quinta-feira, 23 de julho de 2009

CAIU NA REDE É PIXEL


CANTA PRA MIM, 33!

Adriana de Paula, Vó Didi, viveu um século. No fim dos anos 20, foi telefonista. Na Companhia era conhecida por seu número, 33, e as pessoas ligavam para lá e pediam que ela cantasse pelo telefone. Foi uma das épocas mais felizes de sua vida, dizia Didi, que continuou sendo feliz e cantando vida afora. Morreu em 23 de julho de 2007, um mês antes de completar cem anos. Sempre o tempo, essa soma e luta entre vontade e acaso. Ou isso é o destino? Não importa. Resta essa falta indefinida a que chamamos saudade.

CHIPS – o prazer da batata & o poder do circuito –



FAMÍLIA DE PELÚCIA


Flanfar era um pequeno urso de pelúcia todo verde com olhos e nariz azuis. E era isso o que ele mais odiava. Seu irmão mais novo, Flanfis, era todo azul e tinha olhos e nariz verdes. Ele era da cor que Flanfar queria ser, tinha os olhos e o nariz da cor que Flanfar queria ter. Talvez por isso Flanfar fumasse sem parar. E talvez por isso também apagasse todos os seus cigarros na pelúcia azul e macia do irmão. Flanfis não reagia e tentava encontrar algum motivo que justificasse a atitude de Flanfar, mas de noite na cama chorava ininterruptamente. Chorava baixinho para que ninguém notasse ou para ver se ele mesmo não notava. Mas Flanfar, que dormia na mesma cama do irmão, sentia o balançar dos soluços de Flanfis e puxava os olhos e o nariz azuis de Flanfis até que ele quase desmaiasse de dor.

Depois disso, Flanfar caía num sono profundo enquanto dezenas de pensamentos cruzavam o cérebro de pelúcia azul de Flanfis e ele não conseguia dormir. Então sentava na cama, de costas para o irmão, olhava em torno do armário onde viviam e via as prateleiras com outros bichos de pelúcia, com carrinhos de corda, soldadinhos de chumbo, bailarinas de crepom, bolas de gude, pipas de papel colorido, dados e caixas de jogos. E seus olhos sempre terminavam pousados no mesmo lugar. A pequena cama de Flanmia, sua irmã caçula. Flanfis gostava de Flanmia, que tinha a pelúcia de uma cor que ele não conhecia e que possuía um olho amarelo e outro vermelho e que não possuía nariz. Flanfis achava curioso ela ter um olho de cada cor. E achava gozado a irmã tão miúda e sem nariz. Talvez por isso nas noites insones não conseguisse desgrudar os olhos de sua pequena cama, descesse da prateleira onde estava, atravessasse o armário onde viviam, subisse na cama de Flanmia, abraçasse a irmã caçula, chamasse baixinho pelo seu nome, acariciasse as pálpebras que cobriam aqueles olhos amarelos e vermelhos, apertasse contra seu próprio corpo aquela pelúcia de cor indefinida, abrisse lentamente aquelas pernas quentinhas, tampasse a pequena boca de dentes macios e a possuísse até sonhar que gozava numa terceira cor que ele não conhecia e resultava da mistura do amarelo com o vermelho.

AVISO AOS NAUFRAGANTES

PÉROLAS RUBINATAS

Adoniran Barbosa, que se chamava João Rubinato e não existe mais, cantou a sua São Paulo, que ficava em São Paulo e também não existe mais. Foi assim que os dois ficaram pra sempre.

“Minha mudança é tão pequena / que cabe no bolso de trás.”

“Amanhã vou trabalhar se Deus quiser. / (Mas Deus não quer.)”

“Hoje eu vivo no abandono / um vira-lata sem dono / e pra me judiar, Pafunça, / nem meu nome tu pronunça.”

“Doutor, eu vou lhe ser franco, / por essa nega eu já vi muito branco / subir parede lisa de tamanco.”

“Essa mulher sabe que por ela / sou capaz de tudo, / sou capaz até / de atravessar a rua dos Gusmões / lendo Ali Babá e os Quarenta Ladrões...”

“E no chão / bem perto do fogão / encontrei um papel escrito assim: / pode apagar o fogo, Mané, / que eu não volto mais.”

“Minha maloca / a mais linda que eu já vi / hoje está legalizada / ninguém pode demolir. / Minha maloca / a mais linda desse mundo / ofereço aos vagabundos / que não têm onde dormir.”

“Eu sou a lâmpida / e as mulher é as mariposa...”

“NÚNCARAS”

1.
seria algo assim
como matar & desmatar o tocantins
com a clave dos dentes duendes tocar
o sax do céu

em vez disso essas palavras
q não saem do papel


2.
trelutas semfimensas
desloucados pulsonhos
atravessias belzebutópicas
feroceânicas rebatalhas


e eu aqui
a engasgar-me com migalhas


Dois momentos, uma conversa. O primeiro, no meu livro A Nossa Moranguíssima Paixão, de 1993. O segundo, de meu novo livro, Coisa Diacho Tralha, que, como as belas mulheres, está se arrumando para sair e vai demorar um pouquinho.

IMPRESSÕES DIGITAIS

PORQUE ESCREVO

“Se fosse sólido eu comia. Se fosse líquido eu bebia. Escrevo porque é gasoso.”

