sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

“A INDESEJADA DAS GENTES”

POEMAS SOBRE A MORTE – PRIMEIRA EDIÇÃO



CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

(Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.)
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SE TE QUERES

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

(Álvaro de Campos, em Poesia Completa de Álvaro de Campos (edição de bolso), Companhia das Letras.)
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OS ÚLTIMOS DIAS

Que a terra há de comer,
Mas não coma já.
Ainda se mova,
para o ofício e a posse.
E veja alguns sítios
antigos, outros inéditos.
Sinta frio, calor, cansaço:
pare um momento; continue.
Descubra em seu movimento
forças não sabidas, contatos.
O prazer de estender-se; o de
enrolar-se, ficar inerte.
Prazer de balanço, prazer de vôo.
Prazer de ouvir música;
sobre o papel deixar que a mão deslize.
Irredutível prazer dos olhos;
certas cores: como se desfazem, como aderem;
certos objetos, diferentes a uma luz nova.
Que ainda sinta cheiro de fruta,
de terra na chuva, que pegue,
que imagine e grave, que lembre.
O tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de aprender como vivem, de ajudá-las.
De ver passar este conto: o vento
balançando a folha; a sombra
da árvore, parada um instante
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.
E de olhar esta folha, se cai.
Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.
Tem na certa um cheiro, particular entre mil.
Um desenho, que se produzirá ao infinito,
e cada folha é uma diferente.
E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o silêncio global, mas não seja logo.
Antes dele outros silêncios penetrem,
outras solidões derrubem ou acalentem
meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um
torso de mil anos, recebe minha visita, prolonga
para trás meu sopro, igual a mim
na calma, não importa o mármore, completa-me.
O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz
da vida ficou mais forte, e os naufrágios
não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas;
que os objetos continuam, e a trepidação incessante
não desfigurou o rosto dos homens;
que somos todos irmãos, insisto.
Em minha falta de recursos para dominar o fim,
entretanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,
tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem,
tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.
E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar
partida menos imediata. Ah, podeis rir também,
não da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,
de outros virem depois, de todos sermos irmãos,
no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.
O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.
A doença não me intimide, que ela não possa
chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.
Uma parte de mim sofre, outra pede amor,
outra viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou todas as comunicações, como posso ser triste?
A tristeza não me liquide, mas venha também
na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,
que lute lealmente com sua presa,
e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esquecimento, amor,
ao fim da batalha perdida.
Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.
E todo o mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo.
E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas antes com voz firme, os pensamentos
maduramente pensados, os atos
que atrás de si deixaram situações.
Que o riso sem boca não a aterrorize
e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
dedos torcidos, lívido
suor de remorso.
E a matéria se veja acabar: adeus composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, idéia de justiça, revolta e sono, adeus,
adeus, vida aos outros legada.

(Carlos Drummond de Andrade, em Nova Reunião – 23 Livros de Poesia, Edições BestBolso.)
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À MORTE DE LAURA - 1

Rota é a alta coluna e o verde louro
Que davam sombra ao lasso pensamento.
Perdeu-se aquilo que eu embalde intento
Buscar desde o Mar Índico ao Mar Mouro.

Morte levou o meu duplo tesouro
A causa deste meu contentamento
E consolar não pode o meu tormento
Nem gema oriental, nem terra ou ouro.

Por ser consentimento do destino,
Perde-se em mágoa a triste alma minha,
Choram meus olhos e o meu vulto inclino.

Oh, vossa vida vã, cheia de enganos!
Como numa manhã se perde asinha
O que para ganhar passaram anos!

