quinta-feira, 3 de março de 2011

FOI UM RIO QUE PASSOU EM PATAVINA’S
















Esta é uma pequena e bastante incompleta antologia carnavalesca de nossa literatura. E traz também trabalhos de dois grandes chargistas: Nani e Zé da Silva. Num espaço de tempo de cerca de cem anos, temos aqui um pouco do olhar de nossas elites pensantes sobre nossa maior festa popular. Talvez as elites não sejam tão pensantes assim e talvez a festa também não seja tão popular. Mas certamente temos aqui muitos exemplos de boa literatura. Divirtam-se!

E meus agradecimentos especiais ao Nani e ao Zé da Silva, pelas charges.
Cesar Cardoso (cesarcar@uninet.com.br)

ENTRUDO E MASCARAS

Extracto do regulamento de 2 de fevereiro de 1858

He expressamente prohibido o jogo de entrudo com água, limas de cheiro, lama, fructas podres e outro qualquer objecto.
Os mascaras não podem usar de caracter alusivo à religião ou pessoas designadas.
Os escravos não podem usar de mascaras.
As armas dos mascaras serão de papelão ou madeira frágil.
Os mascaras por occasião do carnaval só podem transitar pelas ruas até as 8 horas da noite.
Não se permitte fazer perguntas ou travar conversações com o s mascaras, que não sejam decentes: assim como o procurar descobrir o segredo dos mascaras.
Serão punidos os mascaras que praticarem actos indecentes ou provocarem rixas.

(Em “A Folhinha de Almanak ou Diario Ecclesiastico e Civil para as Províncias de Pernambuco, Parahyba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas”, 1858.)

DUAS CRÔNICAS DE MACHADO DE ASSIS
[12 fevereiro] de 1893
FALECI ONTEM, pelas sete horas da manhã. Já se entende que foi sonho; mas tão perfeita a sensação da morte, a despegar-me da vida tão ao vivo o caminho do céu, que posso dizer haver tido um antegosto da bem-aventurança.
Ia subindo, ouvia já os coros de anjos, quando a própria figura do Senhor me apareceu em pleno infinito. Tinha uma ânfora nas mãos, onde espremera algumas dúzias de nuvens grossas, e inclinava-a sobre esta cidade, sem esperar procissões que lhe pedissem chuva. A sabedoria divina mostrava conhecer bem o que convinha ao Rio de Janeiro; ela dizia enquanto ia entornando a ânfora:
— Esta gente vai sair três dias à rua com o furor que traz toda a restauração. Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o verão não por ser melhor, mas por ser a própria quadra antiga, a do costume, a do calendário, a da tradição, a de Roma, a de Veneza, a de Paris. Com temperatura alta, podem vir transtornos de saúde, — algum aparecimento de febre, que os seus vizinhos chamem logo amarela, não lhe podendo chamar pior... Sim, chovamos sobre o Rio de Janeiro.
Alegrei-me com isto, posto já não pertencesse à terra. Os meus patrícios iam ter um bom carnaval, — velha festa, que está a fazer quarenta anos, se já os não fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo, costume velho, datado da colônia e vindo da metrópole. Não pensem os rapazes de vinte e dous anos que o entrudo era alguma cousa semelhante às tentativas de ressurreição, empreendidas com bisnagas. Eram tinas d'água, postas na rua ou nos corredores, dentro das quais metiam à força um cidadão todo, — chapéu, dignidade e botas. Eram seringas de lata; eram limões de cera. Davam-se batalhas porfiadas de casa a casa, entre a rua e as janelas, não contando as bacias d'água despejadas a traição. Mais de uma tuberculose caminhou em três dias o espaço de três meses.
Quando menos, nasciam as constipações e bronquites, ronquidões e tosses, e era a vez dos boticários, porque, naqueles tempos infantes e rudes, os farmacêuticos ainda eram boticários.
Cheguei a lembrar-me, apesar de ir caminho do céu, dos episódios de amor que vinham com o entrudo. O limão de cera, que de longe podia escalavrar um olho, tinha um ofício mais próximo e inteiramente secreto. Servia a molhar o peito das moças; era esmigalhado nele pela mão do próprio namorado, maciamente, amorosamente, interminavelmente . . .
Um dia veio, não Malesherbes, mas o carnaval, e deu à arte da loucura uma nova feição. A alta roda acudiu de pronto; organizaram-se sociedades, cujos nomes e gestos ainda esta semana foram lembrados por um colaborador da Gazeta. Toda a fina flor da capital entrou na dança. Os personagens históricos e os vestuários pitorescos, um doge, um mosqueteiro, Carlos V, tudo ressurgia às mãos dos alfaiates, diante de figurinos, à força de dinheiro. Pegou o custo das sociedades, as que morriam eram substituídas, com vária sorte, mas igual animação.
Naturalmente, o sufrágio universal, que penetra em todas as instituições deste século, alargou as proporções do carnaval, e as sociedades multiplicaram-se, com os homens. O gosto carnavalesco invadiu todos os espíritos, todos os bolsos, todas as ruas. Evohé! Bacchus est roi! dizia um coro de não sei que peça do Alcazar Lírico, — outra instituição velha, mas velha e morta. Ficou o coro, com esta simples emenda: Evohé! Momus est roi!
Não obstante as festas da terra, ia eu subindo. subindo, até que cheguei à porta do céu, onde S. Pedro parecia, aguardar-me, cheio de riso.
— Guardaste para ti tesouros no céu ou na terra? perguntou-me.
Se crer em tesouros escondidos na terra é o mesmo que escondê-los, confesso o meu pecado, porque acredito nos que estão no morro do Castelo, como nos cento e cinqüenta contos fortes do homem que está preso em Valhadolide. São fortes; segundo o meu criado José Rodrigues, quer dizer que são trezentos contos. Creio neles. Em vida fui amigo de dinheiro, mas havia de trazer mistério. As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram uma das minhas crenças da meninice e da mocidade; morri com ela, e agora mesmo ainda a tenho. Perdi saúde, ilusões, amigos e até dinheiro, mas a crença nos tesouros do Castelo não a perdi. Imaginei a chegada da ordem que expulsava os jesuítas. Os padres do colégio não tinham tempo nem me os de levar as riquezas consigo; depressa, depressa, ao subterrâneo, venham os ricos cálices de prata, os cofres de brilhantes, safiras, corais, as dobras e os dobrões, os vastos sacos cheios de moeda, cem, duzentos, quinhentos sacos. Puxa, puxa este Santo Inácio de ouro maciço, com olhos de brilhantes, dentes de pérolas, toca a esconder, a guardar, a fechar...
— Pára, interrompeu-me S. Paulo; falas como se estivesses a representar alguma cousa. A imaginação dos homens é perversa. Os homens sonham facilmente com dinheiro. Os tesouros que valem são os que se guardam no céu, onde a ferrugem os não come.
— Não era o dinheiro que me fascinava em vida, era o mistério. Eram os trinta ou quarenta milhões de cruzados escondidos, há mais de século, no Castelo; são os trezentos contos do preso de Valhadolide. O mistério, sempre o mistério.
— Sim, vejo que amas o mistério. Explicar-me-ás este de um grande número de almas que foram daqui para o Brasil e tornaram sem se poderem incorporar?
— Quando, divino apóstolo?
— Ainda agora.
— Há de ser obra de um médico italiano, um doutor ... esperai... creio que Abel, um doutor Abel, sim Abel... É um facultativo ilustre. Descobriu um processo para esterilizar as mulheres. Correram muitas, dizem; afirma-se que nenhuma pode já conceber; estão prontas.
— As pobres almas voltavam tristes e desconsoladas; não sabiam a que atribuir essa repulsa. Qual é o fim do processo esterilizador? — Político. Diminuir a população brasileira, à proporção que a italiana vai entrando; idéia de Crispi, aceita por Giolitti, confiada a Abel ...
— Crispi foi sempre tenebroso.
— Não digo que não; mas, em suma, há um fim político, e os fins políticos são sempre elevados ... Panamá, que não tinha fim político ...
— Adeus, tu és muito falador. O céu é dos grandes silêncios contemplativos.

* * * * * *

[4 fevereiro] de 1894
QUANDO EU Li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de 1'homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inextinguível, à maneira de deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.
Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos chocalhos, nem guizos, nem vozes tortas e finas. Não sairão as sociedades, com os seus carros cobertos de flores e mulheres, e as roupas de veludo e cetim. A única veste que poderá aparecer, é cinta espanhola, ou não sei de que raça, que dispensa agora os coletes e dá mais graça ao corpo. Esta moda quer-me parecer que pega; por ora, não há muitos que a tragam. Quatrocentas pessoas? Quinhentas? Mas toda religião começa por um pequeno número de fiéis. O primeiro homem que vestiu um simples colar de miçangas, não viu logo todos os homens com o mesmo traje; mas pouco a pouco a moda pegando, até que vieram atrás das miçangas, conchas, pedras e outras. Daí até o capote, e as atuais mangas de presunto, em que as senhoras metem os braços, que caminho! O chapéu baixo, feltro ou palha, era há 25 anos uma minoria ínfima. Há uma chapelaria nesta cidade que se inaugurou com chapéus altos em toda a parte, nas portas, vidraças, balcões, cabides, dentro das caixas, tudo chapéus altos. Anos depois, passando por ela, não vi mais um só daquela espécie; eram muitos e baixos, de vária matéria e formas variadíssimas.
Não admira que acabemos todos de cinta de seda. Quem sabe não é uma reminiscência da tanga do homem primitivo? Quem sabe se não vamos remontar os tempos até ao colar de miçangas? Talvez a perfeição esteja aí. Montaigne é de parecer que não fazemos mais que repisar as mesmas cousas e andar no mesmo círculo; e o Eclesiastes diz claramente que o que é, foi, e o que foi, é o que há vir. Com autoridades de tal porte, podemos crer que acabarão algum dia alfaiates e costureiras. Um colar apenas, matéria simples, na mais; quando muito, nos bailes, um simulacro de gibus para pede com graça uma quadrilha ou uma polca. Oh! a polca das miçanga. Há de haver uma com esse título, porque a polca é eterna, e quando não houver mais nada, nem sol, nem lua, e tudo tornar às trevas, últimos deus ecos da catástrofe derradeira usarão ainda, no fundo do infinito, esta polca, oferecida ao Criador: Derruba, meu Deus, derruba!
Como se disfarçarão os homens pelo carnaval quando voltar a idade da miçanga? Naturalmente com os trajes de hoje. A Gazeta de Notícias escreverá por esse tempo um artigo, em que dirá:
Pelas figuras que têm aparecido nas ruas, terão visto os nossos leitores Onde foi, séculos atrás, já não diremos o mau gosto, que é evidente, mas a violação da natureza, no modo de vestir dos homens. Quando possuíam as melhores casacas e calças, que são a própria epiderme, tão justa ao corpo, tão sincera, inventaram umas vestiduras perversas, falsas. Tudo é obra do orgulho humano, que pensa aperfeiçoar a natureza, quando infringe as suas leis mais elementares. Vede o lenço; o homem de outrora achou que ele tinha uma ponta de mais, e fez um tecido de quatro pontas, sem músculos, sem nervos, sem sangue, absolutamente imprestável, desde que não esteja a da pessoa. Há no nosso museu nacional um exemplar dessa ridicularia. Hoje, para dar uma idéia viva da diferença das duas civilizações, publicam um desenho comparativo, dous homens, um moderno, outro dos fins do século XIX; é obra de um jovem por um dos redatores desta folha, o nosso excelente companheiro João, amigo de todos os tempos.
Que não possa eu ler esse artigo, ver as figuras, compará-las, e repetir os ditos do Eclesiastes e de Montaigne, e anunciar aos povos desse tempo que a civilização mudará outra vez de camisa! Irei antes, muito antes, para aquela outra Petrópolis, capital da vida eterna. Lá ao menos há fresco, não se morre de insolação, nome que já entrou no nosso obituário, segundo me disseram esta semana. Não se pode imaginar a minha desilusão. Eu cria que, apesar de termos um sol de rachar, não morreríamos nunca de semelhante cousa. Há anos deram-se aqui alguns casos de não sei que moléstia fulminante, que disseram ser isso; mas vão lá provar que sim ou que não. Para se não provar nada, é que o mal fulmina. Assim, nem tudo acaba em cajuada, como eu supunha; também se morre de insolação. Morreu um, morrerão ainda outros. A chuva destes dias não fez mais que açular a canícula.
De resto, a morte escreveu esta semana em suas tabelas, algumas das melhores datas, levando consigo um Dantas, um José Silva, um Coelho Bastos. Não se conclui que ela tem mais amor aos que sobrenadam, do que aos que se afundam; a sua democracia não distingue. Mas há certo gosto particular em dizer aos primeiros, que nas suas águas tudo se funde e confunde, e que não há serviços à pátria ou à humanidade, que impeçam de ir para onde vão os inúteis ou ainda os maus. Vingue-se a vida guardando a memória dos que o merecem, e na proporção de cada um, distintos com distintos, ilustres com ilustres.
Essa há de ser a moda que não acaba. Ou caminhemos para a perfeição deliciosa e terna, ou não façamos mais que ruminar, perpétuo camelo, o mesmo jantar de todas as idades, a moda de morrer é a mesma ... Mas isto é lúgubre, e a primeira das condições do meu ofício é deitar fora as melancolias, mormente em dia de carnaval. Tornemos ao carnaval, e liguemos assim o princípio e o fim da crônica. A razão de o não termos este ano, é justa; seria até melhor que a proibição não fosse precisa, e viesse do próprio ânimo dos foliões. Mas não se pode pensar em tudo.
Machado de Assis, crônicas publicadas em A semana. Machado de Assis, Obra Completa, vol. III. Editora Nova Aguilar.