Alice Barreira


“Para minha mãe, que se chama Durvalice, no meu caso não há mistério algum. Fiquei sabendo disso durante uma palestra para estudantes numa cidade baiana chamada Alagoinhas, onde fiz o ginásio. Ela vive lá, e estava na platéia. De repente se levantou e disse:

- Eu sempre soube que você ia ser escritor. Descobri isso quando você tinha dois anos de idade.

Perguntei-lhe o que a levara a ter tal certeza, tão prematuramente.

- Eu me lembro, ela respondeu-me. – Eu me lembro muito bem de quando você tinha dois anos e pegou um livro pela primeira vez. Você abriu o livro e ficou um tempão olhando a página. Parecia encantado com as palavras impressas. Fiquei observando, de longe, achando que você ia rasgar aquele livro. Mas não fez isso. Naquele momento eu percebi tudo: se você não rasgava o livro era porque estava lendo ele. Foi nesse dia que eu descobri que você ia ser escritor.

- Mas como isto pode ter acontecido, mamãe? Até onde me lembro, lá em casa não tinha livros. Só passou a ter depois que eu e minhas irmãs fomos para a escola, não foi?

Ela não se deu por vencida:

- E os da igreja, menino? Tinha os livros da igreja!

A platéia a aplaudiu, de pé. Minha mãe roubou a cena.

Se essa história é uma ficção dela, tive bem a quem puxar.”

Antônio Torres, autor de Essa Terra e tantas outras histórias, em depoimento da série “O Escritor por ele mesmo”, do Instituto Moreira Salles.

E você, por que escreve? Escreva para o Patavina’s e conte. Invente, minta. Na literatura, mentir é a melhor verdade. (e mail: cesarcar@uninet.com.br)

PATAVINA’S NEWS

O Patavina’s News se dá ao luxo de ter um correspondente internacional. Diretamente de seu quarto e sala na Rue de Feaubourg, meu amigo Jean Prévert, filho do famoso poeta Jacques Prévert e meu ex-aluno de língua portuguesa no inverno parisiense, manda notícias do planeta para este blog. Obrigado, Jean. A casa é virtual mas é sua.

O UNIVERSO É LOGO ALI
Jean Prévert- correspondente internacional

Chicago. As funerárias dessa cidade enfumaçada e falida, com as indústrias fechando as portas com a crise, descobriram um novo filão para seus negócios. Já há algum tempo elas filmam os enterros que “promovem” e vendem o filme para as famílias. E a coisa funcionou tão bem que praticamente todas têm seu cineasta de plantão. Mas agora elas deram um passo adiante. Para quem acredita na vida após a morte, os papa-defuntos oferecem um caixão com tevê. Isso mesmo: uma mini–tevê, como a que podemos ter em nossos automóveis e transmitindo mais de 100 canais. Basta o morto – ainda em vida, é claro – deixar em seu testamento a programação que gostaria de assistir e a funerária se encarrega de colocá-la no ar, pelo tempo contratado, atendendo a esse estranho e último pedido.

Ondurman. A mais populosa cidade do Sudão foi sacudida por três atentados em apenas uma semana. Atentados sem explosões nem vítimas em massa, como os deste mês nos hotéis da Indonésia. Mas de qualquer forma as ações terroristas caíram como bombas nessa terra já tão devastada por guerras civis. Num país onde anualmente se pratica a extirpação de clitóris em centenas de mulheres, um grupo terrorista auto-denominado Dente por Dente levou a frase bíblica às últimas consequências, sequestrou três autoridades locais, todas do sexo masculino, e procedeu à devida extirpação dos testículos de seus prisioneiros. O grupo promete seguir aplicando em autoridades masculinas sua política de, digamos, olho por olho, para não entrarmos em detalhes técnicos, enquanto existir no país a extirpação dos clitóris.

- LHUFAS - coisa com coisa nenhuma –

Essa é a minha crônica do mês na revista Caros Amigos, que já está nas bancas à sua espera. Vai logo lá, seu preguiçoso!

TEMPORARIAMENTES


Eu sabia porque se chama carioca da gema quem nasce no Rio, sabia a escalação de Fluminense e Bangu na final de 64, sabia o que quer dizer blue moon. Mas pela manhã ao acordar fui acertar o relógio, os ponteiros me acertaram primeiro e esqueci tudo isso. Do que ainda lembro? Da emoção do primeiro caderno encapado com papel de seda azul. Ah, sim! Me lembro que o homem aprendeu a voar com Santos Dumont e a mulher com Fred Astaire. Ou terá sido ao contrário? O muro de Berlim, o império romano, as torres gêmeas, Teresinha de Jesus. Quem desses reconheceu a queda e não desanimou? Quem levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima? Que praga destruiu a primavera de Praga?

Tudo tão difícil. A memória vem do latim, sim, mas vai para onde? Quantas vezes por dia é preciso morrer pra continuar vivo? Quantas memórias precisamos perder? Em que tempo?

Um ano, por exemplo. O intervalo de tempo correspondente a uma revolução da terra em torno do sol. Ou bissexto ou letivo ou lunar. Talvez o tempo de gestação das girafas, de se fechar balancetes, de se parir e embalar Mateus.

Mas em alguma dobra da memória, que é o nosso tempo, existe um certo ano-luz sem nenhuma ciência que lhe dê conta. Uma revolução - não da terra – marítima, com seu ritmo que nenhum piano alcança, incabível - e como dança! E lá talvez esteja tudo que precisamos de preciso e impreciso: ligar o rádio, buscar a sintonia, o que vai ficando nos álbuns do olhar, tatuagens que não se vê, lã de vidro na ampulheta sem tampo nem fundo, escorre nos corpos - tão macia...

