa escaramuçara toda a praça. E a vizinhança achou graça. Alguns foram visitar a praça para confirmar os ditos. Voltavam com contraditórias e acaloradas versões. E a vizinhança se foi dividindo, em opostas opiniões. Em alguns bairros se iniciaram conflitos.
          No vigésimo dia se começaram a escutar tiros. Ninguém sabia exatamente de onde provinham. Podia ser de qualquer ponto da cidade. Aterrorizados, os habitantes se armaram. Qualquer movimento lhes parecia suspeito. Os disparos se generalizaram. Corpos de gente morta começaram a se acumular nas ruas. O terror dominava toda a cidade. Em breve, começaram os massacres.
          No princípio do mês, todos os habitantes da cidade haviam morrido. Todos exceto os dois palhaços. Nessa manhã, os cómicos se sentaram cada um seu canto e se livraram das vestes ridículas. Olharam-se, cansados. Depois, se levantaram e se abraçaram, rindo-se a bandeiras despregadas. De braço dado, recolheram as moedas nas bermas do passeio. Juntos atravessaram a cidade destruída, cuidando para não pisar os cadáveres. E foram à busca de uma outra cidade.

Mia Couto, em Estórias abensonhadas, Companhia das Letras.


E logo

Taxia na pista
o avião que me leva.
Do lado de fora do campo
os muitos vagões de um comboio
avançam nos trilhos.
Duas forças se lançam
no mesmo sentido
irmãs por segundos,
e logo
o avião se desprende do chão
as rodas se escondem no ventre
o avião faz-se ave.
Abaixo
O trem lentamente se torna
um traço de lápis
no verde.

 
Colheita

Trago para casa
um poema,
a viagem já
valeu a pena.

Marina Colasanti, em Passageira em Trânsito, Record.


A mulher de Lot

Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo que vivia
Serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
E caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caía do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.

Wislawa Szymborska em [poemas], tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras.


Resistência à teoria

um galo de lã
não tece a manhã

flores de tecido
não brotam no vestido

mapas no fundo
não são o mundo

com nenhum nome
se mata a fome

as uvas tampouco
nascem na vinha

sob a luminosidade
da palavra dia

(podes ver
o amor
brilhando
entre as letras?)

Ana Martins Marques em Da Arte das Armadilhas, Companhia das Letras.


incompleta

no fim vai faltar
uma frase
vai faltar uma base
uma xícara na mesa
vai faltar no fim
quem sabe
um jardim na redondeza
um item na lista imensa
vai faltar uma clareza
uma escuridão
outra solução vai faltar
o que não há
ainda e não virá
no fim vai sobrar
muita falta
após a ponta mais alta
vai faltar o ar
o que tanto queria
o que nunca podia
faltar vai faltar
tanto esforço apesar
alguma coisa vai
faltar um ai
um oi um fim
no fim vai faltar
porque é assim.

Maria Helena Castro Azevedo, poema classificado em primeiro lugar no Prêmio Off Flip de Literatura – 2012.

CONVERSA DE BOTEQUIM

Enquanto voltava pra casa, bêbado, numa madrugada perdida no tempo, encontrei-me com Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes e Ivan Lessa, sentados na mesa de um botequim suspenso no ar, bem ali na fronteira entre Ipanema e Londres, Comemoravam os cem anos de Nelson. Na mesa, várias garrafas vazias de uísque e um prato com mingau de leite. Sentei-me na mesa ao lado e anotei o que eles diziam, enquanto tomava mais umas cervejas.

Amar é... ser a primeira a reconhecer o corpo dele no Instituto Médico Legal. (IL)

O amor bem-sucedido não interessa a ninguém. (NR)

Sempre me achei um homem totalmente livre; mas ontem um guarda me convenceu do contrário. (MF)

Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico. (NR)

Morte súbita é aquela em que a pessoa morre sem o auxílio dos médicos. (MF)

Cada um de nós morre uma única e escassa vez. Só o ator é reincidente. O ator ou a atriz pode morrer todas as noites e duas vezes às quintas, sábados e domingos, com vesperais a preços reduzidos. (NR)

Nem tudo que reluz é ouro. Purpurina e refletor em cima de bosta surtem o mesmo efeito. (IL)

O Grande ator é inteligente demais, consciente demais, técnico demais. O canastrão, não. Está em cena como um búfalo da Ilha de Marajó. Sobe pelas paredes, pendura-se no lustre e, se duvidarem, é capaz de comer o cenário. Por isso mesmo, chega mais depressa ao coração do povo. (NR)

Nos filmes violentos que são exibidos todas as noites na televisão, qualquer criança sabe de antemão quem é o criminoso – o dono da tevê. (MF)

Só se escreve para provocar um inimigo, conquistar uma mulher ou ganhar muito dinheiro. (IL)

O Fla-Flu não tem começo. O Fla-Flu não tem fim. O Fla-Flu começou quarenta minutos antes do nada. E, então, as multidões despertaram. (NR)

Todo homem tem o sagrado direito de torcer pelo Vasco na arquibancada do Flamengo. (MF)

A cada 15 anos, o Brasil se esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos. (IL)

Tenho um pavor cósmico do brasileiro profundo. Geralmente a nossa profundidade é dessas que uma formiguinha atravessa com água pelas canelas. (NR)

Temos que começar por baixo. Como os Estados Unidos, por exemplo: começaram com um país só. (MF)