CORDÕES
JOÃO DO RIO

Oh! Abre ala!
Que eu quero passá
Estrela d’Alva
Do Carnavá!

Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que do largo de São Francisco à rua Direita, dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinquenta mil pessoas. A rua convulsionava-se como se fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava como chumbo. No alto, arcos de gás besuntavam de uma luz de açafrão as fachadas dos prédios. Nos estabelecimentos comerciais, nas redações dos jornais, as lâmpadas elétricas despejavam sobre a multidão uma luz ácida, e galvânica, que enlividescia e parecia convulsionar os movimentos da turba, sob o panejamento multicolor das bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante dos confetti, que, como um irisamento do ar, caíam, voavam, rodopiavam. Essa iluminação violenta era ainda aquecida pelos braços de luz auer, pelas vermelhidões de incêndio e as súbitas explosões azuis e verdes dos fogos de Bengala; era como que arrepiada pela corrida diabólica e incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas portáteis. Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d’água, cheios de confetti; mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila dos lança-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos, guinchos. Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum, poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto de promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia, toda ela policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. Atrás de nós, sem colarinho, de pijama, bufando, um grupo de rapazes acadêmicos, futuros diplomatas e futuras glórias nacionais, berrava furioso a cantiga do dia, essas cantigas que só aparecem no Carnaval:

Há duas coisa
Que me faz chorá
É nó nas tripa
E bataião navá!

[...]

Abriguei-me a uma porta. Sob a chuva de confetti, o meu companheiro esforçava-se por alcançar-me.

- Por que foges?
- Oh! Estes cordões! Odeio o cordão.
- Não é possível.
- Sério!

Ele parou, sorriu:

- Mas o que pensas tu? O cordão é o Carnaval, o cordão é vida delirante, o cordão é o último elo das religiões pagãs. Cada um desses pretos ululantes tem, por sob a belbutina e o reflexo discrômico das lantejoulas, tradições milenares; cada preta bêbada, desconjuntando nas tartalanas amarfanhadas os quadris largos, recorda o delírio das procissões em Biblos pela época da primavera e a fúria rábida das bacantes. Eu tenho vontade, quando os vejo passar zabumbando, chocalhando, berrando, arrastando a apoteose incomensurável do Rumor, de os respeitar, entoando em seu louvor a “prosódia” clássica com as frases de Píndaro: salve grupos floridos, ramos floridos da vida...

Parei a uma porta, estendo as mãos.

- É a loucura, não tem dúvida, é a loucura. Pois é possível louvar o agente embrutecedor das cefalalgias e do horror?

- Eu adoro o horror. É a única feição verdadeira da Humanidade. E por isso adoro os cordões, a vida paroxismada, todos os sentimentos tendidos, todas as cóleras a rebentar, todas as ternuras ávidas de torturas... Achas tu que haveria carnaval se não houvesse os cordões? Achas tu que bastariam os préstitos idiotas de meia dúzia de senhores que se julgam engraçadíssimos ou esse pesadelo dos três dias gordos intitulado máscaras de espírito? Mas o Carnaval teria desaparecido, seria hoje menos que a festa da Glória ou o “bumba-meu-boi” se não fosse o entusiasmo dos grupos da Gamboa, do Saco, da Saúde, de São Diogo, da Cidade Nova, esse entusiasmo ardente, que meses antes dos três dias vem queimando como pequenas fogueiras crepitantes para acabar no formidável e total incêndio que envolve e estorce a cidade inteira. Há em todas as sociedades, em todos os meios, em todos os prazeres, um núcleo dos mais persistentes, que através do tempo guarda a chama pura do entusiasmo. Os outros são mariposas, aumentam as sombras, fazem os efeitos.

Os cordões são o núcleo irredutível da folia carioca, brotam como um fulgor mais vivo e são antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma encantadora e bárbara do Rio.

[...]

João do Rio, trecho de “Cordões”, em A Alma Encantadora das Ruas, Companhia de Bolso.

O PRÉ-CARNAVAL
LIMA BARRETO

Entrou o ano, entrou o carnaval; e acontece isto por esse Brasil em fora. O carnaval é hoje a festa mais estúpida do Brasil. Nunca se amontoaram tantos fatos para fazê-la assim. Nem no tempo do entrudo, ela podia ser tão idiota como é hoje. O que se canta e o que se faz, são o supra-sumo da mais profunda miséria mental.

“Blocos”, “ranchos”, grupos, cordões, disputam-se em indigência intelectual e entram na folia sem nenhum frescor musical. São guinchos de símios e coaxar de rãs, acompanhados de uma barulheira de instrumentos chineses e africanos.

Na noite de 31 último, houve, como sempre, um carnaval preliminar que anuncia com muita precedência o que será o carnaval grande, na época própria. Isso aqui, em Niterói, em Belo Horizonte, em Cuiabá, etc., etc.

Os ranchos, os blocos, os grupos e os cordões saem de suas furnas e vêm para o centro da cidade estertorar cousas infames a que chamam “marchas”. Os jornais estão a postos e até põem redatores de sobressalente, para registrar nomes de diretores e outros dados importantes do bloco, do rancho, do grupo e do cordão que possam interessar os seus leitores. Um nome sair no jornal que é, em geral, cousa difícil, nesses dias é fácil. Basta que o seja do “caboclo” do cordão “Flor de Jurumbeba”.

A versalhada é publicada; e que versalhada, Santo Deus! Pior que a dos loucos dos hospícios.

Vejam esta só:

ESTRELA DE OURO
Estrela, ô minha estrela!
Estrela minha guia!
Azul, encarnado e amarelo
Que aqui na terra brilha.

Fresca estrela que brilha na terra e é azul, “encarnado” e “amarelo”!

O Aldo carnavalesco vai nos explicar a história. Ei-la:

Eu vi estar três cores
Num paraíso de flores
Por elas meu bem
Eu vivo tão cheio de amores
Vem... Dolores.

Essa versalhada é de Niterói; e, se na minha cidade se canta isso em público, tudo leva crer que lá não há polícia de costumes. Só o final...

Mas outros carnavalescos entusiastas formaram um “bloco”, denominaram-no do “Nó” e vêm mostrar aos jornais o seu saber poético. Logo na primeira estrofe do seu hino, que chamam “marcha”, denunciam que são candidatos ao primeiro prêmio de reclusão mental que em geral todos eles disputam. Leiam com cuidado esta belezinha:

Seu Fulgêncio coronel.
Eis aí o Bloco do Nó
Sempre firme no papel
De trazer alegria e só
Mas a granel.

É longa a tal marcha, por isso não a transcrevo toda aqui. Quando acabei de lê-la, tive vontade de correr à casa do autor dela e perguntar-lhe, como aquela leitura a que Mark Twain alude, no “Como me fiz redator de um jornal de agricultura”; tive vontade de correr à casa do autor da marcha, como ia dizendo, e perguntar-lhe uma, duas, três, quatro, dez, cem vezes: foi o senhor mesmo quem escreveu isto?

Não o faço, porém, porque temo que o sujeito fique indignado, imaginando que o tenho por plagiário e até me sove à vontade.

Julgo-o capaz disso, porque além de carnavalesco, é do football também.

Enfim, a leitura dessa pasmosa literatura carnavalesca só nos pode levar a uma conclusão; é que a mentalidade nacional se enfraquece e o próprio gosto popular se oblitera, em querer perder a sua espontaneidade e simplicidade.

Seja tudo pelo amor de Deus!

Careta, 14 de janeiro de 1922

Lima Barreto em Melhores Crônicas, seleção e prefácio de Beatriz Resende, Global Editora.

PATAVINA’S TEU CENÁRIO É UMA BELEZA















ECOS DO CARNAVAL
MANUEL BANDEIRA

Antigamente, era na rua do Ouvidor que pulsava com mais força a vida desta heróica cidade. “Grande artéria”, chamavam-lhe os literatos e jornalistas, inclusive Coelho Neto. Era, de certa maneira, uma imagem inexata, porque na artéria está o sangue de passagem. Ora, não se passava pela rua do Ouvidor: ia-se para a rua do Ouvidor. Ali se parava, se namorava, se conspirava. Ali se situavam as redações dos grandes jornais, as lojas mais elegantes, os cafés e confeitarias mais frequentados. Ali é que chegavam ao clímax os acontecimentos mais notáveis da consagração pública. Quando em 1880, Carlos Gomes voltou glorioso da Itália, foi na rua do Ouvidor que recebeu a apoteose máxima. O mesmo sucedeu com o segundo Rio Branco ao regressar da Europa para ser Ministro das Relações Exteriores. Nos três dias de Carnaval, então, a rua do Ouvidor ficava de não se poder meter um alfinete: a afluência de povo transbordava dali para as travessas, e a festa culminava com a passagem dos préstitos rua acima.

Pois bem, este ano, terça-feira gorda, por volta das três da tarde, desci de um lotação na avenida e subi a rua do Ouvidor até a rua Primeiro de Março. Estava deserta! Em certo trecho mesmo, entre Quitanda e Carmo, eu era o único transeunte! Senti-me um pouco como fantasma. Por sinal que me pareceu bom, só que um pouco melancólico, ser fantasma.

* * *

Situação privilegiada a que desfrutamos, os moradores da avenida Beira-mar, do Obelisco até o Aeroporto: estamos no coração da cidade e somos, no entanto, paradoxalmente marginais. O Carnaval das ruas está morrendo: já cabe todo na avenida e nem sequer a toma inteira. Dela para o mar é o deserto e o silêncio.

* * *

Naturalmente, me lembrei muito de Irene – Irene preta, Irene boa e sempre de bom humor. Passava ela o ano inteiro juntando dinheiro para gastar no Carnaval. Também, graças a ela, o boqueirão da Travessa do Cassiano brilhava nos três dias. Quarta-feira de Cinzas, às oito da manhã, estava à minha porta para o serviço. Era uma preta gorda, feira e tinha não sei que doença que lhe comia a beirada das orelhas, onde havia sempre um pozinho branco. A especialidade de Irene era a limpeza dos metais. Nas mãos dela o cobre virava ouro; todo metal branco, prata. Se as almas envolvessem os corpos, Irene não seria preta, não: seria da cor dos cobres que ela areava. Irene boa!

Manuel Bandeira em Melhores Crônicas, seleção e prefácio de Eduardo Coelho, Global Editora.

