quinta-feira, 3 de março de 2011

O PATAVINA’S NO CÉU DESPONTA


“se esbaldando no nunca-mais”
É carnaval na poesia de Drummond.

UNIÃO NACIONAL EM TRÊS DIAS

QUEM FALOU em guerra?
Chegam todos unidos:
Unidos de São Carlos
Unidos de Vaz Lobo
Unidos de Vila Isabel
Unidos de Nilópolis
do Cunha
de Manguinhos e de Padre Miguel
de Lucas, de Jardim
da Tijuca, da Ponte
do Morro do Pinto
Unidos do Tuiuti
da Vila São Luis
da Vila Santa Teresa
Unidos do Cabuçu Bangu Zumbi
Unidos (ecumenicamente) do Éden.

Restam, é certo, os Independentes do Leblon
(que antes eram Inocentes)
os de Mesquita
os Decididos de Quintino.
Uni-vos, caríssimos, e unidos todos
aos Acadêmicos do Salgueiro
do Engenho da Rainha
da Academia Brasileira de Letras
e de Santa Cruz
acolitados pelos Aprendizes da Gávea
pelos da Boca do mato
pelos Índios do Leme,
de mãos dadas aos Cartolinhas de Caxias
aos Azulões da Torre
aos Caprichosos de Pilares
diremos aos irmãos do Império Serrano
do Império de Campo Grande
aos de Lins Imperial
aos da Imperatriz Leopoldina:
Diletos,
chegou a hora da União Nacional.
Com todo o frevo, com todo o frevor
com todo o samba
que é uma tristeza aberta em alegria
à porta de Portela, à sombra de Mangueira
no pulo-bolo-pulo dos clubes
no tablado da Rua Miguel Lemos
de nosso mal-viver faça-se um sonho
em
Kodak-chrome
coruscante de strass e tão tamborinado
que na pele tensa percutida
a alma ressoa, o som é dor sem amargor.
De flor no cabelo
de flor na cara
de cara-de-pau
de pau-de-arara
de arara real
no Municipal
de umbigo de fora
de fora da terra
me dê, me dê a mão
vamos pro meio do salão
com Dona Beja feiticeira do Araxá
e o Crioulo Doido decifrando
sublimes pergaminhos, oba oba.

Fuga? Integração?
Um sair de si mesmo em travesti
um encontrar-se, um dar-se, um desventrar-se
no grande aboio das manadas rítmicas
desfilando entre turistas de aço
até raiar o dia e a fantasia
desfolhar-se?

Unidos desunidos confundidos
diluídos
possuídos
do diabo dançarol e cantarinho
endemoninhados da Pavuna
festivos de Ipanema
repetentes do Fundão
abandonados de Deodoro
mutilados de Del Castilho
corruptos da Lapa Velha
humilhados de Ricardo de Albuquerque
párias do Nordeste em fogo e chuva
afogados do Amazonas párias
de toda parte vinde
vinde todos, vinde todos, vinde todos,
aqui e agora
re-unidos
num projeto de vida à flor da vida.

BRINCANDO DE BRINCAR

MEU RIO antigo, que brincavas
ao rubro som do Zé Pereira
e não conhecias as Avas
Gardners do Copa ou da gafieira,

pensas que a máscara e que o entrudo
valiam mais que a nova tralha?
Tu nada viste e eu já vi tudo:
amigo, o resto é zarandalha.

Gabas-me tuas fantasias
eu proclamo nosso à-vontade.
Teu carnaval eram três dias,
o de hoje o ano inteiro invade.

Teus democráticos, tenentes,
fenianos e não sei que mais
eram muito mais inocentes
que os “inocentes” atuais.

Havia o corso? O corso temos
e piratas com seus ataques
que, vibrando golpes extremos,
vão sorrindo nos cadilaques.

Ora, confete... Não reparas
Como é de uso e até de abuso?
Formas bajulatórias raras,
mais raras que o ritual druzo.

Serpentina, velho, é a atitude
costumeira, e não só em março.
Nossa farra, bem menos rude,
e um faz-de-conta no ar, esparso.

Faz de conta que me divirto,
faz de conta que a vida é fácil,
faz de conta que o louro e o mirto
se juntam em coroa grácil.

Faz de conta que esse alumínio
das novas moedas é puro ouro.
(Nosso chefe, Deus ilumine-o
pelo menos no ano vindouro.)