Quanto tempo terá levado até que o primeiro homem fizesse o primeiro armário e deixasse aberta a primeira gaveta à esquerda onde se encontra - quem sabe? - um bilhete esquecido dizendo bom dia?

Ventar e inventar folhinhas, memórias. O calendário vai pras calendas. Os relógios partem e se partem. Estamos com a corda toda, despertamos a madrugada e anunciamos aos galos: o ano domini!

E o tempo segue nos dominando.

Cesar Cardoso perde tempo escrevendo.

CESAR NA REDE

Calma. É “Cesar na Rede” mas eu não estou de férias na Bahia, não. Estou só dizendo onde você pode encontrar textos meus na internet.


Caderno de exercícios literários do aluno Cesar Cardoso

Assinale as alternativas corretas.

1 - Minha terra tem...

A) Esse coqueiro que dá coco;
B) Um rio que passou em minha vida;
C) Margens plácidas;
D) Um rancho fundo bem pra lá do fim do mundo.

2 - ... onde canta...

A) O tico-tico no fubá;
B) O assum preto;
C) O carcará;
D) El nombre del hombre muerto.

3 - As aves daqui não... como as de lá.

A) Crocitam;
B) Palram;
C) Grasnam;
D) Cricrilam.

4 - Identifique o sabiá.

A) Ave fringilídea (Zonotrichia capensis), de coloração parda e pintada de preto no dorso alto;
B) Ave catartidiforme (S. bouvreil pileata) de cabeça pelada, que se alimenta de carnes em decomposição;
C) Ave tiranídea (Pitangus sulphuratus), de coloração pardo-olivácea;
D) Ave caradriídea (Chilensis cayennensis) de coloração cinzento-clara, com ornatos pretos na cabeça, peito, asa e cauda.

Este poema é um de meus textos sobre a famosa Canção do Exílio e está no caderno especial sobre o tema, Sabiás e Exílios, que Silvana Guimarães e Mariza Lourenço organizaram no site Germina – revista de literatura e arte. Vale a pena conferir. O endereço é www.germinaliteratura.com.br/sabiaseexilios.htm .

quarta-feira, 15 de julho de 2009

CAIU NA REDE É PIXEL

& quem diria
hein seu che?
a gente aqui
perdendo a ternura
sem sequer
endurecer...


(Foto de Cesar Cardoso, a partir da foto de Albert Korda.)

PATAVINA’S NEWS

CADERNO A...TCHIM APRESENTA:
AS NOVAS GRIPES

Acordou sem vontade sair da cama? Com uma moleza enorme no corpo? E uma sonolência incontrolável? Cuidado! Se você não é baiano nem congressista, deve estar gripado. Mas a equipe do Patavina’s News foi conversar com a doutora Minâncora Buscopan, e ela rabiscou no braço de nosso repórter as principais gripes que assolam o país e o seu nariz e garantiu que não há motivo para pânico, só para histeria.

GRIPE MICHAEL JACKSON
O contaminado vai ficando cada vez mais pálido, mais branco e começa a andar pra trás. Mas se sair por aí agarrando criancinha aí a Organização Mundial de Saúde já muda a classificação de gripe para sem-vergonhice. Depois da morte do paciente a tendência é o aumento no número de óbitos, já que a família começa a se matar na disputa da herança.

GRIPE DO CONGRESSO
Ataca senadores e deputados, que contaminam e nomeiam parentes numa velocidade espantosa. É facilmente detectável pois todos os infectados ficam com uma cara de pau impressionante.

GRIPE MI BUENOS AIRES QUERIDA
É o vírus mais letal, perigoso, violento e agressivo e já deixou de cama milhares de argentinos. Mas espera aí! Pensando bem até que esse vírus não é tão ruim assim.

CHIPS – o prazer da batata & o poder do circuito –

PEQUENO INDICIONÁRIO DE NUTILIDADES – CAPÍTULO 2

Buliminda
[Do gr. Boulimina, fome de gracejos]
S.f.
Certo jogo infantil em que participantes do sexo feminino procuram imitar aves alimentando seus filhotes, ingerindo a maior quantidade possível de alimento, até que não possam evitar o regurgitamento.

Ostentativa
[Do lat. ostentativare]
S. t. d.
1. ato ou efeito de exibir uma aventura, alardear feito por fazer.
2. Instigação feita com brilho e glória para o mal, para o pecado.
Pau-espelho
[Do latim arbore speculum]
S. f.
1. Arbusto aquático, que só sobrevive nas regiões tropicais, durante os períodos de sol intenso, quando consegue ter sua imagem permanentemente refletida nas águas doces de riachos, igarapés e pequenos lagos. Acreditam as populações ribeirinhas que ele não se reproduz por ficar admirando sem cessar sua própria e rara beleza.
2. V. Pau-de-espelho.
3. V. Árvore de Si.
4. V. Curapitã.

Quilelenga-verde
[Do berbere Kwilherlingu]
S.f.
Gênero de planta da família das quilelengáceas, de cujas raízes e cascas, amargas, se extrai uma bebida fermentada de poder alucinógeno, capaz de causar visões e sonhos em quem as consome. Porém sua força é tamanha que dificilmente as pessoas têm visões que as agradem ou sonhos que as tranquilizem. São, no mais das vezes, visões de dentes que a tudo destrincham, ondas que a tudo varrem e arrastam, ou garras que rasgam qualquer peles ou obstáculos. E os sonhos são sempre com a própria morte. Os nablas e os atleds, povos que habitavam os Montes Atlas, na província da Cirenaicca, a oeste da Líbia, a chamavam de “a planta da intriga”, mas sempre se guerreavam sob o efeito da quilelenga-verde. E assim acabaram se extinguindo mutuamente.