A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE
ANÍBAL MACHADO

Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da Central?
Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na praça, à frente do seu cordão.
Se o negro soubesse que luz sinistra estão destilando seus olhos e deixando escapar como as primeiras fumaças pelas frestas de uma casa onde o incêndio apenas começou!...
Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, porque, em tudo mais, o preto se conserva misterioso, fechado em sua própria pele, como uma caixa de ébano.
Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço, convidando-o? Era a rapariga do momento, devia tê-la seguido... Ah, negro, não deixes a alegria morrer... É a imagem da outra que não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. Afinal, a outra não lhe pertence ainda, pertence ao seu cordão; não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe dera todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: aquele corpo já lhe foi prometido, será dele mais tarde...
Andar na praça assim, todos desconfiam... Quanto mais agora, que estão tocando o seu samba... Está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música, na obsessão de que a amada pode ser de outrem, se abraçar com outro... O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores... Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que fica maravilhosa, "rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. E nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
O negro fica triste.
E está até amedrontado com as ameaças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca.
A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las, eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse, começaria o Carnaval. O grito dos clarins lhe produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga, de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá ponto no Brasil em que, por esta noite sem fim, haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casas, as pontes, as árvores, os postes parecem tremer e dançar em conivência com as criaturas, e a convite de um Deus obscuro que convocou a todos pela voz desse clarim de fim do mundo?...
A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala. O povo dá passagem aos blocos que abrem esteiras na multidão, entre apertos e gritos.
- Isso não é assim à beça, Jerônimo! Cuidado com essa aí! É virgem...
Rompem novos cantos. Os "Destemidos de Quintino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das portas-estandartes.
Não se vê o corpo delas, vê-se-lhes o ritmo dos passos no pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
- Oh, aquela lá, que colosso!... É pena não poder vê-la; mas é mulata, te garanto...
- Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!... Dezoito anos com certeza... Coxas firmes... Meio maluca...
- A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza... Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela...
- Pelo frenesi, a gente conhece logo.
Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam, paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam...
- Imagino como estão tremelicando os seios daquela, lá longe; aquela diaba deve estar suando... Eta gostosura de raça!
- Cala a boca, Jerônimo... Você acaba apanhando...
Os cordões se entrecruzam, baralham-se os cantos. Vem crescendo agora um baticum medonho de tambores. Um bloco formidável se anuncia. O negro amoroso interpreta os sinais semafóricos do estandarte que está entrando pelo lado da Praça da República. O negro fura a massa, coloca a sua figura enorme em situação de poder ficar bem perto. Apura o ouvido para saber se é o canto do seu cordão. A barulheira é grande. Algumas notas são do hino... Sente um arrepio. Ela virá com aquele vestido? Se entristece mais, à medida que a mulata se vem aproximando numa onda de glória, entre alas do povo.
Se quiser agora sair daquele lugar, já não poderá mais, se sente pregado ali. O gemido cavernoso de uma cuíca próxima ressoa-lhe fundo no coração. - Cuíca de mau agouro, vai roncar no inferno... Será ela, meu Deus!...
O negro está tremendo. Mas não pode ser ela. Rosinha, quando aparece, ninguém resiste, é um alvoroço, uma admiração geral... Não vê que é assim... Até o ar fica diferente. E o estandarte que vem vindo é de veludo azul, tem a imagem de São Miguel entre estrelas e as insígnias do cordão. Ainda não é o bloco de Madureira.
O preto se enganou. Sente-se desoprimido. Foi melhor assim. Pensa em ir embora, desistir de tudo. No dia seguinte, na oficina do Engenho de Dentro, se sentirá leve ouvindo o batido das bigornas e o farfalhar das polias. Se os companheiros perguntarem por que não apareceu, dirá que esteve doente, que foi ao enterro de algum parente, de uma tia, por exemplo. Está mesmo disposto a voltar para casa. Que o tomem por decadente, se quiserem...
Se Rosinha desobedecer e vier à Praça, não faz mal. Está também disposto a não se importar... Nem indagará se ela fez sucesso, se alguém mais se apaixonou por ela, se o Geraldo continuou com aquelas atenções, aquele safado. Amanhã, no trabalho, recomeçará a vida, será livre novamente. Rosinha que venha procurá-lo depois. Ele é homem e é forte. O que vale no homem é a vontade. Além disso, uma noite corre depressa. Enfiará a cabeça debaixo do travesseiro e a desgraça passará. Apelará para o sono. Já está até com vontade de dormir. Entretanto, não seria mal que caísse uma tempestade. Ao menos assim, Rosinha deixaria de vir à frente do cordão... Oh! como gostaria, como estava torcendo por um temporal que estragasse o vestido dela! Daqueles que inundam tudo, derrubam as casas, param os bondes e trazem uma desmoralização geral. No fundo está até com ódio do Carnaval...
Perto, estão tocando um samba de fazer dançar as pedras. Todos se mexem. Só quem está imóvel é ele, sob o peso de uma dor enorme. As mulatas passam rente, cheias de dengue; sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa. Se sente mesmo envergonhado de estar tão diferente. Nunca foi assim. No futebol, no trabalho, nas greves, nas festas, era sempre o mais animado. Foi de certo tempo para cá que uma coisa profunda e estranha começou a bulir e crescer dentro de seu peito, uma influência má que parecia nascer, que absurdo!, do corpo de Rosinha, como se esta tivesse alguma culpa. Rosinha não tem culpa. Que culpa tem sua namorada? - essa é que é a verdade.
E está sofrendo, o preto. Os felizes estão se divertindo. Era preferível ser como os outros, qualquer dos outros a quem a morena poderá pertencer ainda, do que ser alguém como ele, de quem ela pode escapar. Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira e sente uma raiva surda do Geraldão, o safado. Era este, pelos seus cálculos, quem estaria mais próximo de arrebatar-lhe a noiva. O outro era o Armandinho, mas esse era direito; seu amigo, de fato, incapaz de traí-lo. Sentiu um reconhecimento inexplicável pelo Armandinho.
Suas pernas o vão levando agora sem direção. Não se acha a caminho de casa, nem se sente completamente na Praça. Alguns trechos de sambas e marchas chegam aos ouvidos, pousam-lhe na alma:
O nosso amor
Foi uma chama...
Agora é cinza,
Tudo acabado
Nada mais...
Tudo acabado, tudo tristeza, caramba!... Cabrochas que fogem, leitos vazios, desgraças. Nunca viu tanta dor de corno. Não nasceu para isso, nem tem vocação para sofrer. Os sambas o incomodam. Por que não está dançando como os outros?
O negro está hesitante. As horas caminham e o bloco de Madureira é capaz de não vir mais. Os turistas ingleses contemplam o espetáculo a distância, e combinam o medo com a curiosidade. A inglesa recomenda de vez em quando: - "Não chegue muito perto, minha filha, que eles avançam..." - A mocinha loura pergunta então ao secretário da Legação se há perigo: - "Mas eles são ferozes?" - "Não, senhorita, pode aproximar-se à vontade, os negros são mansos." - A baiana dos acarajés se ofendeu e resmunga desaforos: - "Nóis é que temo medo de vancês, seu cara de não se que diga; nóis não é bicho, é gente!..."
Passa rente aos olhos da miss um torso magnífico de ébano. Ela se perturba, fica excitada, segreda aos ouvidos do secretário, tremendo na voz: - "Eu tinha vontade de dançar com um... posso?" - "You are crazy, Amy!..." exclama-lhe a velha, escandalizada. Mas os turistas agora se assustam. No fundo da Praça, uma correria e começo de pânico. Ouvem-se apitos. As portas de aço descem com fragor. As canções das Escolas de Samba prosseguem mais vivas, sinfonizando o espaço poeirento. A inglesa velha está afobada, puxa a família, entra por uma porta semicerrada.
- Mataram uma moça!
A notícia, que viera da esquina da Rua Santana, circulou depois em torno da Escola Benjamin Constant, corria agora por todos os lados alarmando as mães.
- Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares. - Mataram, sim, mataram uma moça!...
- Que maldade matarem uma moça assim, num dia de alegria! Será possível?...
- Mas mataram, sim senhora, garanto que mataram!...
- Como é o tipo dela? O senhor viu?
- Me disseram que é morena, de uns dezenove anos, por aí...
- Morena? Dezenove anos!... Ai, meu Deus! É capaz de ser a minha filha!... Diga depressa como é o tipo do rosto dela...
Outra senhora cheia de pressentimentos se aproxima do informante:
- O homem que estava com ela era preto, era? Estava de branco?... E tinha uma cicatriz? Ai! se tinha, não me diga mais nada... não me diga mais nada! Meu Deus, mataram minha filha!... Nenucha! Nenucha! Cadê Nenucha?...
As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada. Rompem a multidão, varam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os namorados prometem sempre matá-las.
A animação da Praça é atravessada agora pelo grito das mães aflitas. A mãe de Nenucha, porém, a primeira desgrenhada que se levantou, já está de volta ao seu lugar. Voltou porque cruzara com uma que se rasgava toda em imprecações: - "Laurinha, eu bem te disse que não viesses, o malvado jurou que te matava. Virgem Mãe, mataram minha filha... Eu sei... Eu nem quero ver." A mãe de Nenucha transfere o seu desespero para a mãe de Laurinha e se acalma. Mas apareceu uma gorda a dizer por sua vez à mãe de Laurinha que a morta era outra, uma pequena de Bangu, operária de fábrica. A fera tinha sido presa.
Distante do tumulto mortífero, as outras mães que já haviam arrecadado as filhas seguram-nas bem, ao abrigo dos noivos fatais. Eram as que escaparam de morrer, as que tinham sido salvas. - "Mariazinha, que susto tua mãe passou! Não vai lá mais não, ouviu? É melhor irmos embora, teu namorado está rondando..."
Outras mães, cheias de maus presságios, partem ainda à procura das filhas.
Uma senhora que recebia corte de um português debaixo do coreto, ao ouvir a notícia, larga-se aos berros, ainda toda embrulhada em serpentinas, à procura de sua Odete. Era Odete, com certeza...
Nem tinha dúvidas... Dava encontros, punha a mão na cabeça, corria. O povo achava graça imaginando fosse alguma farsante bêbeda. Odete já devia estar numa poça de sangue, esvaindo-se. Foi o namorado! Nunca tirava os olhos dos seios dela, aquele monstro... Dizia sempre que ela havia se ser sua. E tinha uma cara malvada, o diabo do homem... Coitadinha de sua Odete... Aqueles seios!... Bem não queria, oh! que fossem tão grandes. Odete também não queria, já estava amedrontada. A mãe corria e soluçava perguntando a todos onde se achava a filha morta. Era Odete, sim, tinha quase certeza! Caminhava como uma sonâmbula. Falava sozinha, soltando lamentações. Onde é que Odete estaria caída? E não tirava do pensamento que a desgraça foi por causa dos seios da mocinha... Quem não estava vendo? Ela mesma, como mãe, reconhecia que aqueles seios chamavam demais a atenção. Tinha o pressentimento de que aquilo acabava mal. Até os passageiros dos bondes cheios se viravam para apreciá-los, quando Odete parava na calçada. Odete, a princípio, coitada, tão inexperiente, se sentia faceira com eles... Depois, cresceram mais do que se esperava, e ela própria teve medo. Já produziam escândalo... Fora o demônio que tomara conta daquela parte do corpo de sua filha. Ultimamente, era um desespero: a pobrezinha mal podia atravessar a rua, sentia-se perseguida pelos homens. E não eram dois nem três que olhavam, não: da porta dos cafés, de dentro dos armarinhos, das sacadas, de todos os lados, todos queriam espiar, ficavam olhando... Ela passava depressa, envergonhada. Porque sempre foi muito seriazinha, a sua Odete... Que gente mal-educada... Deus nos livre dos homens. Que adiantou o soutien de arrocho?... Foi pior. "Ah, meu Deus, haverá mãe que possa dormir tranquila vendo os seios da filha crescerem assim dessa maneira?..." Quando Odete caminhava é que eles adquiriam a sua plenitude de vida e mistério. Daí o fato de todo mundo, quando pensa em Odete, pensar logo nos seios dela, que sempre apareciam primeiro e na frente, como a proa dos navios...
A mulher tremia e soluçava. Ah! Odete não tem culpa. Foram os seios, foram... Tanto desejava levá-la para longe desses brutos.
Agora, lá vai como louca, à procura do corpo da filha.
Caminha e vê crescendo uma rosa vermelha bem em cima do seio esquerdo de sua Odete. Dá um grito, cai sem sentidos. Dois pretos carregam-na para um bar. Já outras mães vinham de volta, trazendo as respectivas filhas bem seguras nas mãos. Deram-lhe éter a cheirar, abanaram-na. Quando voltou a si, parecia ter saído de um banho de resignação. Calma. Como se tivesse se conformado com tudo o que acontecera.
Começa então a declamar a história da filha com o criminoso: conheceram-se num banho à fantasia, na praia de Ramos; ele parecia distinto a princípio, tinha emprego, dava presentes. Depois... o malvado começou a ameaçar a pobrezinha, a fazer-lhe exigências. Não queria que fosse aos bailes, que usasse blusa de malha. Dizia que ela remexia demais as cadeiras quando caminhava. Proibiu-lhe trazer flor na cabeça, conversar com os amiguinhos.
- Mas a senhora tem certeza de que foi sua filha? interrompeu um mascarado.
- Se já estou vendo o cadáver!... Ah, meu Deus, que dor!! Não! Não! Eu quero é contar a história dela. Isso me consola...
Fez uma pausa. Recomeçou depois, mais patética:
- Ainda nem tinha dezoito anos. Uma menina... Bordava que era um gosto. Todos apreciavam ela... Me ajudava tanto.
Um sujeito, vestido de Hailé Selassié, escutava comovido. Pouco a pouco, a pobre senhora foi percebendo que estava sendo cercada de cavalos, bois e porcos prestimosos, além de um Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus serviços. Essa fauna grotesca afigurava-se-lhe como aparições do reino do horror. Eles compreenderam, tiraram as máscaras. De dentro das máscaras surgiram fisionomias cheias de compaixão, que se voltavam para ela, querendo consolá-la. Alguém disse que a vítima era outra, uma mulata de Madureira, porta-estandarte de um cordão. A mulher não acreditava. Era inútil iludi-la.
Lá fora, um coro de vozes perguntava ainda, insistentemente, por certa Maria Rosa:
Cadê Maria Rosa
Tipo acabado de mulher fatal?
E anunciava que ela tinha como sinal
Uma cicatriz,
Dois olhos muito grandes,
Uma boca e um nariz.
A mulata tinha uma rosa no pixaim da cabeça. Um mascarado tirou a mantinha da companheira, dobrou-a, e fez um travesseiro para a morta. Mas o policial disse que não tocassem nela. Os olhos não estavam bem fechados. Pediram silêncio, como se fosse possível impor silêncio àquela Praça barulhenta. A última das mães aflitas chega atrasada, atravessa o cerco, espia bem o cadáver, solta um grito de alegria:
- Ah, eu pensava que fosse a Raimunda! Graças a Deus que não foi com minha filha! Escapaste Raimunda!
Saiu satisfeita. Alguns malandros, de cavaquinhos nas mãos, foram se afastando, meio desajeitados. Um deles dava opinião:
- Dor eu não topo, franqueza... Sou contra o sofrimento..
Tentaram pedir silêncio novamente. Uma rapariga comentava, enxugando as lágrimas:
- Só se você visse Bentinha, quanto mais a faca enterrava, mais a mulher sorria... Morrer assim nunca se viu...
O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio do povo. Ficaram todos estarrecidos de espanto vendo Rosinha fechar os olhos. O preto ajoelhado bebia-lhe mudamente o último sorriso, e inclinava a cabeça de um lado para outro como se estivesse contemplando uma criança. Uma Escola de Samba repontava no Mangue. Ainda se ouviam aclamações à turma da Mangueira. Quando o canto foi se aproximando, a mulata parecia que ia levantar-se.
E estava sorrindo como se fosse viva, como se estivesse ouvindo as palavras que o assassino agora lhe sussurra baixinho aos ouvidos.
O negro não tira os olhos da vítima. Ela parecia sorrir; os curiosos é que queriam chorar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. Nunca se viu defunto tão vivo. Estavam esperando esse milagre. Ouvia-se uma canção que parece ter falado ao criminoso:
Quem quebrou meu violão de estimação?
Foi ela...
Ainda apareceram algumas mães retardatárias rondando de longe a morta.
A morta não tinha mãe nem parentes, só tinha o próprio assassino para chorá-la. É ele quem lhe acaricia os cabelos, lhe faz uma confidência demorada, a chama pelo nome:
- Está na hora, Rosinha... Levanta, meu bem... É o "Lira do Amor" que vem chegando... Rosinha, você não me atende! Agora não é hora de dormir... Depressa, que nós estamos perdendo... O que é que foi? Você caiu? Como foi?... Fui eu? Eu?... Eu, não! Rosinha...
Ele dobra os joelhos para beijá-la. Os que não queriam se comover foram se retirando. O assassino já não sabe bem onde está. Vai sendo levado agora para um destino que lhe é indiferente. É ainda a voz da mesma canção que fala alguma coisa ao desespero:
Quem fez do meu coração seu barracão?
Foi ela...
Que ninguém o incomode agora. Larguem os seus braços. Rosinha está dormindo... Não acordem Rosinha. Não é preciso segurá-lo, que ele não está bêbedo... O céu baixou, se abriu... Esse temporal assim é bom, porque Rosinha não sai. Tenham paciência... Largar Rosinha ali, ele não larga não... Não! E esses tambores? Ui! que ventania... É guerra... ele vai se espalhar... Por que estão malhando em sua cabeça?... Na bigorna do Engenho de Dentro é assim... Se afastem que ele está lutando por ela... Ele é bamba... Não se massacra um operário dessa maneira... Estão atrapalhando o seu caminho para Rosinha... Se apitam assim, acordam ela... Ela já não está presente... Deslizando no éter... Deixem ele passar... Os outros fiquem no chão... Fiquem por aí... Ele vai tirar Rosinha da cama... Ela está dormindo, Rosinha... Fugir com ela, para o fundo do país... Abraçá-la no alto de uma colina...