(Petrarca, em Poemas de Amor, organização de Alexei Bueno, tradução de Jamir Almansur Haddad, Ediouro.)
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Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

(Luis de Camões, em Melhores Poemas de Luis de Camões, Global Editora.)
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A CAROLINA

Querida, ao pé do leito derradeiro
em que descansas dessa longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
que, a despeito de toda a humana lida,
fez a nossa existência apetecida
e num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores - restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

(Machado de Assis, em Livro dos Sonetos 1500-1900 (poetas portugueses e brasileiros),organização Sergio Faraco, L&PM Pocket.)
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À MORTE DE LAURA - 2

Os olhos que eu cantei ardentemente,
As mãos que eu sonho, o rosto almo que eu viso,
Que me mantém de mim mesmo diviso,
Estranho me tornando à alheia gente;

A crespa chama de ouro reluzente,
E o lampejar do angélico sorriso,
Que faziam da terra um paraíso
Não são mais do que pó que nada sente.

No entanto por viver eu me desdenho;
Despojado do lume que amei tanto,
Navego agora em desarmado lenho.

Cesse afinal meu amoroso canto!
É seca a veia de tão gasto engenho,
E a minha lita é dissolvida em pranto.

(Petrarca, em Poemas de Amor, organização de Alexei Bueno, tradução de Jamir Almansur Haddad, Ediouro.)
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IV

Oh, mãe
o que eu deixei fora
Oh, mãe
o que eu esqueci
Oh, mãe
adeus
com um comprido sapato preto
adeus
com o Partido Comunista e uma meia rasgada
adeus
com seis fios de cabelo negro no vão dos teus seios
adeus
com teu velho vestido e uma longa barba negra ao redor da vagina
adeus
com tua barriga flácida
com teu medo de Hitler
com tua boca de histórias sem graça
com teus dedos de bandolins quebrados
com teus braços de gordas varandas de Patterson
com tua barriga de greves e chaminés
com teu queixo de Trotsky e a Guerra Espanhola
com tua voz cantando pelos trabalhadores arrebentados caindo aos pedaços
com teu nariz de trepada mal dada
com teu nariz de cheiro de picles de Newark
com teus olhos
com teus olhos de Rússia
com teus olhos sem dinheiro
com teus olhos de falsa China
com teus olhos de tia Elanor
com teus olhos de Índia faminta
com teus olhos mijando no parque
com teus olhos de América em plena queda
com teus olhos de fracasso ao piano
com teus olhos dos parentes na Califórnia
com teus olhos de Ma Rainey morrendo numa ambulância
com teus olhos de Checoslováquia atacada por robôs
com teus olhos indo para a aula de pintura à noite em Bronx
com teus olhos de Vovó assassina no horizonte da Escada de Emergência
com teus olhos fugindo nua do apartamento gritando nua pelo corredor
com teus olhos sendo levada embora por policiais numa ambulância
com teus olhos amarrada na mesa de operação
com teus olhos de pâncreas extraído
com teus olhos de operação de apêndice
com teus olhos de aborto
com teus olhos de ovários arrancados
com teus olhos de eletrochoque
com teus olhos de lobotomia
com teus olhos de divórcio
com teus olhos de ataque
com teus olhos, só
com teus olhos
com teus olhos
com tua Morte cheia de Flores

(Allen Ginsberg, em UIVO – Kaddish e outros poemas, prefácio, seleção, tradução e notas de Cláudio Willer, L&PM Editores.)
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Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.
(Murilo Mendes, em Melhores Poemas de Murilo Mendes, Global Editora.)
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À MINHA MÃE

E quando enfim se apagou, meteram-na em terra;
Crescem flores, borboletas bailam-lhe por cima...
Ela, tão leve, mal calcava a Terra.
Quanta dor foi precisa, até se fazer tão leve!

(Bertold Brecht em Poemas e Canções, seleção e versão portuguesa de Paulo Quintela, Livraria Almedina, Coimbra, Portugal.)
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MORTE DE ANTONINHO, O CAMBÓRIO

Vozes de morte soaram
perto do Guadalquivir.
Vozes antigas que procuram
voz de cravo varonil.
Cravou-lhes sobre as botas
mordidas de javali.
Na luta dava saltos
ensaboados de delfim.
Banhou com sangue inimigo
sua gravata carmesim,
mas eram quatro punhais
e teve que sucumbir.
Quando as estrelas cravam
rojões na água gris,
quando os novilhos sonham
verônicas de aleli,
vozes de morte soaram
perto do Guadalquivir.