Vês passar o bloco de sujos
- sol da Favela do Esqueleto?
Como ao tempo dos Araújos,
dança a miséria, em tom faceto.

Na Biblioteca Nacional
pregaram calungas de cor.
vão fazer de Momo, afinal,
um instante de desamor?

As árvores não piam, mas
se piassem, Dr. Batista,
xingariam as luzes más
da ornamentação surrealista.

Os mobiles, sim, me agradaram.
Algo de novo se inaugura
e carnavais que já passaram
- dinamogênica figura –

estão brincando lá na altura.

PARA CINQÜENTÕES

CARNAVAL, carne dada ao verme
(diz a falsa etimologia),
como pode o cronista inerme
cronicar em plena folia?

Como esquivar-se a teu império
que é serrano em Vila ou Mangueira,
se em mim ri aquilo que é sério,
e séria, mesmo, é a brincadeira?

Carnaval, já não sou tão moço
para esmilingüir-me no frevo
e sair de guizo ao pescoço
(riso, quatripétalo trevo).

Também inda não sou tão velho
que não ouça o ronco da cuíca.
E da razão o bom conselho
(má rima) não me mortifica.

Entre duas águas, meu caro,
meio-lá-meio-cá me sinto
como um animal semi-raro
divagando no labirinto.

Carnaval, magia do samba!
Fígado, fiscal do consumo...
Para dançar na corda bamba
tanto faz, serpentina, o rumo.

Não fugirei para a montanha
nem pescarei na Marambaia,
pois ante confusão tamanha,
quedemos (Posto 6) na praia,

perto-longe da farra, ouvindo
e vendo, imaginando, enquanto
um carnaval muito mais lindo
dentro em nós eleva seu canto;

carnaval de delícias longas
e cabriolas arlequinais,
feito de caras songamongas
se esbaldando no nunca-mais;

carnaval antigo e futuro,
baile de outro Municipal
ou Praça 11 acesa no escuro
da saudade do Carnaval.

E é melhor de tudo, afinal.

A FESTA

I / CARNAVAL 1969

A FESTA acaba impreterivelmente às 4 da matina
mas se houver vaia
continuará até às 5.
Wilza Carla de ovos de ouro distribui pintos de prata
à distinta comissão julgadora
indecisa entre Taso, o Ídolo de Marfim
e Eleonora de Aquitânia à la tour abolie.
Helena entra a cavalo.
Pode não, pode não, cavalo não é paietê.
Prego! pregou na hora e vez de desfilar.
Minuto de silêncio corta o samba
em duas fatias doloridas de nunca-mais.
Naval navega onde que não vejo?
70 PMs, 40 detetives especializados
engrossam o golden-room do Copa.
Ford e Verushka, o Poder e a Glória,
dividem entre si o terceiro mundo
mas resta sempre um quarto, um quinto, um
solivagante Eu Sozinho a carregar
todo o peso da graça antiga na Avenida.
Boneco gigante prende o passarinho na gaiola
Embaixo o letreiro: SOL E ALEGRIA.
Salgueiro ao sol
abafa no atabaque e na harmonia.
A gata de vison arranha a bela
acordada nos bosques de Portela.
Dante já não escreve: assiste
à divina comédia de Bornay.
Machado de Assis segue no encalço
de Capitu metida num enredo
mano a mano com Gabriela amor-amado.
Turistas fantasiados de
turista
em vão tentam galgar o olimpo das bancadas
Pau comeu.
400 músicas gravadas,
6 ou 7 cantadas,
52 mortos em desastre,
17 homicídios,
suicídios 5,
2 fetos,
355 menores apreendidos,
400 garis a postos
para varrer o lixo da alegria.
É cedo, espera um pouco; Chave de Ouro,
festa depois da festa, enfrenta o gás
e o cassetete.
Júri soberano,
os grandes derrotados te saúdam.
Júri safado,
premiou fantasia do baile de 1920.
Pobre júri de escolas,
20 horas, 20 anos indormidos.
A noite cobre a noite do desfile
interminável qual fio de navalha
e deixa cair a peteca.
Que é que eu vou, que é que eu vou dizer em casa.
Levanta a cabeça,
já não precisas dizer nada.
A moça no pula-pula do salão
perdeu o umbigo.
Quem encontrar favor telefonar,
será gratificado.
Bem disse Nana Caymmi: Carnaval
me dá falta de ar.
E resta um bafo da onça na calçada
junto a um confete roxo e um pareô
sem corpo, nu e só, ô ô ô ô.