Alguém poderá perguntar: - afinal, eu acredito ou não no homem? Claro que sim. Mas em um homem que seja um deslumbrante centauro, metade Deus e metade Satã. Se, porém, falta ao homem a metade satânica, não teremos homem, não teremos ninguém. (NR)

O mundo tem muitos idiotas mas, felizmente, estão todos nas outras mesas. (MF)

Há quem me pergunte se não tenho medo do ridículo. Absolutamente. O preconceito contra o ridículo é um equívoco obtuso e milenar. Só o imbecil não é ridículo. (NR)

Não há motivo nenhum para nos sentirmos à vontade no mundo. Os alienígenas somos nós. (IL)

Só os subdesenvolvidos ainda se ruborizam. Ao passo que o grande povo é, antes de tudo, um cínico. Para fundar um império, um país precisa de um impudor sem nenhuma folha de parreira. (NR)

O Oriente só é médio para quem não vive lá. (MF)

A viagem é a mais burra e empobrecedora das experiências humanas. O homem existe em função do vizinho, da rua, das esquinas que ele percorre, dos credores, fornecedores, paisagens. Quando o homem se separa disto, ele deixa de existir. (NR)

Convenção de Genebra só funciona uma: não divulgar, de forma alguma, o número da conta. (IL)

Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe. (NR)

Somos um povo muito musical. Agora só falta alguém botar a letra. (IL)

Chama-se de herói o cara que não teve tempo de fugir. (MF)

Sem sorte, não se chupa nem um chica-bom. Você pode engasgar com o palito ou ser atropelado pela carrocinha. (NR)

Sincretismo religioso é quando um padre não passa debaixo de uma escada. (IL)

O cão é o melhor amigo do homem; o gato nem tanto. (MF)

Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar. (NR)

As galinhas que engolem relógios de pulso não põem ovos na hora certa. (MF)

(Frases retiradas de livros diversos de Millôr Fernandes, de texto sobre Ivan Lessa na internet e do livro Flor de Obsessão – as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues, seleção e organização de Ruy Castro, Companhia das Letras.)

CONVERSAS MISTERIOSAS

Eu e meu amigo e também escritor Pedro Veludo escrevemos, cada um, um conto onde o mistério ronda os personagens. Nós, que tantas vezes conversamos nas ladeiras de Santa Teresa e, da última vez, em ladeiras e largos de Lisboa, agora conversamos na literatura, através de nossos personagens. O conto de Pedro é inédito. O meu também e faz parte do livro AS PRIMEIRAS PESSOAS, que vou publicar em novembro, pela Editora Oito e Meio. É um livro de contos onde todas as narrativas acontecem na primeira pessoa, criando uma multiplicidade de personagens e uma polifonia narrativa.

Os autores Pedro Veludo e Cesar Cardoso, tomando ginginha em Lisboa, cidade onde misteriosamente nunca estiveram.