Antonio Torres Heredia,
Cambório de dura crina,
moreno de verde lua,
voz de cravo varonil:
Quem te tirou a vida
perto do Guadalquivir?
Meus quatro primos Herédias
filhos de Benameji.
O que em outros não invejavam,
era invejado em mim.
Sapatos cor de passa,
medalhões de marfim,
e esta cútis mesclada
com azeitona e jasmim.
Ai, Antoninho, o Cambório,
digno de uma Imperatriz!
Lembra-te da Virgem
porque vais morrer.
Ai, Federico García,
chama a Guarda Civil!
Já meu talhe se quebrou
como haste de milho.

Três golpes sangrentos teve
e morreu de perfil.
Viva moeda que nunca
tornará a repetir-se.
Um anjo garboso põe-lhe
a cabeça num coxim.
Outros de rubor cansado
acenderam um candil.
E quando os quatro primos
chegam a Benameji,
vozes de morte cessaram
perto do Guadalquivir.
(Frederico Garcia Lorca em Romanceiro Gitano e Outros Poemas, tradução de William Agel de Melo, Martins Fontes.)
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A MORTE DE MADRUGADA

Muerto cayó Federico.
Antonio Machado

Uma certa madrugada
Eu por um caminho andava
Não sei bem se estava bêbado
Ou se tinha a morte n'alma
Não sei também se o caminho
Me perdia ou encaminhava
Só sei que a sede queimava-me
A boca desidratada.
Era uma terra estrangeira
Que me recordava algo
Com sua argila cor de sangue
E seu ar desesperado.
Lembro que havia uma estrela
Morrendo no céu vazio
De uma outra coisa me lembro:
... Un horizonte de perros
Ladra muy lejos del río...
De repente reconheço:
Eram campos de Granada!
Estava em terras de Espanha
Em sua terra ensangüentada
Por que estranha providência
Não sei... não sabia nada...
Só sei da nuvem de pó
Caminhando sobre a estrada
E um duro passo de marcha
Que em meu sentido avançava.
Como uma mancha de sangue
Abria-se a madrugada
Enquanto a estrela morria
Numa tremura de lágrima
Sobre as colinas vermelhas
Os galhos também choravam
Aumentando a fria angústia
Que de mim transverberava.
Era um grupo de soldados
Que pela estrada marchava
Trazendo fuzis ao ombro
E impiedade na cara
Entre eles andava um moço
De face morena e cálida
Cabelos soltos ao vento
Camisa desabotoada.
Diante de um velho muro
O tenente gritou: Alto!
E à frente conduz o moço
De fisionomia pálida.
Sem ser visto me aproximo
Daquela cena macabra
Ao tempo em que o pelotão
Se dispunha horizontal.
Súbito um raio de sol
Ao moço ilumina a face
E eu à boca levo as mãos
Para evitar que gritasse.
Era ele, era Federico
O poeta meu muito amado
A um muro de pedra seca
Colado, como um fantasma.
Chamei-o: Garcia Lorca!
Mas já não ouvia nada
O horror da morte imatura
Sobre a expressão estampada...
Mas que me via, me via
Porque em seus olhos havia
Uma luz mal-disfarçada.
Com o peito de dor rompido
Me quedei, paralisado
Enquanto os soldados miram
A cabeça delicada.
Assim vi a Federico
Entre dois canos de arma
A fitar-me estranhamente
Como querendo falar-me.
Hoje sei que teve medo
Diante do inesperado
E foi maior seu martírio
Do que a tortura da carne.
Hoje sei que teve medo
Mas sei que não foi covarde
Pela curiosa maneira
Com que de longe me olhava
Como quem me diz: a morte
É sempre desagradável
Mas antes morrer ciente
Do que viver enganado.
Atiraram-lhe na cara
Os vendilhões de sua pátria
Nos seus olhos andaluzes
Em sua boca de palavras.
Muerto cayó Federico
Sobre a terra de Granada
La tierra del inocente
No la tierra del culpable.
Nos olhos que tinha abertos
Numa infinita mirada
Em meio a flores de sangue
A expressão se conservava
Como a segredar-me: - A morte
É simples, de madrugada...
(Vinícius de Morais, em Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguilar.)
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A CAPTURA E A MORTE