II / CARNAVAL 1970

QUATROCENTAS mil pessoas fogem do Rio
duzentas mil pessoas correm para o Rio
inclusive travestis, que um vale por dois.
A festa assusta e atrai, a festa é festa
ou um raio caindo na cidade?

Que peste passou no ar e foi matando
formas simples de vida costumeira?
A cidade morreu nos escritórios,
nas indústrias, nas lojas. Bairros inteiros
petrificados em mutismo. Janelas
trancadas em protesto ou submissão.
A cidade explode nos clubes
cantansambando
sambatucando
vociferapulando.
Estoura no asfalto em flores furta-cores girandólias
entre florestas metálicas batendo palmas e vaiando
entre postes fantasiados e vinte mil policiais.
Explode meu Rio e sobe,
até a Lua vai a nave da rua
e sambaluando exala em quatro noitidias
queixumes recalcados o ano inteiro.

A decoração desta cidade
eram mares, montanhas e palmeiras
convivendo com gente.
Acharam pouco. Há muitos anos
acrescentam-se bonecos de plástico, sarrafos
em fila processional sobre as cabeças,
brincando no lugar dos que não brincam
ou mandando brincar, ordem turística.
E meu Rio bordado de palhaço
brincou na pauta, brincou fora da pauta.
Brincar é seu destino, ainda quando
há desrazões de ser feliz,
ou por isso mesmo, quem entende?
(Quem quiser que sofra em meu lugar.)
E repetiu os gestos, renovando-os
um após outro, como se este fosse
o carnaval primeiro sobre a Terra
ou o último carnaval, adeus adeus.

E foram todos
ao primo baile
do Municipal
e os ouropéis
das fantasias
monumentais
ninguém sonhara
tão divinais
e as escolas
de samba autêntico
(menos ou mais)
nunca estiveram,
caros ouvintes,
tão geniais.
Meu Deus, acode,
este samba é demais.

Na tribuna computadores críticos
Analistas objetivos: “Não foi bem assim.
A bateria deixou a desejar.
Aquele prêmio? Plágio de plágio
de 58 (veja nos arquivos).
Faltou isso & aquilo, faltou garra,
faltou carnaval ao carnaval.”
Ah, deixa falar, deixa pra lá.
Deixa o cavo coveiro resmungar
que há longo tempo o grande Pan morreu.
No bafo da festa da onça
na vibração da pluma do cacique
no rebolado de Dodô Crioulo
no treme-treme de bloco frevo rancho
na bandeira branca da paz e mais amor,
todo carnaval
é o bom é o bom é o bom .

E ficou barato o pagode, meu compadre?
Oh, quase nada: todos os enfeites
não chegam a um milhão e meio de cruzeiros
novos: contas radiantes de colar
no colo da cidade à beira-mar.
E quem fez os coretos do subúrbio?
Foi o subúrbio mesmo, na pobreza
sem paietê, que finge de brincar
na distância, no ermo e profundeza
de buracos de estrada por tapar.

Mas deixa pra lá, deixa falar
a voz da Penha, de Madureira e Jacarepaguá.
O carnaval é sempre o mesmo e sempre novo
com turista ou sem turista
com dinheiro ou sem dinheiro
com máscara proibida e sonho censurado
máquina de alegria montada desmontada,
sempre o mesmo, sempre novo
no infantasiado coração do povo.


CARNAVAL CHEGANDO

A vitória

A Escola de Samba Unidos da Floresta
- já ganhou! já ganhou!
desponta garbosíssima, sem medo,
na Avenida Antônio Carlos
entre cadáveres de árvores.
Vence todos os quesitos e esquisitos
(outros mais, se inventassem, venceria)
com seu maravilhoso samba-enredo:
Amor, Todo o Amor à Ecologia.

Turista

- Que dura arquibancada! Este protesta.
Ver o desfile, assim, castiga o corpo...
E o corpo, de sabido, lhe retruca:
- Não é melhor ficar fazendo sesta
Naquele hotel da Barra da Tijuca?

