segunda-feira, 6 de julho de 2009

IMPRESSÕES DIGITAIS

IT’S A LONG WAY E NÃO TEM TRADUÇÃO


Não sou bom com datas, mas foi lá pelo final da década de 60 que eu escutei o Sol nas bancas de revista e não entendi. Era uma época em que eu começava a não entender muitas coisas e Caetano Veloso me ajudou um bocado nisso. Eu ouvia suas canções, via aquela figura, magra como um Vê, sorrindo, levando vaia e se indignando nos festivais e era como se eu tivesse me atirado numa correnteza que ia me levando com medo e prazer. Eu também caminhava contra o vento? Contra moinhos de vento, caminhávamos, lutávamos, amávamos? O Sol nas bancas de revista era uma estrela, era um jornal, era o começo de uma caminhada, it’s a long way, viver é muito perigoso, nos sertões, na Bahia, na ditadura, em Londres, numa canção do exílio, no passado recantado e decantado da nossa música, na lua oval da esso e de São Jorge, shy moon, it’s a long and winding road, but today I don’t know why...

E nesses caminhos de fina estampa, o que disse Caetano? E como disse Caetano?, criando outra língua que não é mais a portuguesa e continua sendo, minha pátria, minha mátria, minha frátria, outra língua que é ritmo, arte, que é só um jeito de corpo, onde me levam esses trilhos urbanos, baianos, humanos?

Cada disco de Caetano (somos da época do disco!) sempre precisava ser escutado duas vezes pela primeira vez, para que eu começasse a traduzir o que não tem tradução, pois afinal o que disse Caetano, o que diz, o que dirá? Se não tem tradução, tem tradição e tem novo. Caetano tinha sempre uma novidade antiga e uma antiguidade nova. E continua tendo e cada vez que escuto Caetano vou relendo Caetanos, plural, releitor, recantor, recompositor. Mas o que ele disse mesmo?

Me lembro que já na década de 70 eu estudava na faculdade de Letras da UFRJ, que tinha sido jogada pela ditadura num velho galpão na avenida Chile. Os diretórios dos estudantes ainda estavam fechados, fichados, proibidos. Nós conseguimos inventar um órgão cultural – o SEMA, Seminário Mário de Andrade – e com ele íamos fazendo política proibida e cultura idem. Uma de nossas atividades foi realizar no teatro da faculdade o Circuito Aberto de Música Popular Brasileira, bolado por Chico Chaves, Marlui Miranda e outros que então começavam. A cada sábado, três ou quatro novos cantores/compositores se apresentavam junto com alguém já conhecido, como Clementina de Jesus, Cartola e vários outros. No dia em que o nome conhecido era Caetano Veloso estávamos à tarde preparando a decoração do palco quando soubemos que um dos novos não ia poder se apresentar. Acabamos de arrumar tudo e saímos para comer alguma coisa antes do show. Na época as redondezas do Largo da Carioca eram um labirinto pra fio de Ariadne nenhum botar defeito, graças às obras do metrô. Quando já voltávamos, escutamos um forró delicioso que vinha do acampamento dos operários do metrô. Daí alguém deu a idéia e nós resolvemos convidar os forrozeiros para abrir o show, já que havia tempo sobrando. Eles ficaram cabreiros de ir tocar numa faculdade, para um público desconhecido mas, com meia hora de conversa e cerveja, acabaram topando e, já de saída, perguntaram quem mais ia tocar por lá. Desfiamos os nomes novos, que eles não conheciam, e fechamos com Caetano. Novamente eles se recusaram a ir lá tocar, e com muito mais veemência. Caetano continuava assustando. Mais meias horas de conversa e cerveja e eles acabaram topando e abriram um show universitário que contava com ninguém menos que Caetano Veloso.

É mais uma história superbacana, estilhaços sobre Copacabana, bem ali na Ipiranga com a São João. A caetanave é um caleidoscópio tropical. São outras mesmas palavras, de quando ele se encontrava preso na cela de uma cadeia e os podres poderes gritavam vamos matar Caetano. Mas não, vamos comer, beber e dançar caetanos, porque alguma coisa está fora da ordem e essa coisa é sua mãe e eu e a mãe do seu irmão e o coração materno dela, é Santa Clara padroeira da televisão, é Didi, santo trapalhão, é de noite na cama, o divino conteúdo, que se quebrou, e caetano está se quebrando e se requebrando. Caetano é assim, assusta e enriquece. Desbrava-esbraveja o Brasil e beija a boca de Gil. Que impressão eu tenho de Caetano? Todas, digitais, mecânicas, manuais, acústicas. Caetano é a filha da Chiquita Bacana. E a mãe também. Alguém cantando muito, alguém cantando bem. Vadio laptop atrás do trio elétrico. Locos por ti todos perguntamos e respondemos quem é Caetano. E toda essa gente se engana.

Um comentário:

  1. maravilhoso, texto, cesar!
    me emocionou com todas essas suculentas referências (e reverências tb)

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