Às cinco horas da tarde.
Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o branco lençol
às cinco horas da tarde.
Uma esporta de cal já prevenida
às cinco horas da tarde.
O mais era morte e somente morte
às cinco horas da tarde.

O vento levou os algodões
às cinco horas da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
às cinco horas da tarde.
Já lutam a pomba e o leopardo
às cinco horas da tarde.
E uma coxa para um chifre destroçada
às cinco horas da tarde.
Começaram os sons do bordão
às cinco horas da tarde.
Os sinos de arsênico e a fumaça
às cinco horas da tarde.
Nas esquinas grupos de silêncio
às cinco horas da tarde.
E o touro todo coração, para a frente!
às cinco horas da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
às cinco horas da tarde,
quando a praça se cobriu de iodo
às cinco horas da tarde,
a morte botou ovos na ferida
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Às cinco em ponto da tarde.

Um ataúde com rodas é a cama
às cinco horas da tarde.
Ossos e flautas soam-lhe ao ouvido
às cinco horas da tarde.
Por sua frente já mugia o touro
às cinco horas da tarde.
O quarto se irisava de agonia
às cinco horas da tarde.
De longe já se aproxima a gangrena
às cinco horas da tarde.
Trompa de lírios pelas verdes virilhas
às cinco horas da tarde.
As feridas queimavam como sóis
às cinco horas da tarde,
e as pessoas quebravam as janelas
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Ai que terríveis cinco horas da tarde!
Eram cinco horas em todos os relógios!
Eram cinco horas da tarde em sombra!
(Frederico Garcia Lorca, de Pranto por Ignacio Sánchez Mejías (1935), em Romanceiro Gitano e Outros Poemas, tradução de William Agel de Melo, Martins Fontes.)
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Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, neste vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

(tradução de Augusto de Campos)

O poeta russo Sierguei Iessiênin escreveu estes versos com seu próprio sangue nas paredes de um quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado, onde se matou em 28 de dezembro de 1925. Em 1926, O poeta Maiacovski escreve o poema “A Sierguei Iessiênin”. No trecho final ele diz:

Nesta vida
morrer não é difícil
O difícil
é a vida e seu ofício.

(tradução de Haroldo de Campos)

Em 1930 Maiacovski se suicida com um tiro.
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EPITÁFIO PARA M

Escapei aos tubarões
Abati os tigres
Fui devorado
Pelos percevejos.
(Bertold Brecht em Poemas e Canções, seleção e versão portuguesa de Paulo Quintela, Livraria Almedina, Coimbra, Portugal.)
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Aqui jaz Pedro Rocha
Como uma ejaculação precoce
Entregou-se tanto como se pudesse
Faltou-lhe resistência e polígrafo
Cedeu cedo, pelo que não ia
A vida não foi de colher
Esquece camarada
Já sou xaxim
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Esquece camarada
Que essa etapa agora encerra
Posto que agora eu sou mais parte terra
Me acaricia com a enxada
Esquece camarada
E guarda toda a sua mágoa
Tu, que ainda és mais parte água
E siga tua estrada
(Resposta a Pedro Rocha, de autor olvidado, etéreo, indeterminado)
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AQUI JAZ AMORA PÊRA
QUE CEDO AMADURECEU.
NÃO FOI AO CHÃO ,MAS COLHIDA
E SEMPRE MUITO BEM COMIDA
NEM NA MORTE APODRECEU
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Aqui jazz, MPB, tango, vinho e alegria
e também, contrariada, uma tal Claudia Maria
que clama por justiça e pela tecnologia!
Afinal, que faço aqui, nessa casa escura e fria,
quando meu corpo mais bem honrado seria
se transformado em papel, e impresso com poesia?
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Literário antropófago, mordaz,
adversário da cultura de massa
poesiprosa, obra sua foi capaz
de vingar? Ou deu de comer à traça?
Farra? Não! Ele zarpou tempos atrás
para a terra dos pés-juntos – desgraça!
Sangue de bugre e ibero, mestiços laços:
Ora pois, aqui jaz Mateus, o Passos
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Aqui jaz Geraldo Carneiro
que quis ganhar o mundo inteiro,
mas só ganhou metade.
O resto?
Vai esperar pela eternidade.
+ + +