Aníbal Machado em A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histórias, Editora José Olympio.

BATALHA NO LARGO DO MACHADO
RUBEM BRAGA

Como vos apertai, operários em construção civil, empregados em padarias, engraxates, jornaleiros, lavadeiras, cozinheiras, mulatas, pretas, caboclas, massa torpe e enorme, como vos apertais! E como a vossa marcação é dura e triste! E sobre essa marcação dura a voz do samba se alastra rasgada.

“Implorar
Só a Deus
Mesmo assim às vezes não sou atendido.
Eu amei...”

É um profundo samba orfeônico para as massas. As amplas massas imploram. As implorações não serão atendidas. As amplas massas amaram. As amplas massas hoje estão arrependidas. Mas amanhã outra vez as amplas massas amarão... As amplas massas agora batucam... Tudo avança batucando. O batuque é uniforme. Porém dentro dele há variações bruscas, sapateios duros, reviramentos tortos de corpos no apertado. Tudo contribui para a riqueza interior e intensa do batuque, Uma jovem mulata gorducha pintou-se bigodes com rolha queimada. Como as vozes se abrem espremidas e desiguais, rachadas, ritmadas, e rebentam, machos e fêmeas, muito para cima dos fios elétricos, perante os bondes paralisados, chorando, altas, desesperadas!

Como essas estragadas vozes mulatas estalam e se arrastam no ar, se partem dentro das gargantas vermelhas. Os tambores surdos fazem o mundo tremer em uma cadência negra, absoluta. E no fundo a cuíca geme e ronca, nos puxões da mão negra. As negras estão absolutas com seus corpos no batuque. Vede que vasto crioulo que tem um paletó que já foi dólmã de soldado do Exército Nacional, tem gorro vermelho, calça de casimira arregaçada, para cima do joelho, botinas sem meia, e um guarda-chuva preto rasgado, a boca berrando, o suor suando. Como são desgraçados e puros, e aquela negra de papelotes azuis canta como se fosse morrer. Os ranchos se chocam, berrando, se rebentam, se misturam, se formam em torno do surdo de barril, à base de cuícas, tamborins e pandeiros que batem e tremem eternamente. Mas cada rancho é um íntegro, apenas os cordões se dissolvem e se reformam sem cessar, e os blocos se bloqueiam.

Meninas mulatas e mulatinhas impúberes e púberes, e moças mulatas e mulatas maduras, e maduronas, e estragadas mulatas gordas. Morram as raças puras, morríssimam elas! Vede tais olhos ingênuos, tais bocas de largos beiços puros, tais corpos de bronze que é brasa, e testas, e braços, e pernas escuras, que mil escalas de mulatas! Vozes de mulatas, cantai, condenadas, implorai, implorai, só a Deus, nem a Deus, à noite escura arrependidas. Pudesse um grande sol se abrir no céu da noite, mas sem deturpar nem iluminar a noite, apenas se iluminando, e ardendo, como uma grande estrela do tamanho de três luas pegando fogo, cuspindo fogo, no meio da noite! Pudesse esse astro terrível chispar, mulatas, sobre vossas cabeças que batucam no batuque.

O apito comanda, e no meio do cordão vai um senhor magro, pobre, louro, que leva no colo uma criança que berra, e ele canta também com uma voz que ninguém pode ouvir. As caboclas de cabelo pesado na testa suada, com os corpos de seios grandes e duros, caboclos, marcando o batuque. Os negros e mulatos inumeráveis, de macacão, de camisas de seda de mulher, de capa de gabardine apenas, chapéus de palha, cartolas, caras com vermelhão. Batucam!

Vai se formar uma briga feia, mas o cordão berrando o samba corta a briga, o homem fantasiado de cavalo dá um coice no soldado, e o cordão empurra e ensurdece os briguentos, e tudo roda dentro do samba. Olha a clarineta quebrada, o cavaquinho oprimido, o violão que ficou surdo e mudo, e que acabou rebentando as cordas sem se fazer ouvir pelo povo e se mudando em caixa, o pau batendo no pau, o chocalho na lata, o tambor marcando, o apito comandando, os estandartes dançando, o bodum pesando.

Mas que coisa alegre de repente, nesses sons pesados e negros, uma sanfoninha cujos sons tremem vivos, nas mãos de um moleque que possui um olho furado. Juro que iam dois aleijados de pernas de pau no meio do bloco, batendo no asfalto as pernas de pau.

Com que forças e suores e palavrões de barqueiros do Volga esses homens imundos esticam a corda defendendo o território sagrado e móvel do povo glorioso da escola de samba da Praia Funda! No espaço conquistado as mulatas vestidas de papel verde e amarelo, barretes brancos, berram prazenteiras e graves, segurando arcos triunfais individuais de flores vermelhas. Que massa de meninos no rabo do cortejo, meninos de oito anos, nove, dez, que jamais perdem a cadência, concebidos e gerados e crescidos no batuque, que batucarão até morrer!

De repente o lugar em que estais enche demais, o suor negro e o soluço preto inundam o mundo, as caras passam na vossa cara, os braços dos que batucam espremem vossos braços, as gargantas que cantam exigem de vossa garganta o canto da igualdade, liberdade, fraternidade. De repente em redor o asfalto se esvazia e os sambas se afastam em torno, e vedes o chão molhado, e ficais tristes, e tendes vontade de chorar de desespero.

Mas outra vez, não para nunca, a massa envolve tudo. Pequenos cordões que cantam marchinhas esgoeladas correm empurrando, varando a massa densa e ardente, e no coreto os clarins da banda militar estalam. Febrônio fugiu do Manicômio no chuvoso dia de sexta-feira, 8 de fevereiro de 1935... Foi preso no dia 9 à tarde. Neste dia de domingo, 10 de fevereiro, pela manhã, o Diário de Notícias publica na primeira página da segunda seção:

“A sensacional fuga de Febrônio, do Manicômio Judiciário, onde se achava recolhido, desde 1927, constituiu um verdadeiro pavor para a população carioca. A sua prisão, ocorrida na tarde de ontem, veio trazer a tranquilidade ao espírito de todos, inclusive ao das autoridades que o procuravam.”

Que repórter alarmado! Injuriou, meus senhores, o povo e as autoridades. Encostai-vos nas paredes, população! Mas eis que na noite do dia chuvoso de domingo, 10 de fevereiro, ouvimos:

“Bicho Papão
Bicho Papão
Cuidado com o Febrônio
Que fugiu da Detenção...”

Isso ouvimos no Largo do Machado, e eis que o nosso amigo Miguel, que preferiu ir batucar em Dona Zulmira, lá também ouviu, naquele canto glorioso de Andaraí, a mesma coisa. Como se esparrama pelas massas da cidade esparramada essa improvisação de um dia? As patas inumeráveis batem no asfalto com desespero. O asfalto porventura não é vosso eito, escravos urbanos e suburbanos?

A cuíca ronca, ronca, ronca, estomacal, horrível, é um ronco que é um soluço, e eu também soluço e canto e vós também fortemente cantais bem desentoados com este mundo. A cuíca ronca no fundo da massa escura, dos agarramentos suados, do batuque pesadão, do bodum. O asfalto está molhado nesta noite de chuvoso domingo. Ameaça chuva, um trovão troveja. A cuíca de São Pedro também está roncando. O céu também sente fome, também ronca e soluça e sua de amargura?

Nesta mormacenta segunda-feira, 11 de fevereiro, um jornal diz que “a batalha de confete do Largo do Machado esteve brilhantíssima”.

