
É CARNAVAL
STANISLAW PONTE PRETA
E então chegava o carnaval, registrando-se grandes comemorações ao Festival de Besteira. Em Goiânia o folião Cândido Teixeira de Lima brincava fantasiado de Papa Paulo VI e provava no salão que não é tão cândido assim, pois aproveitava o mote da marcha Máscara Negra e beijava tudo que era mulher que passasse dando sopa.
Um padre local, por volta da meia-noite, recebeu uma denúncia e foi para o baile, exigindo da Polícia que o Papa de araque fosse preso. Em seguida, declarou: “Brincar o Carnaval já é um pecado grave. Brincar fantasiado de Papa é uma blasfêmia terrível.”
O caso morreu aí e nunca mais se soube o que era mais blasfêmia: um cidadão se fantasiar de Papa ou o piedoso sacerdote encanar o Sumo Pontífice.
E enquanto todos pulavam no salão, o dólar pulava no câmbio. Ah coisas inexplicáveis! Até hoje não se sabe por que foi durante o Carnaval que o Governo aumentou o dólar, fazendo muito rico ficar mais rico. E, porque o Ministro do Planejamento e seus cúmplices, aliás, digo, seus auxiliares, aumentaram o dólar e desvalorizaram o cruzeiro em pleno Carnaval, passaram a ser conhecidos como Acadêmicos do Cruzeiro – numa homenagem também aos salgueirenses que, no Carnaval de 1967, entraram pelo cano.
Stanislaw Ponte Preta em Febeapá 2, Editora Sabiá.
CARNAVAL EM CURITIBA
CRISTÓVÃO TEZZA
É inacreditável, mas já pulei carnaval. Tenho uma foto inverossímil de mim mesmo em Antonina, divertindo-me no glorioso desfile do “Império da Caixa d’água”, que por dois ou três anos foi dirigido por W. Rio Apa e, se não me engano, até premiado no concurso local. A imagem do carnaval de Antonina daqueles anos 70 fixou-se para mim como de uma festa verdadeiramente popular, que envolvia cada morador da cidade. Talvez eu esteja apenas retocando a memória, mas acho que era isso mesmo – uma coisa muito boa.
De volta a Curitiba, o carnaval foi desaparecendo da minha alma, a ponto de hoje eu achar que é uma coisa chatíssima. Vejo aquelas multidões em Recife, em Salvador, no Rio, milhares de pessoas esmagando-se em avenidas na estridência de uma música de batida primária, com o olhar distante de um marciano a admirar a estranheza de um acontecimento que, por certo, está entre os maiores espetáculos da Terra. No caso do Brasil, trata-se de uma festa que nos define internacionalmente como brasileiros, para o bem e para o mal. Aqui o carnaval é um evento muito sério; há uma simbiose cultural fortíssima entre a festa e o que seria a nossa famigerada “identidade”. Nessa imagem, entram fatos e mitos entrelaçados: sensualidade, liberalidade, musicalidade e uma profunda “des-hierarquização” dos poderes, que sempre foi a essência milenar carnavalesca – o mendigo se veste de rei, o rei de mendigo.
O problema é que sou de Curitiba. Acaso não somos também “brasileiros”? Será que não somos patriotas o suficiente? Por que a cidade se esvazia no carnaval? Será puramente um problema geográfico? Porque afinal os curitibanos pulam, e muito, em Caiobá e Guaratuba. Há explicações de todo tipo: quem gosta de fila não pula carnaval, temos horror à transgressão, nossa timidez é mortal, “o que os outros vão dizer”, “esse pessoal precisa de serviço”, “polaco tem cintura dura”, etc. – a lista de desculpas é infinita, mas todas giram em torno do célebre e misterioso temperamento curitibano, a inefável atmosfera da cidade. Lembro que há alguns anos caminhei por uma hora no Parque Barigui em plena terça-feira gorda, o parque cheio de gente, e não encontrei um único signo de carnaval, por mísero que fosse, uma máscara de criança, um balão, um pedaço de serpentina, um confete perdido, um longínquo “mamãe eu quero” vindo pelo ar. Nada. Poderia jurar que estávamos no mês de outubro, na Áustria. Uma paz que achei, aliás, maravilhosa.
Alguém já propôs que, em vez de forçar uma festa que, parece, a cidade não quer, a prefeitura patrocinasse algum evento diferente, para atrair os milhares de brasileiros que por acaso não gostam de carnaval (e são uma legião): um encontro nacional de psicanálise, um festival de música erudita, uma feira de livros, algo assim. O que reforçaria a nossa já famosa originalidade no cenário brasileiro.
Cristóvão Tezza, no jornal Gazeta do Povo, em 24/02/2009.