ELES

          Era de madrugada e eu tinha sete anos e meio. Acordei com sede na velha casa dos avós sempre rangendo e rangendo. Fui morar lá depois que mamãe desapareceu. Ao entrar na cozinha, dei com a porta que levava ao quintal aberta e pude ver a lua bebendo água na vasilha do cachorro. Mesmo com medo tentei me aproximar, bem lentamente, mas ela talvez tenha pressentido minha presença ou simplesmente matado sua sede e fugiu galgando o céu. Durante muitas madrugadas acordei para espiar a lua. O cachorro fazia a mesma coisa, parou de comer e morreu ganindo. Então o medo me venceu, eu guardei a lua e sua sede dentro de mim e aprendi a desistir das melhores coisas.
          Desde o desaparecimento de mamãe eu passara a ter o sono muito leve e quando por fim consegui esquecer a lua, eles chegaram. Novamente era madrugada, acordei com alguém tocando de leve no meu ombro e não havia ninguém no quarto. Um mal estar foi me tomando o corpo, de forma muito rápida, algo que eu nunca sentira antes, quase como um gozo, e resultou num pequeno vômito de tons azulados que eu acolhi assustada na fronha do travesseiro. Levantei-me, fui até o banheiro, atarantada, joguei tudo na privada, dei a descarga e fiquei vendo a água subir, subir, subir. Ali, olhando aquela estranha mistura de água, fronha e índigo vômito, tive a certeza de que alguma coisa se partia dentro de mim. Como era a primeira vez que tinha alguma certeza ainda duvidei um pouco. Mais tarde, pensando sobre essa madrugada em que os pequenos vômitos chegaram, mudei de ideia e considerei que aquele foi o momento de minha formatura, já que a faculdade mesmo não terminei. A medicina era um desejo meu ou de minha mãe? Nunca terei essa resposta. É bom não ter tantas respostas. Tirei dos guardados o caneco de ágata que eu usava na infância, passei a deixá-lo sempre à mão antes de me deitar e, desde então, todas as madrugadas exerço a minha profissão. Acordo, guardo o pequeno vômito no caneco, vou ao banheiro, me despeço e me livro dele, dou a descarga e volto a dormir.
          Meu pai, mesmo tendo cruzado comigo algumas vezes no corredor e tendo escutado alguns ruídos através da porta do banheiro apenas encostada, nunca notou nada de diferente ou estranho nem viu motivo para entreabrir a porta e olhar o que acontecia. Olhar cansa, ele sempre me disse. E eu me acostumei àquela rotina, até o dia da descoberta, à minha revelia. (Não era de descobrir muitas coisas, sempre preferi cobri-las, como fazia na infância com os pés e o rosto para dormir.)
          Uma amiga do curso de vestibular fora estudar lá em casa. Era verão e um daqueles temporais tão exagerados a reteve. Eu quase rezei para que a chuva parasse mas não houve jeito, acomodei-a em minha cama e recostei-me na poltrona de leitura que ficava em frente. De madrugada, quando eu terminava de cumprir meu ritual, percebi os olhos da amiga assistindo tudo da porta do banheiro. Quis saber se fora a comida ou. E eu, mais para me livrar das perguntas e do susto, contei-lhe meu hábito noturno. Ficou surpresa, preocupada, incomodada. Insistiu que conversássemos a respeito, falou de médicos conceituados que sua família conhecia e podia pagar até, se o caso fosse dinheiro. Rejeitei educadamente o quanto pude as ofertas até perder-me numa crise nervosa e terminar dormindo acordada na sala.
          Na manhã seguinte a amiga, uma dessas moças muito solícitas, que adoram tomar conta de tudo em volta como se tivessem parido o planeta, insistiu na ajuda e fez questão de revelar a história à família, meu pai. Arregalei os olhos diante de tamanha mentira, meu pai compreendeu e delicadamente pediu que ela não aparecesse mais. Foi como se ele tivesse finalmente passado sua mão sobre meus cabelos. Ainda naquela semana eu tomei coragem e contei-lhe que sabia de tudo sobre mamãe. Com os mesmos olhos baixos, ele também me pediu que não aparecesse mais e assim voltei para a velha casa dos avós, que a essa altura rangia menos, meu avô morrera de câncer.
          Nessa época eu já me esquecera completamente da lua e muito raramente olhava o céu. Minha avó sorria e socava as tristezas com muito alho e noz moscada, que perfumavam seu bolo de carne e nossos jantares. Ela contou-me que, desde a morte de meu avô, tomava um ansiolítico bem forte após o jantar e só despertava na manhã seguinte, houvesse o que houvesse. E havia, é claro, meus vômitos cada vez mais azuis. Eu passei a acreditar que os pequenos vômitos eram meus poemas, como se fossem haicais, que então eu lia em grande quantidade, me dedicando com afinco ao estudo de sua estrutura, único estudo a que eu realmente me dediquei na vida. Ou talvez meu único momento de afinco. Mas nem o afinco nem os haicais me serviram. Com calma e tempo percebi o engano. São cantigas, os pequenos vômitos. Simples cantigas dessas que se canta e somem imediatamente no ar, não merecendo nenhum tipo de estudo. Também não merecem plateias, não têm engajamento, não acreditam em Deus, não sabem de onde vêm nem para onde vão, os pequenos vômitos e sua dona. Ou antes, eles os meus donos, em sua arte pela arte.
          Minha avó morreu e eu fiquei na casa velha, rangendo de vez em quando para ter umas poucas saudades, quase sem chegar ao plural. Meu pai disse que tinha uns negócios urgentes e voltou para o sul. Mesmo com os pequenos vômitos, casei, tive um casal de filhos, me separei, casei de novo, tive mais uma menina, além dos dois meninos que meu marido trouxe do primeiro casamento, trabalho, tenho relações sexuais satisfatórias, vejo tevê, faço crediários e tive dois amantes. Mas a verdade é outra, é sempre outra.
          Ou melhor, muitas outras, tantas que conforme fui tentando descobri-las me perdi. Ter filhos foi um suplício desde a gravidez. Em todas as três não enjoei uma única vez e passei nove meses em pânico, teria perdido para sempre os pequenos vômitos? E como embalar os filhos que teriam roubado minhas próprias cantigas com que me embalo? Mas eles voltaram na amamentação. Sempre golfamos juntos, os bebês e eu. E foram os únicos momentos em que me senti unida aos meus filhos. Não pela amamentação, essa atividade lamentável que tantas vezes por dia me transformava numa refeição sem graça, mas pelas golfadas, embora as deles não fossem nem de longe azuladas. Não puxaram à mãe. Fora isso, meus filhos são três estranhos que me aborrecem, assim como os enteados. Não que eu goste ou desgoste desse resultado, simplesmente resultou e, como meus pequenos vômitos, foi maior do que eu. Todas as vezes, e não foram poucas, em que tentei me aproximar deles, os conflitos surgiram como do nada, tudo desaguou em mal-entendidos e dias e dias de caras amarradas. Os casamentos também não foram diferentes. E o que se chama de um de seus momentos sublimes, o sexo, serviu apenas para mostrar-me, à custa de pouco gozo, alguma dor e bastante fingimento, a real distância entre dois seres que se amam, mas graças a Deus um dia se separam entre lágrimas.
          Quanto ao resto, toda a vida que se vive por aí, sim, o trabalho é inútil, o que compro não me enfeita nem me serve e custa-me o esforço de uma maratona me concentrar num simples capítulo de novela. Mas a cada madrugada, ah, meus pequenos vômitos, sempre eles, eles sim, os seres vivos. Não vou descobrir, já tentei e já desisti. Desistir é o meu melhor. Deito-me excitada e por vezes custo a dormir, já sonhando com o leve toque no ombro esquerdo, sempre o mesmo ombro esquerdo, o despertar, o turbilhão interior e meu parto golfado em azul, pérola e úlcera de toda madrugada. Minha única diversão e meu verdadeiro trabalho. Ultimamente levo-o até o quintal antes de colocá-lo na água da privada. Quem sabe, numa madrugada dessas, encontro a lua bebendo água na vasilha do cachorro que não tenho.