Sete-Fios
S.m.
Planta originária da península coreana। Durante a dinastia Chi’Eng, na Coréia do século VI, numa reunião do conselho real, o sábio Hon Xiui anunciou a descoberta de uma planta que possuía cinco fios que formavam linhas paralelas perfeitas. Ele a batizou de planta-do-infinito. Mas Tsie-Mun, sábio de uma província vizinha, não admitiu ficar aquém de seu colega e mentiu dizendo que, em sua província, havia uma planta também de fios perfeitamente paralelos, como a natureza nunca criara, mas com uma diferença: eram sete e não apenas cinco, esses fios. Na discussão que se seguiu, cada um dos sábios acusava o outro de mentiroso. O monarca então decidiu que ele e a comitiva de sábios visitariam as duas províncias e conheceriam as duas plantas. Na província de Tsie-Mun ficou provada a sua mentira. Ele foi condenado a nunca mais poder ler e teve que trabalhar como jardineiro pelo resto da vida. O que fez com tal afinco e perseverança que, já no fim da vida, conseguiu criar a planta dos sete fios paralelos, depois de anos e anos de enxertos. Mas, devido a sua história, ninguém em todo reino acreditou em suas palavras. Além da planta nova, Tsie-Mun criou para todo o mundo a expressão “sete é conta de mentiroso”.

“NÚNCARAS”

A UMA LADY

e fodia toda tarde na embaixada
a princesa que encantou a seca e meca
tanto jeitinho de moça recatada
e tanto fogo no rabo e na xereca

o príncipe bobo e ob só era sócio
na realeza e na filantropia
tudo parte do mesmo negócio
que não se comparava à putaria

mas que ninguém condene a sua rota
quem alegrou plebeus e lançou modas
fez bem em alegrar a própria xota

e que lhe sirva de epitáfio este lamento
a lady que tanto amava as boas fodas
afinal se fudeu sem estar fodendo

O poema A Uma Lady faz parte do trabalho intitulado “O Caderno de Pornographia do Alumno Cesar Cardoso”. Uma primeira parte dele pode ser vista no no site Germina – revista de literatura e arte. O endereço é http://www.germinaliteratura.com.br/

- LHUFAS - coisa com coisa nenhuma –

VAMOS LATIR


Chega de política, de ONG, de eleição. Basta de protestos, de abraçar árvores e lagoas, defender florestas e negros, pobres e baleias, ir no Fórum Social, no sindicato, na passeata... Isso tudo dá muito trabalho e nenhum resultado. A solução agora é outra.

Vamos latir!

Au-au-au! Vamos latir pro senador com imunidade, pro preso com celular, pro candidato a jesus que promete milagres, pro pm que pede documento e cervejinha em troca de porrada e tiro, pra quem telefona e vai estar vendendo qualquer coisa, pra quem nos barra, nos rouba e nos mata. Au-au-au-au-au! Vamos latir pra essa gente toda. Latir, rosnar, mostrar os dentes.

Cachorro é que é gente. Porque a gente, a gente é cachorro. Você vai nas ruas mais chiques e encontra o quê? Escola pública? Não, pet shop. Hospital público? Que nada, hotel pra cachorro. Depois de séculos de filosofia finalmente encontramos a essência humana: somos cachorros. Então, pessoal, vamos latir! Au-au-au-au-au-au-au! Quem sabe assim a gente passa a ser bem tratado. E latir é uma ótima terapia, acaba com o stress. Pergunte a qualquer psicólogo de cachorros, a qualquer Freud canino. Portanto, teu vizinho liga o som alto às três da manhã? Vá latir na porta dele. Teu chefe te transfere pra outra seção enquanto você está de férias? Rosne e morda a barra da calça dele. Querem te contratar sem carteira assinada? Levante a perna e faça xixi na porta de vidro fumê deste filho da puta!

Chega de correr atrás de diploma, de emprego, vamos correr atrás de carros e carteiros. Chega de ter raça pra enfrentar a vida. A gente não precisa de raça, a gente precisa é de pedigree. Por exemplo, um shopping. Vá um sem terra, um sem tênis, um sem cartão de crédito, ou seja: um fudido, com sua cara de fudido, sua roupa de fudido e seu DNA com milhões de ancestrais fudidos brilhando em cada célula, enfim, vá este projeto falido de cidadão entrar no shopping. Logo os seguranças o cercam e o enxotam dali. Mas entre você no shopping com seu cachorro. Todos estalarão os dedos, assobiarão e perguntarão que shampoo fez o pêlo ficar tão lustroso. Então, o que você está esperando? Pare de matar cachorro a grito, bote uma coleira e seja o seu próprio cachorro. Ou se candidate pra ser cachorro de alguém.

Pense bem. Você vai poder cagar no elevador só pra irritar o síndico, quebrar o jarro de porcelana que ficou de lembrança da mãezinha do patrão e se atracar na perna daquela gostosa que passa todo dia pela tua rua com um olhar de não te dou nem um pedacinho, seu merda! Até sua mãe finalmente te tratará como filho – o filho fiel e obediente que ela sempre quis ter. O que é que você está esperando? Vamos abanar o rabo, vamos soltar os cachorros que existem dentro de nós, vamos esquecer o SUS e ter veterinário, banho e tosa. Vamos virar irracionais e ser o melhor amigo do homem. Vamos ser animais de estimação e ter alguma auto-estima. Vai ser legal pra cachorro!