Tantos anos depois

O velho político pessedista
nascido perremista
observa, satisfeito,
e pisca o olho, triunfante:
- Agora, lavo o peito.
Vivi bastante
para ver Getúlio Vargas
entregar o poder a Antônio Carlos.

Confidência

- Qual a sua fantasia para o baile do Municipal?
- A você (mas não espalhe) eu digo.
Vai ser a mais original.
Esconderei completamente o umbigo.

Previsão

Qualquer dia
decide o fisco:
Passistas
bateristas
destaques
mestres-salas
porta-estandartes
trabalhadores autônomos
da folia
devem pagar imposto de alegria.

Lacuna carioca

Carece urgentemente construir
larguíssima avenida, reservada
aos caprichosos passos do ir e vir
não de pedestres, mas da batucada.

Pronunciamento

- Caro mestre estruturalista,
pode dizer-me, porventura,
se há perigo, aqui na pista,
de me esmagar, a uma lufada,
a estrutura da arquibancada?
- Isso depende (e eu digo antes
que Barthes ponha numa escritura)
da radotagem dos actantes
como também (partes iguais)
de isotomias fundamentais
verbalizadas quando o problema
dribla o sema e chega ao semema
pela leitura sintagmática
de monemas paradigmáticos...
Morou, ignaro?
- Perfeito, claro. O mestre dava
para letrista de samba-enredo.

LEGENDAS PARA 12 ESTAMPAS DE CARNAVAL

A festa se derrama pelo corpo
inteiro. Cada nervo, cada músculo
retine, musical, e no alvoroço
a eternidade frui o seu minuto.

*

Este ano vou sair de papa-angu.
Vais rir de mim? Rirei de ti também.
Mais me disfarço, mais me sinto nu
e tão igual a todos... tão Ninguém.

*

Ai, 1925...
Pela Avenida lentamente desfilavam os carros,
as formosuras estelares, os inatingíveis amores,
no entreluzir de serpentinas, confetes e desprezo,
sorrindo para quem? Perante a multidão extasiada.

*

O carnaval, se alguém o sabe ver,
muito mais que intervalo de prazer,
é rito, é liturgia, é coração
em frenesi de rítmica paixão.

*

Três dias e quatro noites serei a minha fábula,
o ser escondido em mim, o Príncipe de São Saruê,
amante das artes do sexo, da lavoura e da paz,
ostentando o esplendor da minha farda de sonho.

*

Como baila, com vibra
esta morena de fogo
em sua íntima fibra!
Como passa no seu jogo
A melodia ancestral
ligada ao sangue, ao destino
de brincar o carnaval
como decreto divino!

*

Em qualquer parte,
Recife, ou Bahia,
de lança e estandarte,
vamos à porfia.
Lutamos em prol
da nossa utopia.
Queremos o sol
pura joalheria.
Queremos a terra
taça de alegria,
sem medo, sem guerra
nem que seja um dia...

*

O som da Escola, um som acasalado
de couro, de garganta, de batida,
esperança, raízes, luz e sombra,
volúpia, nostalgia, ogun naruê,
é um som diferente dos demais.
Comove, ao perpassar, o povo inteiro.
Nas mais diversas almas estrangeiras
pingando o sentimento do Brasil.

*

Assim Portinari vê o carnaval.
E vejo Portinari nesta cena.
As formas se interligam, e da aliança
brota o gozo de viver em plenitude
o plástico milagre da existência.

*

Nossa alegria toma a forma de uma torre
e sobe, colorida, em bandeiras e risos.
Canta melhor então a alma ardente do morro,
e o samba leva ao céu sua quente carícia.

*

Ó abre alas que eu quero passar,
a minha escola não pode parar.
Venho na raça, na graça, no lance
meio adoidado do enredo-romance
e meus passistas semeiam no asfalto
a rosa encarnada do partido-alto.

*

O cortejo pomposo se avizinha
tendo à frente Gugu porta-bandeira.
Versailles chega ao Rio. Uma rainha
é recebida na Estação Primeira.

VINHETAS DE CARNAVAL

O LUGAR ERRADO

Pierrot, Pierrot, que fazes neste baile
apocalíptico
onde o samba retumba
e os corpos desnudos se desmancham,
se tua tristeza é toda particular
e num bar em penumbra é que ela se diverte?