Cesar Cardoso, em As Primeiras Pessoas, livro de contos a ser lançado em final de novembro, pela Editora Oito e Meio.

AUTOSSUSPEITO

          Francisco Jorge da Silva Lacerda sempre sentira vontade de conhecer os vitrais, as estantes em madeira de lei e o piso daquela biblioteca antiga, situada no Centro da cidade. Contudo, nunca esperaria que isso fosse alterar os rumos de sua vida.
          Naquela quarta-feira de tarde, a biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura colocou-se – digamos assim – no seu caminho.
          Não queria ler ou consultar qualquer livro. Porém, não se sentindo à vontade em explicar ao bibliotecário que apenas desejava olhar paredes e estantes, com algum constrangimento apontou a esmo um volume de enciclopédia.
          Sentou-se, aguardando o pedido. Estranhou que o olhassem de lado, mas também ele olhava de lado os vitrais, colunas, estantes e... as pessoas.
          Pegou, com mal disfarçado desinteresse, o livro das mãos do bibliotecário: Volume XIV da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Limitada, Lisboa. Abriu-o ao acaso: página 505. Começou a ler. “Lacerda (Fernão Correia de). Condutário na Universidade de Coimbra no séc. XVII. Foi nomeado em 24-XII-1603. Deixou a universidade para... ”. Simulando procurar no texto algo bem definido, sua atenção divagava pelos vitrais da cúpula octogonal, as pinturas do teto, as pilastras pintadas em negro e ouro, o imponente lustre e os lambris em madeira evocando reminiscências mouriscas.
          Prosseguiu a leitura. "Lacerda (Francisco Arez Lobo de). Moço de câmara de D. João IV. Esteve cativo dos Mouros em Tetuã, durante doze anos, e no cativeiro compôs um poema, intitulado “Justicia sin pasion”, dedicado ao príncipe...” Súbito, seus olhos bateram no nome que encabeçava o verbete seguinte: Lacerda (Francisco Jorge da Silva)... o seu nome!
          Com espanto, leu sua data e local de nascimento, os colégios que frequentara na infância, o acidente que sofrera na adolescência “... que o deixou hospitalizado por alguns meses e com um fundamentado receio de veículos motorizados...”, o casamento, o divórcio, a mudança de estado. Ali estavam os dados significativos de sua vida, pequenos sucessos que ele sempre desejara fossem do conhecimento de todos, fracassos que ele pensava só ele saber.
          De repente, sentiu alguém tocar-lhe o ombro.
          - Senhor, estão à sua procura.
          Era o bibliotecário que, fazendo um tênue gesto com a mão direita, indicava a direção onde estavam dois homens, encostados simetricamente aos umbrais da porta de entrada.
          Francisco Jorge da Silva Lacerda olhou-os de relance, esticou o pescoço na direção do bibliotecário, e perguntou, em surdina:
          - A mim?
          - Sim... mas não parecem apressados - respondeu, em tom de desculpa.
          Francisco sentiu um estranho pressentimento. Tentou ignorar os dois homens, prosseguindo, com a respiração ofegante, a leitura do verbete. “Aparentemente, Petrópolis era uma cidade demasiado pequena para suas aspirações profissionais e em...” Sua desassossegada leitura passou a se alternar com uma indesejável névoa que persistia no canto do seu olho direito que, ele bem sabia, era a imagem distorcida dos indivíduos que o aguardavam. “Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde cursou jornalismo nas Faculdades Mem de Sá. De espírito irrequieto, abandonou o curso no terceiro ano para, juntamente com dois colegas, fundar o...” Pensou em levantar-se e averiguar o que aqueles homens pretendiam. Porém, as linhas que se seguiam o detiveram. “Em 15 de abril do mesmo ano, foi acusado de um crime: uma mulher foi encontrada, barbaramente assassinada...”
          De seu rosto pingaram gotas de suor gélido que umedeceram as palavras “barbaramente assassinada”. Ainda teve tempo de ler mais uma linha: “Condenado à revelia, à pena máxima, foi exaustivamente procurado pela polícia que...”
          - Francisco Jorge da Silva Lacerda? - perguntaram os dois homens, ao mesmo tempo, agora colocados lado a lado, em frente à mesa em que ele estava.
          Pensou dizer não, que não era ele, mas sua voz não saiu. Quis levantar-se, esclarecer o equívoco... sem dúvida se tratava de um equívoco. Não conseguiu.
          - Quem são vocês? - perguntou, afinal, desejando reverter a situação.
          - Você sabe - disseram, com voz seca; e após uma pausa: - Acompanhe-nos.
          Ele pediu um minuto: uma cólica intestinal repentina... precisava ir ao banheiro.
          O bibliotecário indicou-lhe uma porta ao fundo. Os homens seguiram-no, postando-se um de cada lado da porta. Dentro do banheiro ele passou água no rosto e olhou o espelho. Na certa o haviam confundido com outra pessoa. Como poderia ter cometido um crime e não se lembrar de nada? Mas, e o verbete da enciclopédia?
          Uma pancada na porta interrompeu-lhe os pensamentos, as cólicas aumentaram.
          Alarmado, tomado de um medo desconhecido que não lhe permitia pensar com clareza em nada, forçou a grade da janela do banheiro e pulou.
          Na rua, correu o mais que pode até dobrar a primeira esquina, dissolvendo-se no burburinho de fim de tarde. Rodou sorrateiramente pelos lugares mais movimentados até a noite se estabelecer. Depois, tomou a direção de casa.
          Chegando à sua rua, deu a volta ao quarteirão, pulou o muro e entrou pela porta dos fundos. Não se poderia demorar. A polícia, na certa, estaria rondando sua casa. Trocou de roupa, colocando uma camisa e uma calça que nunca usara por achar não condizentes com sua figura, raspou o bigode, trocou os óculos. Alterou o penteado e colocou um chapéu. Encurvou então o corpo, dando uma postura diferente a sua estatura.
          Olhou-se no espelho e admirou-se com a mudança.
          Tomando as mesmas precauções que tivera para entrar, saiu lançando um olhar a tudo, o que vagamente lhe lembrou uma despedida. Na rua, estacou ao avistar seu melhor amigo, que avançava em sua direção. Nos segundos que precederam o possível encontro, ele não saberia dizer se gostaria ou não de ser reconhecido. O amigo fixou vagamente os olhos nele e não parou.
          Dormiu em um banco de jardim um sono de pesadelos que o acordavam a cada momento. E cada vez que acordava, um pensamento o assaltava: voltar à biblioteca e terminar a leitura daquele verbete!
          Manhã cedo levantou-se, estranhando a indiferença dos passantes. Nas vitrinas das lojas parou por mais de uma vez para olhar o reflexo de sua figura encurvada que, de vitrina em vitrina, lhe parecia mais familiar e ao mesmo tempo mais distante de si próprio. Arriscou a padaria de sua rua, tomou um cafezinho no botequim de sempre e quase esbarrou no porteiro do seu prédio. Ninguém o reconheceu, ou talvez, como a cada momento mais lhe aprazia pensar, todos o viam como sendo outra pessoa.
          Só no final da tarde, com o coração acelerado de receio, entrou no Real Gabinete Português de Leitura. Foi recebido pelo mesmo bibliotecário que voltou a lhe oferecer ajuda. Solicitou o volume XIV da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e abriu-o na página 505. Leu o verbete com sofreguidão:
          “... foi finalmente localizado por dois policiais numa biblioteca pública do Centro da cidade. No entanto, conseguiu escapar por uma janela do banheiro, pelos fundos do edifício. Foi visto pela última vez pulando o muro que cercava as dependências do prédio onde residia.”
          No exato momento em que terminava a leitura do verbete, justo na última palavra da última linha, sentiu que alguém tocava seu ombro:
          - Senhor...
          Com a testa encharcada em suor, levantou o rosto:
          - Senhor... infelizmente está na hora de fechar - disse-lhe o bibliotecário.
          Francisco Jorge da Silva Lacerda levantou-se como um autômato e, com as pernas trementes, ganhou a rua.
          Caminhou sem rumo por horas a fio. Em frente a uma vitrina tirou o chapéu e passou a mão no cabelo, tentando que este voltasse ao penteado que sempre usara. A madeixa de cabelo, como impulsionada por uma mola invisível, não o permitiu. Adiante, em frente a outra vitrina, olhou seu corpo encurvado. Tentou endireitar-se, voltar à postura correta. Sentiu, no entanto, uma dor aguda nas costas que só desapareceu quando retornou à postura encurvada.
          Bem devagar, recolocou o chapéu na cabeça, soltou um suspiro de alívio e seguiu em frente.