Vamos latir pra esse mundo-cão.

AVISO AOS NAUFRAGANTES

exílio, canções

não permita que deus morra
sem que volte para cá


porque me ufano de minha terra

minha terra tem clichês
para quem for versejar
minha terra tem pronomes
e advérbios de lugar
aqui brotam oxítonas
com fim em A pra rimar
também tem adjetivos
mas é melhor não usar
e eu perdido no mapa
sem saber o cá e o lá


O site Germina – revista de literatura e arte, a todo vapor, acaba de publicar o trabalho “Sabiás e Exílios”, organizado pela dupla de editoras Mariza Lourenço e Silvana Guimarães, com poemas que parodiam a “Canção” de Gonçalves Dias, possivelmente o mais famoso poema da literatura brasileira. Além de autores que vão de Casimiro de Abreu a Arnaldo Antunes, passando por Drummond, Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Bandeira, Ferreira Gullar, há ainda o poema musicado e o texto “Canções de exílio e evasão: a poética de identidade nacional”, da poeta e professora de literatura Sylvia Cintrão. Enfim, é um belo livro eletrônico, disponível no endereço http://www.germinaliteratura.com.br/. E esse locutor que vos fala modestamente comparece com três trabalhos, dois dos quais reproduzo acima.

OUTDOR – poemas visuais –

tão
gluglugluglugluglugluglu
tão

quarta-feira, 8 de julho de 2009

PATAVINA’S NEWS

NOTÍCIAS DO OUTRO MUNDO POP:
CAIXÃO DE MICHAEL JACKSON PARTE PARA TURNÊ


Após o sucesso de público que foi a morte do pop star Michael Jackson, seus familiares organizaram uma turnê do caixão do mega-falecido astro. Ele vai se apresentar em missas de sétimo dia e enterros pela Europa e América Latina. Já é certo que o cantor fará um show de corpo presente no Rio de Janeiro, só ainda não está definido se será no Maracanã ou no São João Batista. Embora a família vibre com o sucesso da turnê, para a reportagem do Patavina’s News, o cantor confidenciou: “esses shows acabam comigo. Eu tô mortão”. Mas a verdade é que Mister Jackson mais uma vez está abalando o mundo pop. Milhares de fãs de Madonna exigem que a cantora dê uma guinada na sua carreira e vá fazer companhia a Michael Jackson. E boatos dão conta de que um mega-show estaria sendo organizado: o “Exumation Pop” ou “We Are the Other World”, que contaria com a presença das ossadas de John Lennon e Elvis Presley.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

CAIU NA REDE É PIXEL


Não Para, Elisa! Francesinha recém-chegada, bailarina, experiência internacional, 18 a., 1,80alt, m. 38, pele pêssego, corpo esculpido, s/frescura. Pas de quatre, manège ouverte, dominatrix estilo cancan, extraordinariamente indecepcionável. Barra, Z.Sul. Venha conferir. www.naoparaelisa.com.br .

CHIPS – o prazer da batata & o poder do circuito –

CONTENTAMENTO

É um bom emprego. Trabalhar com água é muito agradável, melhor do que com gente. Primeiro eu tampo a pia, depois abro a torneira e deixo encher. Quando a pia está cheia, fecho a torneira, pego o conta-gotas e faço a sucção. Daí é só sair da casa, atravessar a ruazinha de terra e já estou na praia. Vou até o mar e esvazio o conta-gotas. Depois volto e vou repetindo a operação até esvaziar a pia. Então é só encher de novo e recomeçar. Tem alguma coisa a ver com as marés, mas eu ainda não entendi muito bem. O importante é que eles estão contentes com o meu trabalho.

- LHUFAS - coisa com coisa nenhuma –

OS MANUSCRITOS DO BAR DA SANTA CEIA

Uma equipe internacional de arqueólogos encontrou na região da antiga Galiléia as ruínas de um pé-sujo onde teria se realizado a Santa Ceia. A principal prova é um manuscrito de grande valor histórico-religioso, cujos trechos mais importantes nós traduzimos e reproduzimos a seguir. Foi encontrada também a conta da Santa Ceia e os arqueólogos já mandaram perguntar ao papa quem é que vai pagar.


“E Jesus tomou do pão e fez uma bolinha com o miolo e tacou dentro do copo de vinho de Bartolomeu. E Jesus acertou em cheio. E Jesus viu que era bom. E transformou a água em vinho, os pratos em capacetes romanos, os copos em pequenas cruzes, os guardanapos em posters da Maria Madalena de biquíni e dois garçons em estátua de sal. E Jesus viu que era muito bom. E Simão obtemperou: já não tereis bebido demais, ó Senhor? Não seria de bom alvitre pedirdes a conta? E o Senhor falou: por que não encherdes o saco de outro, ó Simão? E vamos parar de falar na segunda pessoa do plural que esse negócio de vós isso e vós aquilo é um saco! E Tiago olhou Jesus e ponderou: mas Senhor, vós, quer dizer, tu, não, o Senhor ainda tem dois sermões para fazer hoje, no Monte das Bananeiras e no Morro da Mangueira. E Jesus mais uma vez protestou: vocês estão marcando um monte de sermão e milagre sem me consultar. Assim eu vou acabar partindo para uma carreira solo. E Judas se levantou e disse: Senhor, abriu uma nova casa de show de um romano amigo meu lá no Calvário. Se o Senhor quiser eu posso falar com ele. E os apóstolos condenaram Judas. E começaram a bater boca. E uns, mais exaltados, ameaçavam partir pra briga. E Jesus deu um murro na mesa e bradou: chega! Não dá nem pra gente sair pra se divertir que vocês já começam com essa brigalhada! Essa é a última ceia que eu faço com vocês! Garçom, a conta!