Aqui jaz Tavinho Paes
cujas cinzas crocantes
servidas aos vermes
como beluga caviar
agora sim,
se tornaram interessantes.
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Aqui jaz Tanussi Cardoso
Que da vida só queria
comer carne e roer o osso.
Agora, sem sol nem esteira,
vive lambendo na beira
pó de cimento barato.
Ai, que saudades – quimeras –
da sola dos meus sapatos!
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Epitáfio de Bruno Tavares

Aqui neste sítio arborizado,
na encosta desta colina
foi enterrado um cabra.
Não se sabe como assina,
seus ossos são finos e longos
servem prá tocar tambor.
A cabeleira comprida
trançada com mão de artista
pode ter serventia
prá amarrar um novo amor.
Não tenha medo amigo
dessa carcaça enterrada.
Em vida, faz festa e te alegra
que a morte é prá todos, mas tarda.
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Velho, mesmo lerdo bardo, F. Flamante,
presto, educado, atendeu num instante
ao toque de recolher.
Mas sua chamada foi feita em má hora,
E em P.S. se registre isso agora:
Ela foi frustrante, causou um tormento.
Inesperada, se deu no justo momento
em que aprendia a viver.
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Descansa nutriente em sua terrinha
Silas Corrêa Leite, o Poetinha.
Depois de um viver inquieto,
depois de escrever brincando,
aqui descansa em paz e feliz
Nasceu analfabeto,
viveu estudando e
morreu aprendiz.
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Aqui jaz Jiddu Saldanha
que se decompõe por inteiro
as vísceras, as entranhas
liberando todos os cheiros.
Este poeta medíocre
agora tem sua serventia:
alimenta a microfauna
com sua carne fria!
+ + +

Aqui jaz Guilherme Zarvos, o Zarvoleta
Desde pequeno, como tantos, quis demais.
O tempo me deu + que uma Romiseta,
Meu mundo vai finalizando com ++ alegria que dor.
Quis ser até presidente, hoje me contento
com o futuro cair dos dentes.
Escrever e ter amigos foi meu destino,
deixo de herança a enorme esperança
e a intensa covardia.
+ + +

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: – Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: – Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: – Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: – Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: – Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?

Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
(Vinícius de Morais em Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguilar.)
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CRUZ NA PORTA

Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.

(Álvaro de Campos, em Poesia Completa de Álvaro de Campos (edição de bolso), Companhia das Letras.)
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MOMENTO NUM CAFÉ

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta

(Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.)
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POETA DE MORTE

[para líria porto]

matei-me
aos poucos
:
atirei rimas
a esmo
bebi do cale-se
do verso
saltei do décimo
andar do ritmo

- sem sucesso -

entre um cigarro
e um porre
a chance
que deu certo
:
ateei poemas
no corpo

(Valéria Tarelho)
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CONFISSÃO

esperando pela morte
como um gato
que vai pular
na cama

sinto muita pena de
minha mulher

ela vai ver este
corpo
rijo e
branco

vai sacudi-lo e
talvez
sacudi-lo de novo:

“henry!”
e henry não vai
responder.

não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.

no entanto
eu quero que ela
saiba
que dormir
todas as noites
a seu lado

e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas

e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora
ser ditas:

eu te
amo.