Pedro Veludo, num conto ex-inédito.

CONVERSAS VISUAIS

O brasileiro Gil Jorge e o português E. M. de Melo Castro têm uma longa estrada com trabalhos do que podemos chamar de poesia visual. Os dois experimentam as linguagens verbais e visuais ao seu extremo e não perdem o lirismo que a poesia traz desde tempos imemoriais.



Pêndulo, de E. M. de Melo e Castro, publicado no site de Antonio Miranda: http://antoniomiranda.com.br

Entrodução- arte final: Silvio Gurgel, publicado nomsite Cronópios - www.cronopios.com.br



















IMPRESSÕES DIGITAIS

CASA DAS ROSAS:
A POESIA ATRAVESSA A AVENIDA PAULISTA

A Casa das Rosas, em plena avenida Paulista, bem no centro de São Paulo, é um lugar onde a poesia, sempre incerta, tem pouso certo. Virou espaço cultural em 1991, e desde 2004 ali funciona o Espaço Haroldo de Campos, que é coordenado pelo poeta Frederico Barbosa e, além de guardar o acervo de livros de Haroldo, possui uma biblioteca especializada em poesia e também uma livraria especializada em livros de editoras universitárias. Ali acontecem saraus, recitais, lançamentos de livros, peças de teatro, exposições e “qualquer outro formato que privilegie a difusão da poesia e da arte em geral”. Para conhecer a programação da Casa é só ir ao site: http://www.poiesis.org.br/casadasrosas/index.php . Ou:

SAIU O NÚMERO DOIS DA REVISTA Z
Pilotada de Brasília pelo poeta Paco Cac, a revista Z lança seu segundo número, com poemas de Adriana Sacramento, Alex Hamburguer, Cairo de Assis Trindade, Karl Gomide, Luis Turiba, Regina Pouchain, Silvana Guimarães, Waldo Motta e muito mais gente boa, inclusive esse que vos fala.
O n° 2 homenageia os poetas Zeca de Magalhães, Uilcon Pereira e Gilson BC Meirelles, que por um bom tempo (em todos os sentidos) trilharam os caminhos da poesia. Diz o editorial: “nesse segundo número, ampliamos nossa construção coletiva. Aumentamos o número de colaboradores e co-editores e estamos saindo com o dobro de páginas – 16. Vamos navegar por três meses até que o porto de dezembro nos traga o número 3. Nos interessam colaborações, comentários, polêmicas, anúncios, conversas sobre poesia sem fronteiras.
Z já vai zarpar. Embarque e vamos A a Z.”
Ah: conversas e pedidos para: paulocac5@gmail.com