E os apóstolos se calaram e o garçom trouxe a conta। E Jesus viu que havia doze porções de linguicinha. E Jesus viu que não era bom. E Jesus esbravejou com o garçom. E o garçom falou que doze era o número de pratos de linguicinha na mesa, bastava contar. E Tomé tomou da palavra e garantiu que só tinham sido pedidas seis linguicinhas e que as outras seis Jesus é que multiplicara. E o garçom resmungou que esse golpe de dizer que alguém multiplicou coisas na mesa já estava pra lá de manjado ali na Galiléia e que todo fim de semana aparecia um engraçadinho com essa história. E Jesus continuou olhando a conta e indagou se Pedro havia pedido lagosta de novo e lembrou a Pedro que eles haviam combinado que ninguém pediria lagosta pois era um peixe muito caro. E Pedro negou que tivesse pedido lagosta e afirmou que lagosta não era peixe, era crustáceo. E Jesus retrucou que lagosta podia ser até um coleóptero mas não era pra pedir. E por três vezes Jesus insistiu com Pedro se a lagosta era dele. E por três vezes Pedro negou Cristo: eu não pedi porcaria de lagosta nenhuma, eu tenho alergia a frutos do mar! E Mateus perguntou: mas afinal, lagosta é crustáceo ou é fruto do mar? E Judas mandou Mateus fechar a matraca. E André acusou Judas pela lagosta. E Judas caguetou que quem pediu a lagosta foi a Maria Madalena. E Maria Madalena xingou Judas de dedo-duro e caiu em prantos e implorou que Jesus a perdoasse. E Jesus disse: ó Madalena, o meu peito percebeu que o mar é uma gota comparado ao pranto teu! E Maria Madalena achou lindo e Jesus viu que era bom e João queixou-se: eu não entendi. Essa mania que o Senhor tem de falar com metáfora ainda vai dar confusão. E Arnaldo suplicou: explicai, Senhor. E Jesus deu outro murro na mesa: já falei pra parar com essa história de vós! Aliás, quem foi que te convidou pra nossa ceia, hein? E Arnaldo saiu de fininho. E o garçom trouxe a nova conta e perguntou quem é que ia pagar. E novo bate-boca se iniciou entre os apóstolos. E Jesus pegou a conta e determinou: Judas, você é o nosso tesoureiro e portanto terá que pagar a conta. E João observou: viu só, sem metáfora dá pra entender muito melhor. E Felipe deu uma cotovelada em João e João se calou e Jesus entregou a conta para Judas e Judas reclamou: mas Senhor, estão faltando trinta dinheiros, como é que eu vou arranjar essa quantia? E Jesus calçou suas sandálias e disse, partindo: se vira, Judas, se vira.”

“NÚNCARAS”

Carochinhas Brazileiras

1.
história do brasil

Era uma vez...


2.
a primeira missa

o descampado está limpo
a cruz está pronta
os paramentos do padre, passados
as hóstias, cozidas

quem vamos pegar pra cristo?


3.
de família


thomas staden
irmão de hans
desembarcou na capitania de pernambuco
também capturado pelos índios
acabou devorado
e suas memórias
o vento espalhou na taba

azar distinto do irmão
ou costumes de outra tribo


4.
made in pindorama


sardinhas bispo
as únicas que não contêm catequese


5.
a vinda da família


lá vai uma barquinha carregadinha de...
fujões


6.
santa mãe!


a rainha não diz coisa com coisa
nossa primeira padroeira


7.
família real

rei dangola
quilombola
bom de bola


8.
os mares nunca dantes

desbravar
desbravata


9.
sonhos de uma noite de verão

ah se villegagnon ganhasse
ah se os inglezes had
ah se
ah se
ah se

e a gente aqui
esperando dom sebastião
e aturando tião


10.
my land

preciso juntar moeda
preciso correr preuropa
pra fazer canção do exílio


11.
herança


liberdade liberdade
abre as patas sobre nós


O poema “Carochinhas Brazileiras” foi classificado entre os dez primeiros no Prêmio Off-Flip de Poesia, da Feira Literária de Paraty e será publicado em breve, numa coletânea organizada pelo concurso.

IMPRESSÕES DIGITAIS

IT’S A LONG WAY E NÃO TEM TRADUÇÃO


Não sou bom com datas, mas foi lá pelo final da década de 60 que eu escutei o Sol nas bancas de revista e não entendi. Era uma época em que eu começava a não entender muitas coisas e Caetano Veloso me ajudou um bocado nisso. Eu ouvia suas canções, via aquela figura, magra como um Vê, sorrindo, levando vaia e se indignando nos festivais e era como se eu tivesse me atirado numa correnteza que ia me levando com medo e prazer. Eu também caminhava contra o vento? Contra moinhos de vento, caminhávamos, lutávamos, amávamos? O Sol nas bancas de revista era uma estrela, era um jornal, era o começo de uma caminhada, it’s a long way, viver é muito perigoso, nos sertões, na Bahia, na ditadura, em Londres, numa canção do exílio, no passado recantado e decantado da nossa música, na lua oval da esso e de São Jorge, shy moon, it’s a long and winding road, but today I don’t know why...