SEXTA-FEIRA DE CINZAS
MARCELO MOUTINHO
Entre os velhos gordos, travestidos com os vestidos das próprias mulheres, o palhaço errante com a lata de cerveja na mão, a moça que beijava o rapaz de modo tão sôfrego quanto falso, entre as bocas que ali davam o primeiro dos tantos beijos que dariam nos dias que seguiram, entre vendedores de bebidas e salsichões, entre marchinhas desgastadas mas sempre novas e sambas e batuques e tamborins desafinados de tamanha animação, entre a alegria exasperada daquela pequena multidão de pobres-diabos na sacrossanta missão de ser feliz a fórceps, estava eu.
E minha missão, após desistir do sono cedo, após vestir o jeans e a camisa Hering com a frase do Sartre, era apenas mendigar um pouco do que sossobrava sobre o chão cinzento da Cinelândia, a praça tomada por sorrisos, os brancos dos dentes contrastando com as fagulhas esparsas dos paetês, a luz fugidia cintilando nas roupas baratas compradas no Saara, sobre chapéus, máscaras, narizes, brincos, panos, anéis, pessoas em suas dores domadas. Queria as moedas que eles guardavam nos bolsos. Queria o seu ouro.
Pois ali, em frente ao coreto repleto de senhores de terno e gravata segurando como podem seus cachês de uma vez ao ano, eu era apenas um confete temporão, o confete molhado do depois, largado num canto qualquer do piso que não chegou a secar de todo apesar do sol incipiente da manhã de uma quarta-feira de cinzas qualquer; abandonado após o voo sublime e ligeiro do saco plástico ao ar, do ar ao rosto do folião suado, e de sua pele molhada enfim ao chão. O confete da quarta quando ainda era sexta e o carnaval sequer começara, embora as pessoas transpirassem expectativas.
A pequena multidão e eu, que não fazia parte dela. Éramos dois entes, radicalmente opostos, yin yang, homem mulher, dia noite, glória fracasso. Ela, ritmo; eu, melodia. Bebia do ouro que me sobrava caindo dos bolsos alheios para ganhar forças e procurar, esticando os olhos através de toda a gente, as formas curvas de uma borboleta branca. Encontrá-la: para isso levantei da cama, vesti a calça jeans, a camisa Hering com a frase do Sartre e peguei o Metrô. Na praça, meu olhar atravessava a multidão em linhas sinuosas, tentando precisar o desenho da tal borboleta, como se eu pudesse, munido de um daquelas tesourinhas sem ponta que fingem não machucar a infância, recortá-la com precisão em meio ao caos consentido.
Procurei entre o casal que se lambia, encostado na pilastra. Procurei debaixo do coreto e no oco da corneta do músico de cabelos grisalhos. Cutuquei entre as latas de cerveja recolhidas para reciclagem. Dentro da cartola do garoto vestido de mágico. Investiguei as saias vermelhas das meninas que se queriam ciganas, sob a peruca de palhaço de cabelos verdes. Tentei achá-la na entrada da igreja evangélica voltada para a praça, no banheiro do bar onde os bêbados brindavam a qualquer coisa. Conferi ainda os colares de conchas de uma baiana, o cocar colorido de um índio americano, a vassoura de uma bruxa.
Ela, contudo, não estava. Talvez num próximo bloco, numa próxima festa, num próximo baile, num outro dia de marchinhas, de sambas, serpentinas, confetes, de velhos gordos travestidos com os vestidos das próprias mulheres, de coretos e sorrisos desalinhados, de beijos e trepadas rápidas, bate-bolas e odaliscas, de bebidas e salsichões, de brilhos fugazes roubados do cotidiano, de algazarras e alegrias compulsórias como a casa própria.
Continuaria procurando. A borboleta branca que um dia pousou em meu ombro e se foi, antes que pudesse amá-la. A borboleta que, jurei a mim mesmo, viveria mais do que um dia, contrariando as leis naturais da espécie. A borboleta que batia suas asas delicadamente dentro de mim enquanto permaneci ali na Cinelândia, vestindo apenas minha calça jeans e a camisa Hering com a frase do Sartre, ainda assim fantasiado.
Marcelo Moutinho em Somos Todos Iguais Nesta Noite, Editora Rocco.
CONTO DE VERÃO N° 2: BANDEIRA BRANCA
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
Ele: tirolês. Ela: odalisca; Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
- Como é teu nome?
- Janice. E o teu?
- Píndaro.
- O quê?!
- Píndaro.
- Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
* * *
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
- Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
- Me dá alguma coisa.
- O quê?
- Qualquer coisa.
- O leque. O leque da bailarina.
Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
* * *
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
- Você vomitou a alma – disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube – e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
- Sei lá. Bávara tropical – disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
- E aquela bailarina espanhola?
– Nem me fala. E o toureiro?
– Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
* * *
Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...
- O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.
– Esqueci – mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil. E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu.
Luis Fernando Veríssimo em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, Editora Objetiva.
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