JORNAL CÂNDIDO

Berço de uma verdadeira linhagem de jornais literários, como os finados Joaquim e Nicolau, e desde 2000, do jornal Rascunho, Curitiba ganhou em agosto de 2011 mais um impresso em cujas veias corre o sangue da literatura. Cândido é uma publicação mensal da Biblioteca Pública do Paraná, com distribuição gratuita, voltada para o universo dos livros e da literatura.
Reportagens sobre o mercado editorial, iniciativas da BPP, entrevistas com escritores, perfis, inéditos, ilustrações, e claro, um espaço para a literatura paranaense. A cada mês, é isso que o leitor encontra nas páginas do Cândido, nomeado em homenagem ao endereço da BPP, localizada na Rua Cândido Lopes, 133, no coração de Curitiba. Acesse aqui o Cândido.

NOVOS LIVROS DE CESAR CARDOSO
Abrindo a sessão “cabotinismo também é cultura”, vou fazer propaganda de mim mesmo. Lancei pela Editora Paulus Capoeira Camará, livro juvenil, ilustrado por Graça Lima, e que conta a história de Ana Olivia, uma adolescente que está vivendo um verdadeiro pesadelo na escola e na sua vida. Mas quando ela conhece Mestre Sorriso e os dois vão descobrir o mundo da capoeira, esse pesadelo pode virar um sonho. Ou um pesadelo pior ainda. O que acontecerá com Ana Olívia? Que perigos e mistérios ela e Mestre Sorriso vão enfrentar ao fazer uma viagem mágica para conhecer o mundo da capoeira? Descubra tudo isso e viaje com esses personagens em Capoeira Camará.
E também vou lançar AS PRIMEIRAS PESSOAS, em final de novembro. É meu primeiro livro de contos, onde todas as narrativas acontecem na primeira pessoa. Vai sair pela Editora Oito e Meio. E teve gente que já leu e gostou, olha só:
“Cesar Cardoso é íntimo das palavras. Utiliza-se delas para nossa diversão, mas não abandona o potencial de comoção que habita o fundo de cada uma delas.”
Mariel Reis

“Cesar Cardoso surpreende a cada história que narra, ou melhor dizendo, que os personagens narram por ele.”
Ronaldo Correia de Brito

ARTE E LETRA: ESTÓRIAS
CHEGA À EDIÇÃO R

A revista Arte e Letra: Estórias chegou em setembro à 18ª edição. Toda ilustrada pelo artista Jair Mendes, a publicação trimestral da editora curitibana Arte & Letra apresenta textos dos brasileiros Manoel Carlos Karam, Rubem Mauro Machado, João Anzanello Carrascoza, Alexandre França e João do Rio; do argentino Andrés Neuman; do colombiano Santiago Gamboa; do espanhol Pio Baroja y Messi; da chilena Lina Meruane; do inglês Thomas Hardy; e do tcheco Karel Čapek.
Com esta seleção eclética e plural de autores, a edição R da revista — que é contada com as letras do alfabeto, de A a Z, em vez dos tradicionais números — apresenta escritores consagrados do gênero, autores importantes ainda pouco conhecidos no Brasil e novos prosadores.
A revista pode ser comprada em livrarias ou pelo site da Editora Arte & Letra: http://www.arteeletra.com.br

LITERATURA PARA DOWNLOAD

João do Rio, Euclides da Cunha, José Veríssimo e Lima Barreto são apenas alguns dos nomes consagrados da literatura brasileira, que têm obras para download no site da Biblioteca Nacional Digital. Além das obras em PDF disponíveis gratuitamente, a BN Digital traz curiosidades como manuscritos digitalizados de Cecília Meireles, Adélia Prado e Carlos Drummond de Andrade. Leituras imperdíveis a um clique. É só acessar http://bndigital.bn.br .

UM HISTORIADOR VÊ A IMPRENSA
NO FIM DA MONARQUIA

Carbonário, Corsário, Diabrete, Judas Republicano: eis os nomes de alguns dos jornais que circulavam no Rio de Janeiro entre 1880 e 1883, descendo a ripa em tudo e em todos, das prostitutas da cidade ao imperador. De tamanho pequeno, preço baixo e linguagem violenta, eles fizeram sucesso na época. Por quê? O que representavam? Que interesses defendiam e que papel ocuparam no jogo político daquele momento histórico? Eram anti-monárquicos, verdadeiramente republicanos ou se vendiam a quem pagasse melhor? E como chegaram a alcançar tamanha repercussão?
Todas essas questões são analisadas no livro Pasquins: submundo da imprensa na Corte Imperial (1880 – 1883), do historiador Rodrigo Soares Cardoso de Araújo, lançado pela editora Multifoco. Especializado em História do Brasil, com ênfase no Segundo Reinado e no processo de transição do Império para a República, Rodrigo explica que os pasquins alcançaram popularidade na Corte, sendo combatidos pelas forças repressivas do Estado por conta dos ataques virulentos feitos a personalidades públicas, em geral por via da difamação: "Os pasquineiros eram jornalistas sem quaisquer escrúpulos para tornarem seus empreendimentos lucrativos. Espero que o leitor tenha momentos de fruição tomando contado com algumas das 'pasquinadas' protagonizadas por estes jornalistas. Ademais, acredito que os pasquins fornecem uma surpreendente mirada sobre a história do Brasil em fins do século XIX. Pouco estudado até então, o surto pasquineiro que se observou no início da década de 1880 elevou o tom dos discursos políticos para o nível da difamação; com isso, os pasquins garantiam boas vendas de seus exemplares e, logo, caíram no gosto da população da Corte Imperial".
O livro pode ser pedido pela internet na editora Multifoco (www.editoramultifoco.com.br) ou na Livraria da Travessa: www.travessa.com.br.