E nesses caminhos de fina estampa, o que disse Caetano? E como disse Caetano?, criando outra língua que não é mais a portuguesa e continua sendo, minha pátria, minha mátria, minha frátria, outra língua que é ritmo, arte, que é só um jeito de corpo, onde me levam esses trilhos urbanos, baianos, humanos?

Cada disco de Caetano (somos da época do disco!) sempre precisava ser escutado duas vezes pela primeira vez, para que eu começasse a traduzir o que não tem tradução, pois afinal o que disse Caetano, o que diz, o que dirá? Se não tem tradução, tem tradição e tem novo. Caetano tinha sempre uma novidade antiga e uma antiguidade nova. E continua tendo e cada vez que escuto Caetano vou relendo Caetanos, plural, releitor, recantor, recompositor. Mas o que ele disse mesmo?

Me lembro que já na década de 70 eu estudava na faculdade de Letras da UFRJ, que tinha sido jogada pela ditadura num velho galpão na avenida Chile. Os diretórios dos estudantes ainda estavam fechados, fichados, proibidos. Nós conseguimos inventar um órgão cultural – o SEMA, Seminário Mário de Andrade – e com ele íamos fazendo política proibida e cultura idem. Uma de nossas atividades foi realizar no teatro da faculdade o Circuito Aberto de Música Popular Brasileira, bolado por Chico Chaves, Marlui Miranda e outros que então começavam. A cada sábado, três ou quatro novos cantores/compositores se apresentavam junto com alguém já conhecido, como Clementina de Jesus, Cartola e vários outros. No dia em que o nome conhecido era Caetano Veloso estávamos à tarde preparando a decoração do palco quando soubemos que um dos novos não ia poder se apresentar. Acabamos de arrumar tudo e saímos para comer alguma coisa antes do show. Na época as redondezas do Largo da Carioca eram um labirinto pra fio de Ariadne nenhum botar defeito, graças às obras do metrô. Quando já voltávamos, escutamos um forró delicioso que vinha do acampamento dos operários do metrô. Daí alguém deu a idéia e nós resolvemos convidar os forrozeiros para abrir o show, já que havia tempo sobrando. Eles ficaram cabreiros de ir tocar numa faculdade, para um público desconhecido mas, com meia hora de conversa e cerveja, acabaram topando e, já de saída, perguntaram quem mais ia tocar por lá. Desfiamos os nomes novos, que eles não conheciam, e fechamos com Caetano. Novamente eles se recusaram a ir lá tocar, e com muito mais veemência. Caetano continuava assustando. Mais meias horas de conversa e cerveja e eles acabaram topando e abriram um show universitário que contava com ninguém menos que Caetano Veloso.

É mais uma história superbacana, estilhaços sobre Copacabana, bem ali na Ipiranga com a São João. A caetanave é um caleidoscópio tropical. São outras mesmas palavras, de quando ele se encontrava preso na cela de uma cadeia e os podres poderes gritavam vamos matar Caetano. Mas não, vamos comer, beber e dançar caetanos, porque alguma coisa está fora da ordem e essa coisa é sua mãe e eu e a mãe do seu irmão e o coração materno dela, é Santa Clara padroeira da televisão, é Didi, santo trapalhão, é de noite na cama, o divino conteúdo, que se quebrou, e caetano está se quebrando e se requebrando. Caetano é assim, assusta e enriquece. Desbrava-esbraveja o Brasil e beija a boca de Gil. Que impressão eu tenho de Caetano? Todas, digitais, mecânicas, manuais, acústicas. Caetano é a filha da Chiquita Bacana. E a mãe também. Alguém cantando muito, alguém cantando bem. Vadio laptop atrás do trio elétrico. Locos por ti todos perguntamos e respondemos quem é Caetano. E toda essa gente se engana.

AVISO AOS NAUFRAGANTES

DARWIN, O DESERTO E AS LONTRAS

Um inglês, um francês e um boliviano, no meio do Deserto de Atacama, esperando chover e tentando escutar o choro de uma lontra. E o inglês é Charles Darwin, fazendo as primeiras anotações para seu famoso livro.

Eis o enredo de meu conto La Nutria de Atacama, que está publicado no site TextoTerritório. Lá você também vai encontrar as anti-odes de Oswaldo Martins e Alexandre Faria, os dois organizadores do site. E, como eu fiz, você pode enviar textos para a oficina Charles Darwin,: “recriação poética e/ou ficcional da obra e/ou vida do naturalista inglês que tirou o sono do mundo”. Além de outras duas, sobre Machado de Assis e Manuel Bandeira. É só dar um confere. O endereço é: http://www.textoterritorio.pro.br/site/

PRIMEIRO CADERNO
DO ALUMNO DE PORNOGRAPHIA

CESAR CARDOSO

Sob esse título acaba de ser publicada uma série de poemas eróticos meus, no site Germina – revista de literatura e arte. O site tem uma coletânea de textos eróticos reunindo autores como Brecht, Drummond, John Donne, Hilda Hilst, Aretino, entre outros. Como vocês veem eu estou em ótima companhia. (Não sei se eles diriam a mesma coisa...) O endereço é http://www.germinaliteratura.com.br/

PATAVINinha’s

ROBERTO FLOR,
UM COBERTOR


Na minha casa
mora um cobertor
que eu batizei
de Roberto Flor.