Repórter cretiníssimo, sabei que não houve lá nem um só miserável confete, O povo não gastou nada, exceto gargantas e dores e almas, que não custam dinheiro. Eis que ali houve, e eu vi, uma batalha de roncos e soluços, e ali se prepararam batalhões para o carnaval – nunca, jamais, “a grande festa do Rei Momo” – porém a grande insurreição armada de soluços.

Rio, fevereiro, 1935.

Rubem Braga em O Conde e o Passarinho & Morro do Isolamento, Editora Record.

LUGAR QUENTE É NA CAMA OU ENTÃO NO PATAVINA’S














O VÔO DA ANDORINHA
JORGE AMADO

SENSAÇÃO DE ALÍVIO, DE BEM-ESTAR, O DESEJO ÚNICO E URGENTE de viver, insidiosa euforia, doce loucura: a andorinha liberta batia as asas, pronta para alçar voo e descobrir o mundo: Manela ria à toa.

Na praça em torno à basílica e nas ruas ao sopé da colina, o povo dera início ao Carnaval: mês e meio de pândega e folia, de festa sem parar que ninguém é de ferro para aguentar durante o ano inteiro as agruras da vida, a miséria e a opressão, a desgraça vil e ilimitada. O dom de fazer a festa mesmo em tão calamitosas condições, próprio e exclusivo de nosso povo, é mercê de Senhor do Bonfim e de Oxalá: os dois juntos somam um, o Deus dos brasileiros, nascido na Bahia.

Desfilavam blocos e afoxés, os Filhos de Gandhy faziam a primeira figuração do ano, e a música dos trios elétricos ecoava num horizonte de palafita e lama, na podridão dos Alagados. Capitães de areia atravessavam a multidão mercando fitas do Bonfim medalhas e breves, santinhos coloridos, figas e patuás. Numerosa freguesia de turistas acorria, alvoroçada e turbulenta.

Nos tabuleiros olorosos, os acarajés, os abarás, o peixe frito, os caranguejos, a moqueca de aratu envolta em folha de bananeira, o acaçá de milho. Nas barracas atulhadas, ruidosas, as comidas de coco e de dendê: caruru, vatapá, efó, as diversas frigideiras e as diferentes moquecas, tantas!, galinha de xinxim, arroz de hauçá. A cerveja bem gelada, as batidas, o caldo de lambreta, afrodisíaco incomparável. Os cestos de frutas, suntuosos: manga espada, carlota, coração-de-boi e itiúba, manga-rosa, sapotas, sapotis, cajás, cajaranas, cajus, pitangas, jambos, carambolas, onze classes de banana, talhadas de abacaxi e melancia. Tudo pela hora da morte, contudo as barracas não davam abasto à clientela vasta e voraz – comilança à tripa forra.

Em várias das casas destinadas aos romeiros, alugadas a veranistas para as festas, pequenas orquestras – violão, acordeom, flauta, pandeiro, cavaquinho – animavam assustados familiares. Entre os pares enlaçados, não faltavam casais idosos, velhinhos fazendo concorrência aos jovens, matando as saudades dos bons tempos. A imensa maioria do povo, todavia, dançava ao ar livre, na rua, ao som eletrônico dos trios: frevos e sambas, marchas de Carnaval: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, disse o menestrel. Baile sem tamanho, sem hora de acabar, perene e desmarcado, só vendo pra crer.

Não pararam de brincar, bando álacre de foliões a pular o grito de inauguração do Carnaval na Quinta-Feira do Bonfim: a irmã, a prima, os primos, namorados e namoradas, aderentes, conhecidos e desconhecidos: Manela foi a alma do grupo, ninguém a ganhou em animação. Enferma às portas da morte, no milagre da saúde recuperada, quis usufruir de tudo a que tinha direito. Dançou no asfalto a dança coletiva e brasileira, integrada na festa do povo – do povão como se começava a dizer para designar a parte mais despossuída da população. No embalo da suave melodia do Jazz dos Batutas de Periperi, enlaçada nos braços do galã, esvoaçou no blues de sua vida. Bailara samba, fox, rock, bolero, rumba, twist, inclusive traçara passos de tango argentino – Miro era imprevisível -, de arrasta-pé em arrasta-pé, de bate-coxa em bate-coxa, uma cerveja aqui, uma batida ali, acolá um cálice de licor, a euforia crescendo. Aquilo, sim, era viver.

Jorge Amado em O Sumiço da Santa, “romance baiano”, como o autor chamou, de 1988, publicado pela Companhia das Letras. Passado nos ditatoriais anos 70, o livro conta o sumiço de uma imagem de Santa Bárbara e as 48 horas de busca por ela, num grande painel de muitas historias entrelaçadas.


ANTES DO BAILE VERDE
LYGIA FAGUNDES TELLES

O Rancho Azul e Branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís XV e sua porta-estandarte de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro do bumbo fez uma profunda reverência diante das duas mulheres, debruçadas na janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo flutuar a capa encharcada de suor.

– Ele gostou de você – disse a jovem, voltando-se para a mulher que ainda aplaudia. – O cumprimento foi na sua direção, viu que chique?
A preta deu uma risadinha.
– Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele começa a encher a caveira e pronto, não sai mais nada.
A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto estava revolvido como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e gavetas.
– Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo... Tenha paciência, mas você vai me ajudar um pouquinho.
– Mas você ainda não acabou?
Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas também verdes.
– Acabei o que, falta pregar tudo isso ainda, olha aí... Fui inventar um raio de pierrete dificílima!
A preta aproximou-se, alisando com as mãos o quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha trazia um crisântemo de papel-crepom vermelho. Sentou-se ao lado da moça.
– O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.
– Tem tempo, sossega – atalhou a jovem. Afastou os cabelos que lhe caíam nos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. – Não sei como fui me atrasar desse jeito.
– Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!
– E quem está dizendo que você vai perder?
A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-se de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e delicadamente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com pequenos movimentos circulares.
– Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote...
– Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a coisa pela metade, vê se entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?... Que tal?
A mulher sorriu.
– Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde, você está parecendo uma alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito.
Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mão na face afogueada.
– Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias têm que ser verdes, tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais da metade, Lu!
– Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos.
– Não faz mal – disse a jovem, limpando no lençol o excesso de cola que lhe escorreu pelo dedo. – Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai reparar, vai ter gente à beça. O que está me endoidando é este calor, não aguento mais, tenho a impressão de que estou me derretendo, você não sente? Calor bárbaro!
A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou o tom de voz.
– Estive lá.
– E daí?
– Ele está morrendo.
Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-se a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa frigideira: A coroa do rei não é de ouro nem de prata...
– Parece que estou num forno – gemeu a jovem, dilatando as narinas porejadas de suor.
– Se soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve.
– Mais leve do que isso? Você está quase nua, Tatisa. Eu ia com a minha havaiana, mas só porque aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica. Imagine você então...
Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda da meia. Deixou-a cair na pequena constelação que ia armando na barra do saiote e ficou raspando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe caíra no joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum. Falou num tom sombrio:
– Você acha, Lu?
– Acha o quê?
– Que ele está morrendo?
– Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite.
– Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante.
– Radiante? – espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. – E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo.
– Mas quando fui lá ele estava dormindo tal calmo, Lu.
– Aquilo não é sono. É outra coisa.
Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi até a mesa, pegou a garrafa de uísque e procurou um copo em meio da desordem dos frascos e caixas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Soprou o fundo cheio de pó-de-arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de boca aberta. Dirigiu-se à preta.
– Quer?
– Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia.
A jovem despejou mais uísque no copo.
– Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhos não borrou... Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver.
– Você está bebendo demais. E nessa correria... Também não sei por que essa invenção de saiote bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o pior é que não posso caprichar, com o pensamento no Raimundo lá na esquina...
– Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse cara não pode esperar um pouco?
A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco que passava já longínquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando... acabou chorando...
– No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti à grande. Meu sapato até desmanchou de tanto que dancei.
– E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar.
– E seu pai?
Lentamente a jovem foi limpando no lenço as pontas dos dedos esbranquiçados de cola. Tomou um gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no pote.
– Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? – Ficou olhando para a ponta do dedo coberto de lantejoulas. Foi deixando no saiote o dedal cintilante. – Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?
– Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender.
– Mas você começa a dizer que ele está morrendo!
– Pois está mesmo.
– Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo daquele jeito.
– Então não está.
A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando água um na cara do outro. Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que passou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altíssimos. “Minha lindura, vem comigo, minha lindura!” – gritou o moleque maior, correndo atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias presas aos elásticos do biquíni.

– Estou transpirando feito um cavalo. Juro que, se não tivesse me pintado, metia-me agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes.
– E eu não agüento mais de sede – resmungou a empregada, arregaçando as mangas do quimono. – Ai! uma cerveja bem geladinha. Gosto mesmo é de cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano passado, ele ficou de porre os três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos, representava um mar. Você precisava ver aquele monte de sereias enroladas em pérolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima, dentro de uma concha abrindo e fechando a rainha do mar coberta de jóias...
– Você já se enganou uma vez – atalhou a jovem. – Ele não pode estar morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem, papai?, perguntei e ele não respondeu, mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse.
– Ele se fez de forte, coitado.
– De forte, como?
– Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar.
– Ih, como é difícil conversar com gente ignorante – explodiu a jovem, atirando no chão as roupas amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calça comprida. – Você pegou meu cigarro?
– Tenho minha marca, não preciso dos seus.
– Escuta, Luzinha, escuta – começou ela, ajeitando a flor na carapinha da mulher. – Eu não estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor, porque uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura...
– Ele estava se despedindo.
– Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você quer que seja hoje. Por que tem que repetir isso, por quê?
– Você mesma pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa.
A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sapato. Agachou-se mais, roçando os cabelos verdes no chão. Levantou-se, olhou em redor. E foi-se ajoelhando devagarinho diante da preta. Apanhou o pote de cola.
– E se você desse um pulo lá só para ver?
– Mas você quer ou não que eu acabe isto? – a mulher gemeu exasperada, abrindo e fechando os dedos ressequidos de cola. – O Raimundo tem ódio de esperar, hoje ainda apanho!
A jovem levantou-se. Fungou, andando rápida num andar de bicho na jaula. Chutou um sapato que encontrou no caminho.
– Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem que disse que não podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta!
– Mas, Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso, até que tenho ajudado muito, sim senhora, como não? Todos esses meses quem é que tem aguentado o tranco? Não me queixo, porque ele é muito bom, coitado. Mas tenha a santa paciência, hoje não! Até que estou fazendo muito aqui plantada quando devia estar na rua.
Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no espelho. Beliscou a cintura.
- Engordei, Lu.
- Você, gorda? Mas você é só osso, menina. Seu namorado não tem onde pegar. Ou tem?
Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se:
- Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que à meia-noite ele vem me buscar. Mandou fazer um pierrô verde.
- Também já me fantasiei de pierrô. Mas faz tempo.
- Vem num Tufão, viu que chique?
- Que é isso?
- É um carro muito bacana, vermelho. Mas não fique aí me olhando, depressa, Lu, você não vê que... – Passou ansiosamente a mão no pescoço. – Lu, Lu, por que ele não ficou no hospital?! Estava tão bem no hospital...
- Hospital de graça é assim mesmo, Tatisa. Eles não podem ficar a vida inteira com um doente que não resolve, tem doente esperando até na calçada.
- Há meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos. Não podia viver mais um dia?
A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distância. Abriu-o de novo no colo e inclinou-se para o pires de lantejoula.
- Falta só um pedaço.
- Um dia mais...
- Vem me ajudar, Tatisa, nós duas pregando vai num instante.
Agora ambas trabalhavam num ritmo acelerado, as mãos indo e vindo do pote de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde pesada de lantejoulas.
- Hoje o Raimundo me mata – recomeçou a mulher, grudando as lantejoulas meio ao acaso. Passou o dorso da mão na testa molhada. Ficou com a mão parada no ar. – Você não ouviu?
A jovem demorou para responder.
- O quê?
- Parece que ouvi um gemido.
Ela baixou o olhar.
- Foi na rua.
Inclinaram as cabeças irmanadas sob a luz amarela do abajur.
- Escuta, Lu, se você pudesse ficar hoje, só hoje – começou ela num tom manso. Apressou-se: - Eu te daria meu vestido branco. Aquele meu branco, sabe qual é? E também os sapatos, estão novos ainda, você sabe que eles estão novos. Você pode sair todos os dias, mas pelo amor de Deus, Lu, fica hoje.
A empregada sorriu, triunfante.
- Custou, Tatisa, custou. Desde o começo eu já estava esperando. Ah, mas hoje nem que me matasse, eu ficava, hoje não. – O crisântemo caiu enquanto ela sacudia a cabeça. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. – Perder esse desfile? Nunca! Já fiz muito – acrescentou, sacudindo o saiote. – Pronto, pode vestir. Está um serviço porco mas ninguém vai reparar.
- Eu podia te dar o casaco azul – murmurou a jovem, limpando os dedos no lençol.
- Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviu isso, Tatisa? Nem com meu pai, hoje não.
Levantando-se de um salto, a moça foi até a garrafa e bebeu de olhos fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote.
- Brrrr! Esse uísque é uma bomba – resmungou, aproximando-se do espelho. – Anda, venha aqui me abotoar, não precisa ficar aí com essa cara. Sua chata.
A mulher tateou os dedos por entre o tule.
- Não acho os colchetes.
A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a cabeça levantada. Olhou para a mulher através do espelho:
- Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem os óculos quando entrou no quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo.
- Pode ser que me enganasse mesmo.
- Claro que se enganou! Ele estava dormindo.
A mulher franziu a testa, enxugando na manga do quimono o suor do queixo. Repetiu como um eco:
- Estava dormindo, sim.
- Depressa, Lu, faz uma hora que está com esses colchetes!
- Pronto – disse a outra, baixinho, enquanto recuava até a porta. – Não precisa mais de mim, não é?
- Espera! – ordenou a moça perfumando-se rapidamente. Retocou os lábios, atirou o pincel ao lado do vidro destapado. – Já estou pronta, vamos descer juntas.
- Tenho que ir, Tatisa!
- Espera, já disse que estou pronta – repetiu baixando a voz. – Só vou pegar a bolsa...
- Você vai deixar a luz acesa?
- Melhor, não? A casa fica mais alegre assim.
No topo da escada ficaram mais juntas. Olharam na mesma direção: a porta estava fechada. Imóveis como se tivessem sido petrificadas na chuva, as duas mulheres ficaram ouvindo o relógio da sala. Foi a preta quem primeiro se moveu. A voz era um sopro:
- Quer ir dar uma espiada, Tatisa?
- Vá você, Lu...
Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pelas têmporas verdes da jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão. O som prolongado de uma buzina foi-se fragmentando lá fora. Subiu poderoso o som do relógio. Brandamente a empregada desprendeu-se da mão da jovem. Foi descendo a escada na ponta dos pés. Abriu a porta da rua.
- Lu! Lu! – a jovem chamou num sobressalto. Continha-se para não gritar. – Espera aí, já vou indo!
E apoiando-se ao corrimão, colada a ele, desceu precipitadamente. Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la.