PAIXÃO

Não amei Colombina.
Amei, de amor baiano, uma porta-estandarte
que nem sequer me olhava, tão violenta
era a sua paixão pelo estandarte.
A ele se entregava, com ele dormia,
e quando um fósforo consumiu o objeto de seu amor,
também a consumiu, papoula ardente.

ERA UMA VEZ

O velho mascarado
contempla-se no espelho
e não se reconhece.
A máscara do tempo recobriu
os gloriosos disfarces dos Tenentes do Diabo.


SEMPRE LAMARTINE

O bom Lalá sorri no espaço indefinido.
Sua canção abafa o inexpressivo ruído
que faz do carnaval uma festa enfadonha.
O povo, a recordá-lo, canta, ri e sonha.

SAMBA-SAUDADE

Nasce dos pés o pé de samba
e pela quadra florescendo
vai Mangueira se tornando
sambal em flor,
jardim movente, múltipla corola
esparsa no ar;
exalando a saudade de Cartola.

O QUE PASSOU

Há palavras que restam, sem substância.
Que foi feito do conteúdo de folia?
Quem mais se declara folião?
Em Momo quem acredita nestes hojes?
Pierrot é forma arcaica de sofrer.
Mas o umbigo subsiste e resiste.
As nádegas também. O carnaval
agarra-se a redondas redundâncias para sobreviver.

MEMÓRIA NO CHÃO

O confete de quarta-feira no asfalto
cisma de continuar o carnaval.
Pisado, repisado, teima
em lembrar a batalha que não houve.
O confete-fantasma
liga-se à amarrotada serpentina,
junto à página da Revista da Semana de 1921
que voou de uma janela nostálgica.

O OUTRO CARNAVAL

Fantasia,
que é fantasia, por favor?
Roupa-estardalhaço, maquilagem-loucura?
Ou antes, e principalmente,
brinquedo sigiloso, tão íntimo,
tão do meu sangue e nervos e eu oculto em mim,
que ninguém percebe, e todos os dias
exibo na passarela sem espectadores?

NOVO ARLEQUIM

Um Arlequim de alma em losangos
já não sabe como trair
suas damas, em seu destino
de multicor enganador.
Em plena crise existencial,
dedica-se ao vício tóxico
da fidelidade.

VER E OUVIR, SEM BRINCAR

Ninguém pergunta mais:
- Você vai brincar no carnaval?
Brincar, irmão, quem pode brincar
se perdida foi a idéia de brinquedo?
Alguns ainda perguntam:
- Como é? Vai pular no carnaval?

Então é isso a festa: um pulo
e outro pulo e mais outro? Neste caso,
campeoníssimo seria o João do Pulo.
O que ouço dizer é simplesmente:
- Vai ver o carnaval?
Conclusão, ano 80:
Carnaval
é o visual.

Você não brinca mais,
nem mesmo pula mais
na rua hoje deserta, no salão
onde um suor se liga a outro suor
e ar condicionado é falta de ar.
Que pode o folião? Acaso existe ainda,
e funciona, essa palavra folião?
Folia, antiga dança rápida
que o adufe acompanha, no dizer
de sábio, antigo, dicionário.
Quem me dança a folia, quem folia,
quem fol ou fou, folâtre, folichon, folle,
fool, pratica o foliar?

Ah, sim, o sambista e sua escola
foliando para turistas e a distinta
Comissão Julgadora. Pontos! Pontos!
Quesitos mais quesitos! Briga feia
nessa programação oficial
que garimpa e governa o carnaval.
Foliam para os outros. Não foliam
pelo gosto,
pela graça,
pelo orgasmo de foliar, loucura santa,
desabrochar do corpo, em rosa súbita,
em penacho, batuque, diabo, mico,
chama, cometa, esguicho, gargalhada,
a cambalhota em si, o riso puro,
o puro libertar-se da prisão
que cada um carrega em sua liberdade
vigiada, medida, escriturada.

Então pego uma sombra, vou olhar,
ouvir
a cor, o som, o balancê padronizado
que rioturisticamente se oferece
ao mercado da vista e dos ouvidos.
Eu vejo, não me integro,
não participo, não sou o grande todo,
nem o grande todo é mesmo todo e tudo.
Entre o olho e o desfile,
a arquibancada corta o meu impulso
de ser um com eles, ir com eles
pela rua afora,
pelo sonho afora.