Tinha guardado
esse nome pro meu gato.
Só que aqui no prédio
todo bicho vai pro lixo.
É proibido.
É contra a tal da lei

Mas pra que ela serve
isso eu não sei.

Diz que bicho
faz barulho,
suja tudo.
Mas meu irmão menor
chora berra faz xixi
e aí
fica todo mundo mudo.

E a vizinha de baixo
quando briga com o marido?
Também não devia
ser proibido?

Só espero que não proíbam
a gente de ter coberta.
Senão de madrugada
é resfriado na certa.

E no inverno
sem cobertor?
Vou direto
pro doutor!

Mas essa história do gato
Eu não engulo não.
Me dá um resfriado no coração!

Ninguém sabe aqui em casa
que o Roberto já é um rapaz.
E vive namorando uma colcha
lá da cama dos meus pais.
Ela é brincalhona
que nem hora do recreio.
E tem uma lua cheia de idéias
desenhada bem no meio.

Hoje expliquei pros meus pais
que eles precisam batizar a colcha.
Afinal, coitado do Roberto Flor:
pra uma namorada sem nome
como é que se manda
bilhetes de amor?

Sempre que posso
ajudo o Roberto.
Levo e trago recados
boto os dois bem perto.
Juntos na máquina de lavar...
ou então no varal
uso um pregador
pro casal se abraçar.

Às vezes
quando a noite já piscou seu olho
e os sonhos querem me levar
para o mundo do tanto faz
eu e ele vamos visitar
a colcha da lua cheia
lá na cama dos meus pais.

Brincamos de sonhar
enroscados
enquanto o quarto esfria.
Até o sol
bater na janela
e dizer bom-dia.


O texto Roberto Flor saiu no meu livro de poemas infantis Manu,Ela, lançado pela Editorial Nórdica, em 1987 e que se encontra esgotado (ou seja: não se encontra).

MEUS CAROS AMIGOS

Desde 2005 sou colunista da revista Caros Amigos. Aqui republico algumas das crônicas publicadas lá.

TEU MELHOR INIMIGO


Se a essa hora tardia não há como procurar amigo, pela madrugada que esconde o dia e a coragem ou pelo adiantado das horas do relógio de tua vida, procura teu inimigo. Mas não qualquer um, simples desafeto de bar, adversário da pelada de sábado, antagonista do condomínio, concorrente, rival. Não.

Procura teu melhor inimigo.

Aquele que nunca te foi indiferente. Aquele que com certeza foi grande amigo um dia, ou pelo menos você assim achava, até que ele te traiu, te passou a rasteira, te deu a facada pelas costas. E se ninguém agiu assim contigo, o dia está prestes e ele está à espreita, pronto para o bote. E se você ficar atento, ele saberá esperar, até que tua atenção se canse, esmoreça, cochile.

Porque ele é teu melhor inimigo. Ele te trai, mas compra uma roupa especial pra ocasião. Ele te passa uma rasteira, mas é aquela que ele nunca ensinou pra ninguém, é te mostrando o pulo do gato que ele voa na tua carótida. Ele espera que você se vire, pensando em nada, e te esfaqueia pelas costas, esposteja tua carne, separa tuas costelas, secciona veias, perfura teu pulmão. E o faz com uma adaga moura antiqüíssima e enquanto você agoniza ele ampara teu rosto e te conta dos sultões que possuíram aquela adaga e dos tesouros que mudaram de mão graças a ela e dos bravos que sucumbiram pelo golpe fatal que só ela sabe desferir, independente da mão que a segura. Ela esteve em Roma, entre os Césares, esteve com Gengis Khan, talvez até mesmo nas mãos de Caim. Ela é quem comanda a mão e se a mão não tiver a estirpe necessária, ela cortará, não a tua jugular, mas a própria mão do inimigo para que ele aprenda que não estava a altura do teu ódio, não era digno de teu asco, nunca fora merecedor de tua repulsa, não foi sem seria nunca teu melhor inimigo.

É inútil. Por mais olhos que você tenha ou contrate, você nunca vê teu melhor inimigo chegar. Nunca. Se você pensa que vê, ou tua vista é quem te engana ou tua idéia está variando ou é você inteiro que não conhece teu melhor inimigo. Você ainda vive no engano, no logro, no erro. Mas teu melhor inimigo não erra nem vem te enganar, que pra enganar qualquer inimigo serve. Ele, o teu melhor inimigo, ele vem te desenganar.

É uma paixão esse ódio a que ele dá de comer cotidianamente, como um pássaro, um louva-a-deus. E para amparar tamanho ódio, para construir tanto rancor, ele se dedicou a te conhecer a fundo, como só tua mãe te conhece. Nenhuma amizade tua é capaz dessa dedicação, dessa fidelidade canina, de cão hidrófobo. Ele te prepara uma canção que embosque como dois olhos de felino no escuro. E irá te destruir com a melhor repugnância, o mais alto nojo, a mais dedicada raiva. Com um desprezo fraterno, com uma ira maternal. E mesmo depois de te aniquilar, ele não te esquecerá. Quando ninguém mais lembrar de ti, quando você for nada para o mundo e os que nele vivem, para os que te conheceram, para os que te amaram um dia, para os que choraram tua morte, só teu melhor inimigo irá te ver na tua última morada e cuspir na tua cova e urinar sobre o teu nome, quase apagado na lápide.

Teu melhor inimigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves. E ele há de te guardar debaixo de sete palmos.