REVISTA ERRÁTICA

Editada pelos poetas André Vallias e Eucanaã Ferraz, a Errática é uma revista literária digital em alta voltagem criativa, Falam dela seus editores:
“É uma revista digital ‘sem número’: os trabalhos são publicados individualmente à medida que aparecem – textos, poemas, ensaios, vídeos, animações (interativas ou não) vão se somando ad infinitum, dispostos de 6 em 6 (as faces do dado).”
“Foi lançada em outubro de 2004, como um projeto ligado à segunda versão do site de Caetano Veloso. Teve uma dupla inspiração: a dinâmica dos blogs, que haviam se popularizado no início dos anos 2000, e as revistas de poesia da década de 1970, como Navilouca, Polem, Artéria, Poesia em Greve etc.”
Para chegar lá: http://www.erratica.com.br

TREVO NO AR

Outra novidade digital é a Revista Trevo, pilotada pelos jornalistas Thiago Kaczuroski e André Toso e pelo designer gráfico Leandro Borghi. E são eles que apresentam esse Trevo literário:
“A Trevo é distribuída gratuitamente e pode ser visualizada da forma como o leitor preferir: online em nosso site, baixada no computador, no tablet, em leitor digital, celular, etc. O objetivo é facilitar o acesso e criar um canal de divulgação de novas produções literárias independentes.
Então seja muito bem-vindo à Revista Trevo. Nossa edição de estreia já está disponível aqui. É só clicar e ler online ou baixar para ler quando bem entender. A escolha é sua.
Leia, comente, opine e compartilhe.”

THAT’S ALL, FOLKS!

Memórias: eis um tema que atravessa os tempos na literatura mundial. E não é difícil imaginar porque. Na literatura brasileira não é diferente. O PATAVINA’S traz aqui o final de quatro grandes livros de memórias ficcionais , escritos por quatro de nossos grandes autores: Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade e Memórias da Emília, de Monteiro Lobato. Além da óbvia conversa temática, esses autores trazem outros pontos de contato, como a ousadia na criação literária e o humor presente em todos esses livros.