Lygia Fagundes Telles em Antes do Baile Verde, contos, Companhia das Letras.

RESTOS DO CARNAVAL
CLARICE LISPECTOR

Não, não deste último carnaval. Não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava a minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco a fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que eu jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse, pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – a ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que esta, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Clarice Lispector em Felicidade Clandestina, José Olympio.

MAIS DE MIL PATAVINA’S NO SALÃO
















É CARNAVAL
STANISLAW PONTE PRETA

E então chegava o carnaval, registrando-se grandes comemorações ao Festival de Besteira. Em Goiânia o folião Cândido Teixeira de Lima brincava fantasiado de Papa Paulo VI e provava no salão que não é tão cândido assim, pois aproveitava o mote da marcha Máscara Negra e beijava tudo que era mulher que passasse dando sopa.

Um padre local, por volta da meia-noite, recebeu uma denúncia e foi para o baile, exigindo da Polícia que o Papa de araque fosse preso. Em seguida, declarou: “Brincar o Carnaval já é um pecado grave. Brincar fantasiado de Papa é uma blasfêmia terrível.”

O caso morreu aí e nunca mais se soube o que era mais blasfêmia: um cidadão se fantasiar de Papa ou o piedoso sacerdote encanar o Sumo Pontífice.

E enquanto todos pulavam no salão, o dólar pulava no câmbio. Ah coisas inexplicáveis! Até hoje não se sabe por que foi durante o Carnaval que o Governo aumentou o dólar, fazendo muito rico ficar mais rico. E, porque o Ministro do Planejamento e seus cúmplices, aliás, digo, seus auxiliares, aumentaram o dólar e desvalorizaram o cruzeiro em pleno Carnaval, passaram a ser conhecidos como Acadêmicos do Cruzeiro – numa homenagem também aos salgueirenses que, no Carnaval de 1967, entraram pelo cano.

Stanislaw Ponte Preta em Febeapá 2, Editora Sabiá.

CARNAVAL EM CURITIBA
CRISTÓVÃO TEZZA

É inacreditável, mas já pulei carnaval. Tenho uma foto inverossímil de mim mesmo em Antonina, divertindo-me no glorioso desfile do “Império da Caixa d’água”, que por dois ou três anos foi dirigido por W. Rio Apa e, se não me engano, até premiado no concurso local. A imagem do carnaval de Antonina daqueles anos 70 fixou-se para mim como de uma festa verdadeiramente popular, que envolvia cada morador da cidade. Talvez eu esteja apenas retocando a memória, mas acho que era isso mesmo – uma coisa muito boa.
De volta a Curitiba, o carnaval foi desaparecendo da minha alma, a ponto de hoje eu achar que é uma coisa chatíssima. Vejo aquelas multidões em Recife, em Salvador, no Rio, milhares de pessoas esmagando-se em avenidas na estridência de uma música de batida primária, com o olhar distante de um marciano a admirar a estranheza de um acontecimento que, por certo, está entre os maiores espetáculos da Terra. No caso do Brasil, trata-se de uma festa que nos define internacionalmente como brasileiros, para o bem e para o mal. Aqui o carnaval é um evento muito sério; há uma simbiose cultural fortíssima entre a festa e o que seria a nossa famigerada “identidade”. Nessa imagem, entram fatos e mitos entrelaçados: sensualidade, liberalidade, musicalidade e uma profunda “des-hierarquização” dos poderes, que sempre foi a essência milenar carnavalesca – o mendigo se veste de rei, o rei de mendigo.
O problema é que sou de Curitiba. Acaso não somos também “brasileiros”? Será que não somos patriotas o suficiente? Por que a cidade se esvazia no carnaval? Será puramente um problema geográfico? Porque afinal os curitibanos pulam, e muito, em Caiobá e Guaratuba. Há explicações de todo tipo: quem gosta de fila não pula carnaval, temos horror à transgressão, nossa timidez é mortal, “o que os outros vão dizer”, “esse pessoal precisa de serviço”, “polaco tem cintura dura”, etc. – a lista de desculpas é infinita, mas todas giram em torno do célebre e misterioso temperamento curitibano, a inefável atmosfera da cidade. Lembro que há alguns anos caminhei por uma hora no Parque Barigui em plena terça-feira gorda, o parque cheio de gente, e não encontrei um único signo de carnaval, por mísero que fosse, uma máscara de criança, um balão, um pedaço de serpentina, um confete perdido, um longínquo “mamãe eu quero” vindo pelo ar. Nada. Poderia jurar que estávamos no mês de outubro, na Áustria. Uma paz que achei, aliás, maravilhosa.
Alguém já propôs que, em vez de forçar uma festa que, parece, a cidade não quer, a prefeitura patrocinasse algum evento diferente, para atrair os milhares de brasileiros que por acaso não gostam de carnaval (e são uma legião): um encontro nacional de psicanálise, um festival de música erudita, uma feira de livros, algo assim. O que reforçaria a nossa já famosa originalidade no cenário brasileiro.

Cristóvão Tezza, no jornal Gazeta do Povo, em 24/02/2009.

SEXTA-FEIRA DE CINZAS
MARCELO MOUTINHO

Entre os velhos gordos, travestidos com os vestidos das próprias mulheres, o palhaço errante com a lata de cerveja na mão, a moça que beijava o rapaz de modo tão sôfrego quanto falso, entre as bocas que ali davam o primeiro dos tantos beijos que dariam nos dias que seguiram, entre vendedores de bebidas e salsichões, entre marchinhas desgastadas mas sempre novas e sambas e batuques e tamborins desafinados de tamanha animação, entre a alegria exasperada daquela pequena multidão de pobres-diabos na sacrossanta missão de ser feliz a fórceps, estava eu.

E minha missão, após desistir do sono cedo, após vestir o jeans e a camisa Hering com a frase do Sartre, era apenas mendigar um pouco do que sossobrava sobre o chão cinzento da Cinelândia, a praça tomada por sorrisos, os brancos dos dentes contrastando com as fagulhas esparsas dos paetês, a luz fugidia cintilando nas roupas baratas compradas no Saara, sobre chapéus, máscaras, narizes, brincos, panos, anéis, pessoas em suas dores domadas. Queria as moedas que eles guardavam nos bolsos. Queria o seu ouro.

Pois ali, em frente ao coreto repleto de senhores de terno e gravata segurando como podem seus cachês de uma vez ao ano, eu era apenas um confete temporão, o confete molhado do depois, largado num canto qualquer do piso que não chegou a secar de todo apesar do sol incipiente da manhã de uma quarta-feira de cinzas qualquer; abandonado após o voo sublime e ligeiro do saco plástico ao ar, do ar ao rosto do folião suado, e de sua pele molhada enfim ao chão. O confete da quarta quando ainda era sexta e o carnaval sequer começara, embora as pessoas transpirassem expectativas.

A pequena multidão e eu, que não fazia parte dela. Éramos dois entes, radicalmente opostos, yin yang, homem mulher, dia noite, glória fracasso. Ela, ritmo; eu, melodia. Bebia do ouro que me sobrava caindo dos bolsos alheios para ganhar forças e procurar, esticando os olhos através de toda a gente, as formas curvas de uma borboleta branca. Encontrá-la: para isso levantei da cama, vesti a calça jeans, a camisa Hering com a frase do Sartre e peguei o Metrô. Na praça, meu olhar atravessava a multidão em linhas sinuosas, tentando precisar o desenho da tal borboleta, como se eu pudesse, munido de um daquelas tesourinhas sem ponta que fingem não machucar a infância, recortá-la com precisão em meio ao caos consentido.

Procurei entre o casal que se lambia, encostado na pilastra. Procurei debaixo do coreto e no oco da corneta do músico de cabelos grisalhos. Cutuquei entre as latas de cerveja recolhidas para reciclagem. Dentro da cartola do garoto vestido de mágico. Investiguei as saias vermelhas das meninas que se queriam ciganas, sob a peruca de palhaço de cabelos verdes. Tentei achá-la na entrada da igreja evangélica voltada para a praça, no banheiro do bar onde os bêbados brindavam a qualquer coisa. Conferi ainda os colares de conchas de uma baiana, o cocar colorido de um índio americano, a vassoura de uma bruxa.

Ela, contudo, não estava. Talvez num próximo bloco, numa próxima festa, num próximo baile, num outro dia de marchinhas, de sambas, serpentinas, confetes, de velhos gordos travestidos com os vestidos das próprias mulheres, de coretos e sorrisos desalinhados, de beijos e trepadas rápidas, bate-bolas e odaliscas, de bebidas e salsichões, de brilhos fugazes roubados do cotidiano, de algazarras e alegrias compulsórias como a casa própria.

Continuaria procurando. A borboleta branca que um dia pousou em meu ombro e se foi, antes que pudesse amá-la. A borboleta que, jurei a mim mesmo, viveria mais do que um dia, contrariando as leis naturais da espécie. A borboleta que batia suas asas delicadamente dentro de mim enquanto permaneci ali na Cinelândia, vestindo apenas minha calça jeans e a camisa Hering com a frase do Sartre, ainda assim fantasiado.

Marcelo Moutinho em Somos Todos Iguais Nesta Noite, Editora Rocco.

CONTO DE VERÃO N° 2: BANDEIRA BRANCA
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

Ele: tirolês. Ela: odalisca; Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
- Como é teu nome?
- Janice. E o teu?
- Píndaro.
- O quê?!
- Píndaro.
- Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
* * *
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
- Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
- Me dá alguma coisa.
- O quê?
- Qualquer coisa.
- O leque. O leque da bailarina.
Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
* * *
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
- Você vomitou a alma – disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube – e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
- Sei lá. Bávara tropical – disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
- E aquela bailarina espanhola?
– Nem me fala. E o toureiro?
– Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
* * *
Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...
- O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.
– Esqueci – mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil. E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu.
Luis Fernando Veríssimo em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, Editora Objetiva.

