CRUZ NA PORTA
Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.
Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.
Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.
Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.
Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.
(Álvaro de Campos, em Poesia Completa de Álvaro de Campos (edição de bolso), Companhia das Letras.)
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MOMENTO NUM CAFÉ
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta
(Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.)
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POETA DE MORTE
[para líria porto]
matei-me
aos poucos
:
atirei rimas
a esmo
bebi do cale-se
do verso
saltei do décimo
andar do ritmo
- sem sucesso -
entre um cigarro
e um porre
a chance
que deu certo
:
ateei poemas
no corpo
(Valéria Tarelho)
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CONFISSÃO
esperando pela morte
como um gato
que vai pular
na cama
sinto muita pena de
minha mulher
ela vai ver este
corpo
rijo e
branco
vai sacudi-lo e
talvez
sacudi-lo de novo:
“henry!”
e henry não vai
responder.
não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.
no entanto
eu quero que ela
saiba
que dormir
todas as noites
a seu lado
e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora
ser ditas:
eu te
amo.
(Charles Bucowski em Os 25 Melhores Poemas de Charles Bucowski, tradução de Jorge Wanderley, Bertrand Brasil.)
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DESDE O PRINCÍPIO
SINTO-ME AFLITO
DIA APÓS DIA APÓS DIA APÓS DIA
À BEIRA DO ABISMO
VIVO POR UM FIO
TEMPORÁRIO NO AR
RESPIRO E CISMO:
DEPOIS DO FIM,
ALÉM DE MIM,
O QUE SERÁ?
PERMANECE A DÚVIDA
QUESTÃO PRINCIPAL
PRECIPÍCIO INFINITO E FUNDAMENTAL
ONDE
QUANDO
POR QUÊ
SERÁ PRECISO
O PONTO FINAL ?
(Ronaldo Santos)
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cigarras zoando
a casca não explode
cantando até a morte
(Paco Cac)
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FARMÁCIA AQUÁRIO
Raras vezes me importam a velhice
e suas despedidas:
Cabelos negros se vão,
dentes,
o que não somos também.
Alguns sonhos escorrem
pela boca,
Nossas mãos só sustentam
nossas mãos
e o reino das subtrações:
Sono de menos,
amigos,
a pele que enrijece seu frescor usual.
Tudo faz parte daquele
longo túnel,
que nos avisa aos poucos
da solidão
final.
(Susana Vargas em Caderno de Outono e Outros Poemas, EDUNISC – Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul.)
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SONETO JÁ ANTIGO
Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás de
dizer aos meus amigos aí de Londres,
embora não o sintas, que tu escondes
a grande dor da minha morte. Irás de
Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
que eu nada que tu digas acredito),
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes,
Embora não o saibas, que morri...
mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará... Depois vai dar
a notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!
(Álvaro de Campos, em Poesia Completa de Álvaro de Campos (edição de bolso), Companhia das Letras.)
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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011
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