(Charles Bucowski em Os 25 Melhores Poemas de Charles Bucowski, tradução de Jorge Wanderley, Bertrand Brasil.)
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DESDE O PRINCÍPIO
SINTO-ME AFLITO
DIA APÓS DIA APÓS DIA APÓS DIA
À BEIRA DO ABISMO
VIVO POR UM FIO
TEMPORÁRIO NO AR
RESPIRO E CISMO:
DEPOIS DO FIM,
ALÉM DE MIM,
O QUE SERÁ?

PERMANECE A DÚVIDA
QUESTÃO PRINCIPAL
PRECIPÍCIO INFINITO E FUNDAMENTAL
ONDE
QUANDO
POR QUÊ
SERÁ PRECISO
O PONTO FINAL ?
(Ronaldo Santos)
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cigarras zoando
a casca não explode
cantando até a morte

(Paco Cac)
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FARMÁCIA AQUÁRIO

Raras vezes me importam a velhice
e suas despedidas:

Cabelos negros se vão,
dentes,
o que não somos também.

Alguns sonhos escorrem
pela boca,
Nossas mãos só sustentam
nossas mãos
e o reino das subtrações:

Sono de menos,
amigos,
a pele que enrijece seu frescor usual.

Tudo faz parte daquele
longo túnel,
que nos avisa aos poucos
da solidão
final.

(Susana Vargas em Caderno de Outono e Outros Poemas, EDUNISC – Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul.)
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SONETO JÁ ANTIGO

Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás de
dizer aos meus amigos aí de Londres,
embora não o sintas, que tu escondes
a grande dor da minha morte. Irás de

Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
que eu nada que tu digas acredito),
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes,

Embora não o saibas, que morri...
mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará... Depois vai dar

a notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!

(Álvaro de Campos, em Poesia Completa de Álvaro de Campos (edição de bolso), Companhia das Letras.)
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MOINHO

A mó da morte mói
o milho teu dourado
e deixa no farelo
um ai deteriorado.

Mói a mó, mói a morte
em seu moer parado
o que era trigo eterno
e nem sequer semeado.

Da morte a mó que mói
não mói todo o legado.
Fica, moendo a mó,
o vento do passado.

(Carlos Drummond de Andrade em As Impurezas do Branco, José Olympio, 1973.)
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O bastão, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a murcha
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O vermelho espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso esquecimento;
Não saberão jamais que nos fomos.
(Jorge Luis Borges, em Nova Antologia Pessoal, tradução de Maria Julieta Graña e Marly de Oliveira, Editora Sabiá।)
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Meu ser evaporei na lida insana
do tropel de paixões, que me arrastava;
ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
em mim quase imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
existência falaz me não dourava!
Mais eis sucumbe a natureza escrava
ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos,
esta alma, que sedenta em si não coube,
no abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus! oh Deus! quando a morte a luz me roube,
ganhe um momento o que perderam anos.
Saiba morrer o que viver não soube.
(Manuel Maria Du Bocage, em Livro dos Sonetos 1500-1900 (poetas portugueses e brasileiros),organização Sergio Faraco, L&PM Pocket।)
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E A MORTE PERDERÁ O SEU DOMÍNIO

E a morte perderá o seu domínio.
Nus os homens mortos irão confundir-se
com o homem no vento e na lua do poente;
quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos
hão-de nos seus braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir;
mesmo que os amantes se percam, continuará o amor;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Não hão-de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
nem as vagas romper tumultuosamente nas praias;
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma flor
erguer a sua corola em direção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, hão-de descer
como pregos as suas cabeças pelas margaridas;
é no sol que irrompem até que o sol se extinga,
e a morte perderá o seu domínio.

(Dylan Thomas, tradução de Fernando Guimarães, em http://www.culturapara.art.br/opoema/dylanthomas/dylanthomas.htm)
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MORTE DE CLARICE LISPECTOR

Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós

(Ferreira Gullar em Toda Poesia, José Olympio Editora.)
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final

Um homem morreu e estão juntando seu sangue
em colherinhas,
querido juan, morreste finalmente.
De nada serviram teus pedaços
molhados em ternura.