O PATAVINA’S NO CÉU DESPONTA


“se esbaldando no nunca-mais”
É carnaval na poesia de Drummond.

UNIÃO NACIONAL EM TRÊS DIAS

QUEM FALOU em guerra?
Chegam todos unidos:
Unidos de São Carlos
Unidos de Vaz Lobo
Unidos de Vila Isabel
Unidos de Nilópolis
do Cunha
de Manguinhos e de Padre Miguel
de Lucas, de Jardim
da Tijuca, da Ponte
do Morro do Pinto
Unidos do Tuiuti
da Vila São Luis
da Vila Santa Teresa
Unidos do Cabuçu Bangu Zumbi
Unidos (ecumenicamente) do Éden.

Restam, é certo, os Independentes do Leblon
(que antes eram Inocentes)
os de Mesquita
os Decididos de Quintino.
Uni-vos, caríssimos, e unidos todos
aos Acadêmicos do Salgueiro
do Engenho da Rainha
da Academia Brasileira de Letras
e de Santa Cruz
acolitados pelos Aprendizes da Gávea
pelos da Boca do mato
pelos Índios do Leme,
de mãos dadas aos Cartolinhas de Caxias
aos Azulões da Torre
aos Caprichosos de Pilares
diremos aos irmãos do Império Serrano
do Império de Campo Grande
aos de Lins Imperial
aos da Imperatriz Leopoldina:
Diletos,
chegou a hora da União Nacional.
Com todo o frevo, com todo o frevor
com todo o samba
que é uma tristeza aberta em alegria
à porta de Portela, à sombra de Mangueira
no pulo-bolo-pulo dos clubes
no tablado da Rua Miguel Lemos
de nosso mal-viver faça-se um sonho
em
Kodak-chrome
coruscante de strass e tão tamborinado
que na pele tensa percutida
a alma ressoa, o som é dor sem amargor.
De flor no cabelo
de flor na cara
de cara-de-pau
de pau-de-arara
de arara real
no Municipal
de umbigo de fora
de fora da terra
me dê, me dê a mão
vamos pro meio do salão
com Dona Beja feiticeira do Araxá
e o Crioulo Doido decifrando
sublimes pergaminhos, oba oba.

Fuga? Integração?
Um sair de si mesmo em travesti
um encontrar-se, um dar-se, um desventrar-se
no grande aboio das manadas rítmicas
desfilando entre turistas de aço
até raiar o dia e a fantasia
desfolhar-se?

Unidos desunidos confundidos
diluídos
possuídos
do diabo dançarol e cantarinho
endemoninhados da Pavuna
festivos de Ipanema
repetentes do Fundão
abandonados de Deodoro
mutilados de Del Castilho
corruptos da Lapa Velha
humilhados de Ricardo de Albuquerque
párias do Nordeste em fogo e chuva
afogados do Amazonas párias
de toda parte vinde
vinde todos, vinde todos, vinde todos,
aqui e agora
re-unidos
num projeto de vida à flor da vida.

BRINCANDO DE BRINCAR

MEU RIO antigo, que brincavas
ao rubro som do Zé Pereira
e não conhecias as Avas
Gardners do Copa ou da gafieira,

pensas que a máscara e que o entrudo
valiam mais que a nova tralha?
Tu nada viste e eu já vi tudo:
amigo, o resto é zarandalha.

Gabas-me tuas fantasias
eu proclamo nosso à-vontade.
Teu carnaval eram três dias,
o de hoje o ano inteiro invade.

Teus democráticos, tenentes,
fenianos e não sei que mais
eram muito mais inocentes
que os “inocentes” atuais.

Havia o corso? O corso temos
e piratas com seus ataques
que, vibrando golpes extremos,
vão sorrindo nos cadilaques.

Ora, confete... Não reparas
Como é de uso e até de abuso?
Formas bajulatórias raras,
mais raras que o ritual druzo.

Serpentina, velho, é a atitude
costumeira, e não só em março.
Nossa farra, bem menos rude,
e um faz-de-conta no ar, esparso.

Faz de conta que me divirto,
faz de conta que a vida é fácil,
faz de conta que o louro e o mirto
se juntam em coroa grácil.

Faz de conta que esse alumínio
das novas moedas é puro ouro.
(Nosso chefe, Deus ilumine-o
pelo menos no ano vindouro.)

Vês passar o bloco de sujos
- sol da Favela do Esqueleto?
Como ao tempo dos Araújos,
dança a miséria, em tom faceto.

Na Biblioteca Nacional
pregaram calungas de cor.
vão fazer de Momo, afinal,
um instante de desamor?

As árvores não piam, mas
se piassem, Dr. Batista,
xingariam as luzes más
da ornamentação surrealista.

Os mobiles, sim, me agradaram.
Algo de novo se inaugura
e carnavais que já passaram
- dinamogênica figura –

estão brincando lá na altura.

PARA CINQÜENTÕES

CARNAVAL, carne dada ao verme
(diz a falsa etimologia),
como pode o cronista inerme
cronicar em plena folia?

Como esquivar-se a teu império
que é serrano em Vila ou Mangueira,
se em mim ri aquilo que é sério,
e séria, mesmo, é a brincadeira?

Carnaval, já não sou tão moço
para esmilingüir-me no frevo
e sair de guizo ao pescoço
(riso, quatripétalo trevo).

Também inda não sou tão velho
que não ouça o ronco da cuíca.
E da razão o bom conselho
(má rima) não me mortifica.

Entre duas águas, meu caro,
meio-lá-meio-cá me sinto
como um animal semi-raro
divagando no labirinto.

Carnaval, magia do samba!
Fígado, fiscal do consumo...
Para dançar na corda bamba
tanto faz, serpentina, o rumo.

Não fugirei para a montanha
nem pescarei na Marambaia,
pois ante confusão tamanha,
quedemos (Posto 6) na praia,

perto-longe da farra, ouvindo
e vendo, imaginando, enquanto
um carnaval muito mais lindo
dentro em nós eleva seu canto;

carnaval de delícias longas
e cabriolas arlequinais,
feito de caras songamongas
se esbaldando no nunca-mais;

carnaval antigo e futuro,
baile de outro Municipal
ou Praça 11 acesa no escuro
da saudade do Carnaval.

E é melhor de tudo, afinal.

A FESTA

I / CARNAVAL 1969

A FESTA acaba impreterivelmente às 4 da matina
mas se houver vaia
continuará até às 5.
Wilza Carla de ovos de ouro distribui pintos de prata
à distinta comissão julgadora
indecisa entre Taso, o Ídolo de Marfim
e Eleonora de Aquitânia à la tour abolie.
Helena entra a cavalo.
Pode não, pode não, cavalo não é paietê.
Prego! pregou na hora e vez de desfilar.
Minuto de silêncio corta o samba
em duas fatias doloridas de nunca-mais.
Naval navega onde que não vejo?
70 PMs, 40 detetives especializados
engrossam o golden-room do Copa.
Ford e Verushka, o Poder e a Glória,
dividem entre si o terceiro mundo
mas resta sempre um quarto, um quinto, um
solivagante Eu Sozinho a carregar
todo o peso da graça antiga na Avenida.
Boneco gigante prende o passarinho na gaiola
Embaixo o letreiro: SOL E ALEGRIA.
Salgueiro ao sol
abafa no atabaque e na harmonia.
A gata de vison arranha a bela
acordada nos bosques de Portela.
Dante já não escreve: assiste
à divina comédia de Bornay.
Machado de Assis segue no encalço
de Capitu metida num enredo
mano a mano com Gabriela amor-amado.
Turistas fantasiados de
turista
em vão tentam galgar o olimpo das bancadas
Pau comeu.
400 músicas gravadas,
6 ou 7 cantadas,
52 mortos em desastre,
17 homicídios,
suicídios 5,
2 fetos,
355 menores apreendidos,
400 garis a postos
para varrer o lixo da alegria.
É cedo, espera um pouco; Chave de Ouro,
festa depois da festa, enfrenta o gás
e o cassetete.
Júri soberano,
os grandes derrotados te saúdam.
Júri safado,
premiou fantasia do baile de 1920.
Pobre júri de escolas,
20 horas, 20 anos indormidos.
A noite cobre a noite do desfile
interminável qual fio de navalha
e deixa cair a peteca.
Que é que eu vou, que é que eu vou dizer em casa.
Levanta a cabeça,
já não precisas dizer nada.
A moça no pula-pula do salão
perdeu o umbigo.
Quem encontrar favor telefonar,
será gratificado.
Bem disse Nana Caymmi: Carnaval
me dá falta de ar.
E resta um bafo da onça na calçada
junto a um confete roxo e um pareô
sem corpo, nu e só, ô ô ô ô.

II / CARNAVAL 1970

QUATROCENTAS mil pessoas fogem do Rio
duzentas mil pessoas correm para o Rio
inclusive travestis, que um vale por dois.
A festa assusta e atrai, a festa é festa
ou um raio caindo na cidade?

Que peste passou no ar e foi matando
formas simples de vida costumeira?
A cidade morreu nos escritórios,
nas indústrias, nas lojas. Bairros inteiros
petrificados em mutismo. Janelas
trancadas em protesto ou submissão.
A cidade explode nos clubes
cantansambando
sambatucando
vociferapulando.
Estoura no asfalto em flores furta-cores girandólias
entre florestas metálicas batendo palmas e vaiando
entre postes fantasiados e vinte mil policiais.
Explode meu Rio e sobe,
até a Lua vai a nave da rua
e sambaluando exala em quatro noitidias
queixumes recalcados o ano inteiro.

A decoração desta cidade
eram mares, montanhas e palmeiras
convivendo com gente.
Acharam pouco. Há muitos anos
acrescentam-se bonecos de plástico, sarrafos
em fila processional sobre as cabeças,
brincando no lugar dos que não brincam
ou mandando brincar, ordem turística.
E meu Rio bordado de palhaço
brincou na pauta, brincou fora da pauta.
Brincar é seu destino, ainda quando
há desrazões de ser feliz,
ou por isso mesmo, quem entende?
(Quem quiser que sofra em meu lugar.)
E repetiu os gestos, renovando-os
um após outro, como se este fosse
o carnaval primeiro sobre a Terra
ou o último carnaval, adeus adeus.

E foram todos
ao primo baile
do Municipal
e os ouropéis
das fantasias
monumentais
ninguém sonhara
tão divinais
e as escolas
de samba autêntico
(menos ou mais)
nunca estiveram,
caros ouvintes,
tão geniais.
Meu Deus, acode,
este samba é demais.

Na tribuna computadores críticos
Analistas objetivos: “Não foi bem assim.
A bateria deixou a desejar.
Aquele prêmio? Plágio de plágio
de 58 (veja nos arquivos).
Faltou isso & aquilo, faltou garra,
faltou carnaval ao carnaval.”
Ah, deixa falar, deixa pra lá.
Deixa o cavo coveiro resmungar
que há longo tempo o grande Pan morreu.
No bafo da festa da onça
na vibração da pluma do cacique
no rebolado de Dodô Crioulo
no treme-treme de bloco frevo rancho
na bandeira branca da paz e mais amor,
todo carnaval
é o bom é o bom é o bom .

E ficou barato o pagode, meu compadre?
Oh, quase nada: todos os enfeites
não chegam a um milhão e meio de cruzeiros
novos: contas radiantes de colar
no colo da cidade à beira-mar.
E quem fez os coretos do subúrbio?
Foi o subúrbio mesmo, na pobreza
sem paietê, que finge de brincar
na distância, no ermo e profundeza
de buracos de estrada por tapar.

Mas deixa pra lá, deixa falar
a voz da Penha, de Madureira e Jacarepaguá.
O carnaval é sempre o mesmo e sempre novo
com turista ou sem turista
com dinheiro ou sem dinheiro
com máscara proibida e sonho censurado
máquina de alegria montada desmontada,
sempre o mesmo, sempre novo
no infantasiado coração do povo.


CARNAVAL CHEGANDO

A vitória

A Escola de Samba Unidos da Floresta
- já ganhou! já ganhou!
desponta garbosíssima, sem medo,
na Avenida Antônio Carlos
entre cadáveres de árvores.
Vence todos os quesitos e esquisitos
(outros mais, se inventassem, venceria)
com seu maravilhoso samba-enredo:
Amor, Todo o Amor à Ecologia.