25. CONCLUSÃO FELIZ

     A comadre passou com a viúva e sua tia quase todo o tempo do nojo, e acompanhou-as à missa do sétimo dia. O Leonardo compareceu também nessa ocasião, e levou a família à casa depois de acabado o sacrifício.
     Aquele aperto de mão que no dia do enterro de seu marido Luisinha dera ao Leonardo não caíra no chão a D. Maria, assim como também lhe não escaparam muitos outros fatos consecutivos a esse.
     O caso é que não lhe parecia extravagante certa ideia que lhe andava na mente.
     Muitas vezes, ao cair de ave-maria, quando a boa da velha se sentava a rezar na sua banquinha em um canto da sala, entre um padre-nosso e uma ave-maria do seu bendito rosário vinha-lhe à ideia casar de novo a fresca viuvinha, que corria o risco de ficar de um momento para outro desamparada num mundo em que maridos como José Manuel não são difíceis de aparecer, especialmente a uma viuvinha apatacada.
     Ao mesmo tempo que lhe vinha esta ideia lembrava-se do Leonardo, que amara a sua sobrinha no tempo da criançada, e que era, apesar de extravagante, um bom moço, não de todo desarranjado, graças à benevolência do padrinho barbeiro.
     Verdade é que se não sabiam bem as contas que seu pai havia feito a esse respeito; mas como era coisa que constava de verba testamentária, D. Maria nada via de mais fácil do que propor uma demanda, cujo resultado não seria duvidoso.
     Havia porém no meio de tudo uma circunstância que lhe desconsertava os planos. O Leonardo era soldado. Ora, soldado, naquele tempo, era coisa de meter medo.
     Quando D. Maria chegava a este ponto de suas meditações, abandonava-as e continuava o seu rosário.
     A comadre fazia quase exatamente os mesmos cálculos por sua parte, e também só esta única dificuldade se antolhava à realização de seus planos.
     Enquanto estas duas pensavam, os outros dois obravam.
     Luisinha e Leonardo haviam reatado o antigo namoro; e quem quiser ver coisa de andar depressa é ver namoro de viúva.
     Na primeira ocasião Leonardo quis recorrer a uma nova declaração; Luisinha porém fez o processo sumário, aceitando a declaração de há tantos anos.
     Sem que os vissem, viam-se os dois muitas vezes, e dispunham seus negócios.
     Infelizmente ocorria-lhes a mesma dificuldade: um sargento de linha não podia casar. Havia talvez um meio muito simples de tudo remediar. Antes de tudo, porém, os dois amavam-se sinceramente; e a ideia de uma união ilegítima lhes repugnava.
     O amor os inspirava bem.
     Esse meio de que falamos, essa caricatura da família, então muito em moda, é seguramente uma das causas que produziu o triste estado moral da nossa sociedade.
     Só essa dificuldade demorava os dois. Entretanto o Leonardo achou um dia o salvatério, e veio comunicar a Luisinha o meio que tudo remediava: podia ficar ele sendo soldado e casar, dando baixa na tropa de linha e passando-se no mesmo posto para as milícias.
     A dificuldade, porém, estava ainda em arranjar-se essa baixa e essa passagem: Luisinha encarregou-se de vencer esse embaraço.
     Um dia em que estava sua tia a rezar no seu rosário, justamente num daqueles intervalos de padre-nosso a ave-maria de que acima falamos, Luisinha chegou a ela e comunicou-lhe com confiança tudo que havia, fazendo preceder sua narração da seguinte declaração, que cortava a questão pela raiz:
     — Para lhe obedecer e fazer-lhe o gosto casei-me uma vez, e não fui feliz; quero ver agora se acerto melhor, fazendo por mim mesma nova escolha.
     Em breve, porém, conheceu que fora inútil sua precaução, porque D. Maria confessou que de há muito ruminava aquele mesmo plano.
     Combinaram-se pois as duas.
     A bondade do major inspirava-lhes muita confiança, e lembraram-se por isso de recorrer a ele de novo.
     Foram ter com Maria-Regalada, que mesmo na véspera lhes tinha mandado dar parte que se mudara da Prainha, e oferecia-lhes sua nova morada.
     A comadre, de tudo inteirada, fez parte da comissão.
     Quando entraram em casa de Maria-Regalada, a primeira pessoa que lhes apareceu foi o major Vidigal, e, o que é mais, o major Vidigal, em hábitos menores, de rodaque e tamancos.
     — Ah! - disse a comadre em tom malicioso, apenas apareceu a Maria-Regalada. - pelo que vejo isto por aqui vai bem...
     — Não se lembra - respondeu Maria-Regalada - daquele segredo com que obtive o perdão do moço? Pois era isto!...
     A Maria-Regalada tinha por muito tempo resistido aos desejos ardentes que nutria o major de que ela viesse definitivamente morar em sua companhia. Não atribuímos esta resistência senão a capricho, para não fazermos mau juízo de ninguém; o caso é que o major punha naquilo o maior empenho; teria lá suas razões. O segredo que a Maria-Regalada dissera ao ouvido do major no dia em que fora, acompanhada por D. Maria e a comadre, pedir pelo Leonardo, foi a promessa de que, se fosse servida, cumpriria o gosto do major.
     Está pois explicada a benevolência deste para com o Leonardo, que fora ao ponto de, não só disfarçar e obter perdão de todas as suas faltas, como de alcançar-lhe aquele rápido acesso de posto.
     Fica também explicada a presença do major em casa da Maria-Regalada.
     Depois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o pedido muito Justo, em consequência do fim que se tinha em vista. Com a sua influência tudo alcançou; e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis: um era a sua baixa de tropa de linha; outro, sua nomeação de sargento de milícias.
     Além disso, recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual o chamava para fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, que se achava religiosamente intacto.
     
                                                             ***

     Passado o tempo indispensável do luto, o Leonardo, em uniforme de sargento de milícias, recebeu-se na Sé com Luisinha, assistindo à cerimônia a família em peso.
     Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a do Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui o ponto-final.
                      
                                                             FIM

Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, domínio público.

Capítulo 160
Das Negativas

          Entre a morte de Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque era a genuína e direta inspiração do céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.
          Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais: não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis, Editora Record.


163
Entrevista Entrevista

          - Com que então o ilustre homem pátrio de letras não prossegue suas interessantíssimas memórias?
          - Não.
          - Seria permitido ao grosso público ledor não ignorar as razões ocultas da grave decisão que prejudica assim a nossa nascente literatura?
          - Razões de estado. Sou viúvo de D. Célia.
          - Daí?
          - Disse-me o dr. Mandarim que os viúvos devem ser circunspectos. Mais, que depois dos trinta e cinco anos, mezzo del camin di nostra vita, nossa atividade sentimental não pode ser escandalosa, no risco de vir a ser exemplo pernicioso às pessoas idosas.
          - O dr. Mandarim, com perdão da palavra, é uma besta!
          - Engano seu. O dr. Mandarim é bædeker de virtudes. Adoto-o.
          - A crítica vai acusá-lo e a posteridade clamar porque não continuou tão rico monumento da língua e da vida brasílicas no começo esportivo do século 20.
          - Já possuo o melhor penhor da crítica. Li as Memórias, antes do embarque, ao dr. Pilatos.
          - E ele?
          - O meu livro lembrou-lhe Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no estilo.

                                                                                                  Sestri Levante – Hotel Miramare. 1923.

LAUS DEO

Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade, Editora Globo.


          Bom. Vou acabar com estas memórias. Já contei tudo quanto sabia; já disse várias asneiras, já dei minhas opiniões filosóficas sobre o mundo e as minhas impressões sobre o pessoal aqui da casa. Resta agora despedir-me do respeitável público.
          Respeitável público até logo. Disse que escrevia minhas Memórias e escrevi. Se gostaram delas, muito bem. Se não gostaram, pílulas! Tenho dito.

Emília, Marquesa de Rabicó.

Sitío do Picapau Amarelo,

10 de agosto de 1936.

Memórias da Emília, Monteiro Lobato, Editora Brasiliense.

                                                        Meu e mail: cesarcar@uninet.com.br


Cesar Cardoso, 2012. Todos os direitos e esquerdos reservados. Que os piolhos infectados de 18 mil camelos infestem as partes pudendas de quem publicar algum texto daqui sem avisar nem dar meu crédito.