Como foi possível
que tu fosses embora por um furinho
e ninguém tenha posto o dedo
para que ficasses?

Deve ter comido toda a raiva do mundo
antes de morrer
e depois ficava triste triste
apoiado em seus ossos.

Já te baixaram, maninho,
a terra está tremendo de ti.
Velemos para ver onde brotam tuas mãos
empurradas por tua raiva imortal.

(Juan Gelman, em Amor que serena, termina?, tradução e seleção de Eric Nepomuceno, Editora Record - edição bilíngue.)
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29.

Meu Deus,
quem terá guardado
as miudezas da velha?

Quem terá se apoderado
do pouco que era dela?

Quem guardou a camisola
de bolinhas azuladas?

Suas agulhas de linhas,
onde estarão espetadas?

Seu dedal, suas rendinhas,
seus panos para remendo?

Onde estarão seus santinhos
e a Bíblia que andava lendo?

E a coleção de caixinhas
umas cheias e outras vazias?

Agora que a velha é noite
quem vai repassar seus dias?

(Luís Pimentel em As Miudezas da Velha, Editora Myrrha.)
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O MAPA

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...
(Mário Quintana em Poesia Completa, Editora Nova Aguilar।)
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Quando eu morrer quero ficar

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
(Mário de Andrade em Poesias Completas, Editora Itatiaia।)
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se a morte
é o mote
mato o cobra
e mostro
o pau [lo]

psicografo
um po[l]ema
meio polaco
meio afro

obra póstuma
que late e morde
como o próprio
cachorro louco

[por quem morro]

(Valéria Tarelho)
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lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça
(Paulo Leminski em Caprichos e Relaxos, Editora Brasiliense।)
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para a liberdade e luta

me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu

me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão
(Paulo Leminski em Caprichos e Relaxos, Editora Brasiliense।)
+ + +

VISITA

no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo

Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando
(Ferreira Gullar, em Muitas vozes: poemas, José Olympio Editora।)
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2.334

SONETO SUICIDA

O Stephan foi desgosto pela guerra.
Também Santos Dumont foi desalento.
O de Torquato e Péricles lamento,
Mas o de Allende ou Hitler nada encerra.

Razões de Ana Cristina estão na terra.
Jim Jones e outros loucos nem comento.
Mishima foi solene em seu intento.
No de Getúlio o povo é quem se ferra.

Difícil é saber quando é covarde
Ou quando é da coragem o disfarce.
É cedo? É tempestivo? É sempre tarde?

Talvez a eternidade na catarse.
Talvez o fatalismo que me aguarde.
Ninguém derrota a morte sem matar-se.

(Glauco Mattoso em Panacéia, Sonetos Colaterais, Nankin Editorial.)
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EPITÁFIO

Eu sou redondo, redondo
Redondo, redondo eu sei
Eu sou uma redond'ilha
Das mulheres que beijei

Por falecer do oh! amor
Das mulheres de minh'ilha
Minha caveira rirá ah! ah! ah!
Pensando na redondilha

(Oswald de Andrade em Poesias Reunidas, Editora Civilização Brasileira.)
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À MORTE

Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce lago
E, como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei,
má fada me encantou e aqui fiquei
à tua espera... quebra-me o encanto
(Florbela Espanca, em Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, Lisboa।)
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PREPARAÇÃO PARA A MORTE

A vida é um milagre.
Cada flor,
com sua forma, sua cor, seu aroma,
cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
o espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
o tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

(Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.)
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PLEASE MISTER POSTMAN


©Cesar Cardoso, 2011.
cesarcar@uninet.com.br

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Aqui jaz
PATAVINA’S
revista literária on line e quase mensal

Não perca: em 15 de março,
a segunda edição de
“A Indesejada das Gentes”
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