Turista

- Que dura arquibancada! Este protesta.
Ver o desfile, assim, castiga o corpo...
E o corpo, de sabido, lhe retruca:
- Não é melhor ficar fazendo sesta
Naquele hotel da Barra da Tijuca?

Tantos anos depois

O velho político pessedista
nascido perremista
observa, satisfeito,
e pisca o olho, triunfante:
- Agora, lavo o peito.
Vivi bastante
para ver Getúlio Vargas
entregar o poder a Antônio Carlos.

Confidência

- Qual a sua fantasia para o baile do Municipal?
- A você (mas não espalhe) eu digo.
Vai ser a mais original.
Esconderei completamente o umbigo.

Previsão

Qualquer dia
decide o fisco:
Passistas
bateristas
destaques
mestres-salas
porta-estandartes
trabalhadores autônomos
da folia
devem pagar imposto de alegria.

Lacuna carioca

Carece urgentemente construir
larguíssima avenida, reservada
aos caprichosos passos do ir e vir
não de pedestres, mas da batucada.

Pronunciamento

- Caro mestre estruturalista,
pode dizer-me, porventura,
se há perigo, aqui na pista,
de me esmagar, a uma lufada,
a estrutura da arquibancada?
- Isso depende (e eu digo antes
que Barthes ponha numa escritura)
da radotagem dos actantes
como também (partes iguais)
de isotomias fundamentais
verbalizadas quando o problema
dribla o sema e chega ao semema
pela leitura sintagmática
de monemas paradigmáticos...
Morou, ignaro?
- Perfeito, claro. O mestre dava
para letrista de samba-enredo.

LEGENDAS PARA 12 ESTAMPAS DE CARNAVAL

A festa se derrama pelo corpo
inteiro. Cada nervo, cada músculo
retine, musical, e no alvoroço
a eternidade frui o seu minuto.

*

Este ano vou sair de papa-angu.
Vais rir de mim? Rirei de ti também.
Mais me disfarço, mais me sinto nu
e tão igual a todos... tão Ninguém.

*

Ai, 1925...
Pela Avenida lentamente desfilavam os carros,
as formosuras estelares, os inatingíveis amores,
no entreluzir de serpentinas, confetes e desprezo,
sorrindo para quem? Perante a multidão extasiada.

*

O carnaval, se alguém o sabe ver,
muito mais que intervalo de prazer,
é rito, é liturgia, é coração
em frenesi de rítmica paixão.

*

Três dias e quatro noites serei a minha fábula,
o ser escondido em mim, o Príncipe de São Saruê,
amante das artes do sexo, da lavoura e da paz,
ostentando o esplendor da minha farda de sonho.

*

Como baila, com vibra
esta morena de fogo
em sua íntima fibra!
Como passa no seu jogo
A melodia ancestral
ligada ao sangue, ao destino
de brincar o carnaval
como decreto divino!

*

Em qualquer parte,
Recife, ou Bahia,
de lança e estandarte,
vamos à porfia.
Lutamos em prol
da nossa utopia.
Queremos o sol
pura joalheria.
Queremos a terra
taça de alegria,
sem medo, sem guerra
nem que seja um dia...

*

O som da Escola, um som acasalado
de couro, de garganta, de batida,
esperança, raízes, luz e sombra,
volúpia, nostalgia, ogun naruê,
é um som diferente dos demais.
Comove, ao perpassar, o povo inteiro.
Nas mais diversas almas estrangeiras
pingando o sentimento do Brasil.

*

Assim Portinari vê o carnaval.
E vejo Portinari nesta cena.
As formas se interligam, e da aliança
brota o gozo de viver em plenitude
o plástico milagre da existência.

*

Nossa alegria toma a forma de uma torre
e sobe, colorida, em bandeiras e risos.
Canta melhor então a alma ardente do morro,
e o samba leva ao céu sua quente carícia.

*

Ó abre alas que eu quero passar,
a minha escola não pode parar.
Venho na raça, na graça, no lance
meio adoidado do enredo-romance
e meus passistas semeiam no asfalto
a rosa encarnada do partido-alto.

*

O cortejo pomposo se avizinha
tendo à frente Gugu porta-bandeira.
Versailles chega ao Rio. Uma rainha
é recebida na Estação Primeira.

VINHETAS DE CARNAVAL

O LUGAR ERRADO

Pierrot, Pierrot, que fazes neste baile
apocalíptico
onde o samba retumba
e os corpos desnudos se desmancham,
se tua tristeza é toda particular
e num bar em penumbra é que ela se diverte?

PAIXÃO

Não amei Colombina.
Amei, de amor baiano, uma porta-estandarte
que nem sequer me olhava, tão violenta
era a sua paixão pelo estandarte.
A ele se entregava, com ele dormia,
e quando um fósforo consumiu o objeto de seu amor,
também a consumiu, papoula ardente.

ERA UMA VEZ

O velho mascarado
contempla-se no espelho
e não se reconhece.
A máscara do tempo recobriu
os gloriosos disfarces dos Tenentes do Diabo.


SEMPRE LAMARTINE

O bom Lalá sorri no espaço indefinido.
Sua canção abafa o inexpressivo ruído
que faz do carnaval uma festa enfadonha.
O povo, a recordá-lo, canta, ri e sonha.

SAMBA-SAUDADE

Nasce dos pés o pé de samba
e pela quadra florescendo
vai Mangueira se tornando
sambal em flor,
jardim movente, múltipla corola
esparsa no ar;
exalando a saudade de Cartola.

O QUE PASSOU

Há palavras que restam, sem substância.
Que foi feito do conteúdo de folia?
Quem mais se declara folião?
Em Momo quem acredita nestes hojes?
Pierrot é forma arcaica de sofrer.
Mas o umbigo subsiste e resiste.
As nádegas também. O carnaval
agarra-se a redondas redundâncias para sobreviver.

MEMÓRIA NO CHÃO

O confete de quarta-feira no asfalto
cisma de continuar o carnaval.
Pisado, repisado, teima
em lembrar a batalha que não houve.
O confete-fantasma
liga-se à amarrotada serpentina,
junto à página da Revista da Semana de 1921
que voou de uma janela nostálgica.

O OUTRO CARNAVAL

Fantasia,
que é fantasia, por favor?
Roupa-estardalhaço, maquilagem-loucura?
Ou antes, e principalmente,
brinquedo sigiloso, tão íntimo,
tão do meu sangue e nervos e eu oculto em mim,
que ninguém percebe, e todos os dias
exibo na passarela sem espectadores?

NOVO ARLEQUIM

Um Arlequim de alma em losangos
já não sabe como trair
suas damas, em seu destino
de multicor enganador.
Em plena crise existencial,
dedica-se ao vício tóxico
da fidelidade.

VER E OUVIR, SEM BRINCAR

Ninguém pergunta mais:
- Você vai brincar no carnaval?
Brincar, irmão, quem pode brincar
se perdida foi a idéia de brinquedo?
Alguns ainda perguntam:
- Como é? Vai pular no carnaval?

Então é isso a festa: um pulo
e outro pulo e mais outro? Neste caso,
campeoníssimo seria o João do Pulo.
O que ouço dizer é simplesmente:
- Vai ver o carnaval?
Conclusão, ano 80:
Carnaval
é o visual.

Você não brinca mais,
nem mesmo pula mais
na rua hoje deserta, no salão
onde um suor se liga a outro suor
e ar condicionado é falta de ar.
Que pode o folião? Acaso existe ainda,
e funciona, essa palavra folião?
Folia, antiga dança rápida
que o adufe acompanha, no dizer
de sábio, antigo, dicionário.
Quem me dança a folia, quem folia,
quem fol ou fou, folâtre, folichon, folle,
fool, pratica o foliar?

Ah, sim, o sambista e sua escola
foliando para turistas e a distinta
Comissão Julgadora. Pontos! Pontos!
Quesitos mais quesitos! Briga feia
nessa programação oficial
que garimpa e governa o carnaval.
Foliam para os outros. Não foliam
pelo gosto,
pela graça,
pelo orgasmo de foliar, loucura santa,
desabrochar do corpo, em rosa súbita,
em penacho, batuque, diabo, mico,
chama, cometa, esguicho, gargalhada,
a cambalhota em si, o riso puro,
o puro libertar-se da prisão
que cada um carrega em sua liberdade
vigiada, medida, escriturada.

Então pego uma sombra, vou olhar,
ouvir
a cor, o som, o balancê padronizado
que rioturisticamente se oferece
ao mercado da vista e dos ouvidos.
Eu vejo, não me integro,
não participo, não sou o grande todo,
nem o grande todo é mesmo todo e tudo.
Entre o olho e o desfile,
a arquibancada corta o meu impulso
de ser um com eles, ir com eles
pela rua afora,
pelo sonho afora.

A rua, onde ficou
a velha rua, seu espaço de brincar
seu aberto salão a céu aberto,
sem entrada paga, sem cambistas
e fiscais?
O carnaval é rua, não teatro,
não show, produto industrial
monumental
a ser consumido numa noite
de lenta evolução
e classes divididas
pelo respeitável público pagante.
Como comprar, como pagar
o que não tem preço e chama-se
alegria?

ALEGRIA, ENTRE CINZAS

Manhã de quarta-feira.
Santa Luzia e São José chamam as cinzas
em suas igrejas libertas de carnaval.
“Quando jejuardes
- naquele tempo disse Jesus a seus discípulos –
não vos entristeçais como os hipócritas...”
Por isso, das cinzas ainda quentes
do carnaval levantam-se os carnavalescos
e voltam ao trivial pressaboreando
a festa do ano próximo – alaúza!

Milhares e milhares e milhares
de passistas sambistas bateristas
servidores de um rei que pula e não castiga
tiram a pestana suficiente
para emendar a festa com o batente.
Pequeno Luís Rei de França do Salgueiro
despe a magnificência, pede a bênção
ao pai, bombeiro hidráulico, na oficina.
Meio-dia.
Clóvis Bornay bate o ponto no Museu
Volta ao circo o elefante imperial
que transportava Dona Santa do Maracatu.
Volta o Municipal amarfanhado
ao seu silêncio de ópera sem partitura.
Volta a grama a crescer, ou custa um pouco
nos jardins massacrados? Por milagre
voltam os galhos verdes decepados,
para junto dos troncos, ou não mais
estes oitis serão como eram antes?

Que mortes vegetais o grão desfile
foi lavrando no corpo da cidade?
Que atropelos, atrasos, prejuízos
dançaram de ciranda-confusão,
para que açafatas e marqueses
surrealistas de uma noite
deslumbrassem turistas-privilégio
em arquibancadas equipadas
com sanitários
fiberglass
que em lugar nenhum outro aos joões-brandões
atendem no momento de aflição?

Cinzas,
pó de penitência. Será mesmo?
penitência de quê – do não-brincado
ou de folgança programada
a que falta a cedilha do espontâneo?
Dói a cabeça, a dor circula
o corpo inteiro, doendo em parafuso,
em looping, xadrez, diagonal.
Mas a última célula da memória
registra ainda o ranger de babilônias
e rouco marulhar de som e selva:
cataratas humanas de Iguaçu,
pavões, califas de Bagdá e Realengo
desfilam entre rainhas gaditanas
com torres de marfim no cocuruto,
pescadores portam jacarés
personalizados como cheques,
homens de Neandertal voltam à origem
e, emergindo do mar de plástico e sarrafos,
Iemanjá Dandalunda Janaína
crioula cor de prata
rabeia com tiques de sereia
perto do cartorial Palácio da Justiça.
Ou por tudo pesadelo
de três-quatro noites mal curtidas?

Cinza, cinza redentora
de todos os pecados contra o gosto
cometidos e a cometer em nome da alegria
(essa senhora tão ausente
dos programas alegres).
Ainda de pareôs, sarongs, camisetas
suados de pular, hoje caídos
no chão cinza do quarto.
Que bocejo de festa cansadeira
no bustier de lenço drapejado.
Lamê enlameado na sarjeta.
Strass.
Stress.
Liza Minelli passou entre passistas.
Frank Sinatra não vejo, como sempre.
O mundo-melhor de Pixinguinha
e o mundo-melhor dos utopistas
dissolvem-se na mesma inconclusão.
De qualquer modo, irmãos, amigos meus,
ouçamos a palavra que em Mateus
(VI-16) está gravada:
“Não vos entristeçais como os hipócritas...”
Há sempre uma promessa de alegria.

UM HOMEM E SEU CARNAVAL

Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.
O pandeiro bate
é dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.
Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente.

Carlos Drummond de Andrade em Poesia Completa, Editora Nova Aguilar.