A rua, onde ficou
a velha rua, seu espaço de brincar
seu aberto salão a céu aberto,
sem entrada paga, sem cambistas
e fiscais?
O carnaval é rua, não teatro,
não show, produto industrial
monumental
a ser consumido numa noite
de lenta evolução
e classes divididas
pelo respeitável público pagante.
Como comprar, como pagar
o que não tem preço e chama-se
alegria?

ALEGRIA, ENTRE CINZAS

Manhã de quarta-feira.
Santa Luzia e São José chamam as cinzas
em suas igrejas libertas de carnaval.
“Quando jejuardes
- naquele tempo disse Jesus a seus discípulos –
não vos entristeçais como os hipócritas...”
Por isso, das cinzas ainda quentes
do carnaval levantam-se os carnavalescos
e voltam ao trivial pressaboreando
a festa do ano próximo – alaúza!

Milhares e milhares e milhares
de passistas sambistas bateristas
servidores de um rei que pula e não castiga
tiram a pestana suficiente
para emendar a festa com o batente.
Pequeno Luís Rei de França do Salgueiro
despe a magnificência, pede a bênção
ao pai, bombeiro hidráulico, na oficina.
Meio-dia.
Clóvis Bornay bate o ponto no Museu
Volta ao circo o elefante imperial
que transportava Dona Santa do Maracatu.
Volta o Municipal amarfanhado
ao seu silêncio de ópera sem partitura.
Volta a grama a crescer, ou custa um pouco
nos jardins massacrados? Por milagre
voltam os galhos verdes decepados,
para junto dos troncos, ou não mais
estes oitis serão como eram antes?

Que mortes vegetais o grão desfile
foi lavrando no corpo da cidade?
Que atropelos, atrasos, prejuízos
dançaram de ciranda-confusão,
para que açafatas e marqueses
surrealistas de uma noite
deslumbrassem turistas-privilégio
em arquibancadas equipadas
com sanitários
fiberglass
que em lugar nenhum outro aos joões-brandões
atendem no momento de aflição?

Cinzas,
pó de penitência. Será mesmo?
penitência de quê – do não-brincado
ou de folgança programada
a que falta a cedilha do espontâneo?
Dói a cabeça, a dor circula
o corpo inteiro, doendo em parafuso,
em looping, xadrez, diagonal.
Mas a última célula da memória
registra ainda o ranger de babilônias
e rouco marulhar de som e selva:
cataratas humanas de Iguaçu,
pavões, califas de Bagdá e Realengo
desfilam entre rainhas gaditanas
com torres de marfim no cocuruto,
pescadores portam jacarés
personalizados como cheques,
homens de Neandertal voltam à origem
e, emergindo do mar de plástico e sarrafos,
Iemanjá Dandalunda Janaína
crioula cor de prata
rabeia com tiques de sereia
perto do cartorial Palácio da Justiça.
Ou por tudo pesadelo
de três-quatro noites mal curtidas?

Cinza, cinza redentora
de todos os pecados contra o gosto
cometidos e a cometer em nome da alegria
(essa senhora tão ausente
dos programas alegres).
Ainda de pareôs, sarongs, camisetas
suados de pular, hoje caídos
no chão cinza do quarto.
Que bocejo de festa cansadeira
no bustier de lenço drapejado.
Lamê enlameado na sarjeta.
Strass.
Stress.
Liza Minelli passou entre passistas.
Frank Sinatra não vejo, como sempre.
O mundo-melhor de Pixinguinha
e o mundo-melhor dos utopistas
dissolvem-se na mesma inconclusão.
De qualquer modo, irmãos, amigos meus,
ouçamos a palavra que em Mateus
(VI-16) está gravada:
“Não vos entristeçais como os hipócritas...”
Há sempre uma promessa de alegria.

UM HOMEM E SEU CARNAVAL

Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.
O pandeiro bate
é dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.
Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente.

Carlos Drummond de Andrade em Poesia Completa, Editora Nova Aguilar.

5 comentários:

  1. que riqueza, que riqueza
    que relicário de beleza
    muito grata!

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  2. que riqueza, que riqueza
    relicário de beleza

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  3. Oi, Elaine,

    Fazê-la tambpem foi uma delícia. Ir descobrindo esses textos todos...

    Volte sempre,
    beijo,

    Cesar

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  4. Que bom te ver por aqui. Volte sempre ao PATAVINA'S.

    Abracadabraço do

    Cesar

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