
O VÔO DA ANDORINHA
JORGE AMADO
SENSAÇÃO DE ALÍVIO, DE BEM-ESTAR, O DESEJO ÚNICO E URGENTE de viver, insidiosa euforia, doce loucura: a andorinha liberta batia as asas, pronta para alçar voo e descobrir o mundo: Manela ria à toa.
Na praça em torno à basílica e nas ruas ao sopé da colina, o povo dera início ao Carnaval: mês e meio de pândega e folia, de festa sem parar que ninguém é de ferro para aguentar durante o ano inteiro as agruras da vida, a miséria e a opressão, a desgraça vil e ilimitada. O dom de fazer a festa mesmo em tão calamitosas condições, próprio e exclusivo de nosso povo, é mercê de Senhor do Bonfim e de Oxalá: os dois juntos somam um, o Deus dos brasileiros, nascido na Bahia.
Desfilavam blocos e afoxés, os Filhos de Gandhy faziam a primeira figuração do ano, e a música dos trios elétricos ecoava num horizonte de palafita e lama, na podridão dos Alagados. Capitães de areia atravessavam a multidão mercando fitas do Bonfim medalhas e breves, santinhos coloridos, figas e patuás. Numerosa freguesia de turistas acorria, alvoroçada e turbulenta.
Nos tabuleiros olorosos, os acarajés, os abarás, o peixe frito, os caranguejos, a moqueca de aratu envolta em folha de bananeira, o acaçá de milho. Nas barracas atulhadas, ruidosas, as comidas de coco e de dendê: caruru, vatapá, efó, as diversas frigideiras e as diferentes moquecas, tantas!, galinha de xinxim, arroz de hauçá. A cerveja bem gelada, as batidas, o caldo de lambreta, afrodisíaco incomparável. Os cestos de frutas, suntuosos: manga espada, carlota, coração-de-boi e itiúba, manga-rosa, sapotas, sapotis, cajás, cajaranas, cajus, pitangas, jambos, carambolas, onze classes de banana, talhadas de abacaxi e melancia. Tudo pela hora da morte, contudo as barracas não davam abasto à clientela vasta e voraz – comilança à tripa forra.
Em várias das casas destinadas aos romeiros, alugadas a veranistas para as festas, pequenas orquestras – violão, acordeom, flauta, pandeiro, cavaquinho – animavam assustados familiares. Entre os pares enlaçados, não faltavam casais idosos, velhinhos fazendo concorrência aos jovens, matando as saudades dos bons tempos. A imensa maioria do povo, todavia, dançava ao ar livre, na rua, ao som eletrônico dos trios: frevos e sambas, marchas de Carnaval: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, disse o menestrel. Baile sem tamanho, sem hora de acabar, perene e desmarcado, só vendo pra crer.
Não pararam de brincar, bando álacre de foliões a pular o grito de inauguração do Carnaval na Quinta-Feira do Bonfim: a irmã, a prima, os primos, namorados e namoradas, aderentes, conhecidos e desconhecidos: Manela foi a alma do grupo, ninguém a ganhou em animação. Enferma às portas da morte, no milagre da saúde recuperada, quis usufruir de tudo a que tinha direito. Dançou no asfalto a dança coletiva e brasileira, integrada na festa do povo – do povão como se começava a dizer para designar a parte mais despossuída da população. No embalo da suave melodia do Jazz dos Batutas de Periperi, enlaçada nos braços do galã, esvoaçou no blues de sua vida. Bailara samba, fox, rock, bolero, rumba, twist, inclusive traçara passos de tango argentino – Miro era imprevisível -, de arrasta-pé em arrasta-pé, de bate-coxa em bate-coxa, uma cerveja aqui, uma batida ali, acolá um cálice de licor, a euforia crescendo. Aquilo, sim, era viver.
Jorge Amado em O Sumiço da Santa, “romance baiano”, como o autor chamou, de 1988, publicado pela Companhia das Letras. Passado nos ditatoriais anos 70, o livro conta o sumiço de uma imagem de Santa Bárbara e as 48 horas de busca por ela, num grande painel de muitas historias entrelaçadas.
ANTES DO BAILE VERDE
LYGIA FAGUNDES TELLES
O Rancho Azul e Branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís XV e sua porta-estandarte de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro do bumbo fez uma profunda reverência diante das duas mulheres, debruçadas na janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo flutuar a capa encharcada de suor.
– Ele gostou de você – disse a jovem, voltando-se para a mulher que ainda aplaudia. – O cumprimento foi na sua direção, viu que chique?
A preta deu uma risadinha.
– Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele começa a encher a caveira e pronto, não sai mais nada.
A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto estava revolvido como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e gavetas.
– Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo... Tenha paciência, mas você vai me ajudar um pouquinho.
– Mas você ainda não acabou?
Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas também verdes.
– Acabei o que, falta pregar tudo isso ainda, olha aí... Fui inventar um raio de pierrete dificílima!
A preta aproximou-se, alisando com as mãos o quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha trazia um crisântemo de papel-crepom vermelho. Sentou-se ao lado da moça.
– O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.
– Tem tempo, sossega – atalhou a jovem. Afastou os cabelos que lhe caíam nos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. – Não sei como fui me atrasar desse jeito.
– Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!
– E quem está dizendo que você vai perder?
A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-se de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e delicadamente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com pequenos movimentos circulares.
– Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote...
– Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a coisa pela metade, vê se entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?... Que tal?
A mulher sorriu.
– Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde, você está parecendo uma alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito.
Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mão na face afogueada.
– Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias têm que ser verdes, tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais da metade, Lu!
– Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos.
– Não faz mal – disse a jovem, limpando no lençol o excesso de cola que lhe escorreu pelo dedo. – Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai reparar, vai ter gente à beça. O que está me endoidando é este calor, não aguento mais, tenho a impressão de que estou me derretendo, você não sente? Calor bárbaro!
A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou o tom de voz.
– Estive lá.
– E daí?
– Ele está morrendo.
Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-se a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa frigideira: A coroa do rei não é de ouro nem de prata...
– Parece que estou num forno – gemeu a jovem, dilatando as narinas porejadas de suor.
– Se soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve.
– Mais leve do que isso? Você está quase nua, Tatisa. Eu ia com a minha havaiana, mas só porque aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica. Imagine você então...
Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda da meia. Deixou-a cair na pequena constelação que ia armando na barra do saiote e ficou raspando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe caíra no joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum. Falou num tom sombrio:
– Você acha, Lu?
– Acha o quê?
– Que ele está morrendo?
– Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite.
– Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante.
– Radiante? – espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. – E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo.
– Mas quando fui lá ele estava dormindo tal calmo, Lu.
– Aquilo não é sono. É outra coisa.
Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi até a mesa, pegou a garrafa de uísque e procurou um copo em meio da desordem dos frascos e caixas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Soprou o fundo cheio de pó-de-arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de boca aberta. Dirigiu-se à preta.
– Quer?
– Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia.
A jovem despejou mais uísque no copo.
– Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhos não borrou... Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver.
– Você está bebendo demais. E nessa correria... Também não sei por que essa invenção de saiote bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o pior é que não posso caprichar, com o pensamento no Raimundo lá na esquina...
– Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-taque! Esse cara não pode esperar um pouco?
A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco que passava já longínquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando... acabou chorando...
– No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti à grande. Meu sapato até desmanchou de tanto que dancei.
– E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar.
– E seu pai?
Lentamente a jovem foi limpando no lenço as pontas dos dedos esbranquiçados de cola. Tomou um gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no pote.
– Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? – Ficou olhando para a ponta do dedo coberto de lantejoulas. Foi deixando no saiote o dedal cintilante. – Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?
– Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender.
– Mas você começa a dizer que ele está morrendo!
– Pois está mesmo.
– Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo daquele jeito.
– Então não está.
A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando água um na cara do outro. Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que passou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altíssimos. “Minha lindura, vem comigo, minha lindura!” – gritou o moleque maior, correndo atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias presas aos elásticos do biquíni.
– Estou transpirando feito um cavalo. Juro que, se não tivesse me pintado, metia-me agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes.
– E eu não agüento mais de sede – resmungou a empregada, arregaçando as mangas do quimono. – Ai! uma cerveja bem geladinha. Gosto mesmo é de cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano passado, ele ficou de porre os três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos, representava um mar. Você precisava ver aquele monte de sereias enroladas em pérolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima, dentro de uma concha abrindo e fechando a rainha do mar coberta de jóias...
– Você já se enganou uma vez – atalhou a jovem. – Ele não pode estar morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem, papai?, perguntei e ele não respondeu, mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse.
– Ele se fez de forte, coitado.
– De forte, como?
– Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar.
– Ih, como é difícil conversar com gente ignorante – explodiu a jovem, atirando no chão as roupas amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calça comprida. – Você pegou meu cigarro?
– Tenho minha marca, não preciso dos seus.
– Escuta, Luzinha, escuta – começou ela, ajeitando a flor na carapinha da mulher. – Eu não estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor, porque uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura...
– Ele estava se despedindo.
– Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você quer que seja hoje. Por que tem que repetir isso, por quê?
– Você mesma pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa.
A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sapato. Agachou-se mais, roçando os cabelos verdes no chão. Levantou-se, olhou em redor. E foi-se ajoelhando devagarinho diante da preta. Apanhou o pote de cola.
– E se você desse um pulo lá só para ver?
– Mas você quer ou não que eu acabe isto? – a mulher gemeu exasperada, abrindo e fechando os dedos ressequidos de cola. – O Raimundo tem ódio de esperar, hoje ainda apanho!
A jovem levantou-se. Fungou, andando rápida num andar de bicho na jaula. Chutou um sapato que encontrou no caminho.
– Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem que disse que não podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta!
– Mas, Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso, até que tenho ajudado muito, sim senhora, como não? Todos esses meses quem é que tem aguentado o tranco? Não me queixo, porque ele é muito bom, coitado. Mas tenha a santa paciência, hoje não! Até que estou fazendo muito aqui plantada quando devia estar na rua.
Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no espelho. Beliscou a cintura.
- Engordei, Lu.
- Você, gorda? Mas você é só osso, menina. Seu namorado não tem onde pegar. Ou tem?
Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se:
- Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que à meia-noite ele vem me buscar. Mandou fazer um pierrô verde.
- Também já me fantasiei de pierrô. Mas faz tempo.
- Vem num Tufão, viu que chique?
- Que é isso?
- É um carro muito bacana, vermelho. Mas não fique aí me olhando, depressa, Lu, você não vê que... – Passou ansiosamente a mão no pescoço. – Lu, Lu, por que ele não ficou no hospital?! Estava tão bem no hospital...
- Hospital de graça é assim mesmo, Tatisa. Eles não podem ficar a vida inteira com um doente que não resolve, tem doente esperando até na calçada.
- Há meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos. Não podia viver mais um dia?
A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distância. Abriu-o de novo no colo e inclinou-se para o pires de lantejoula.
- Falta só um pedaço.
- Um dia mais...
- Vem me ajudar, Tatisa, nós duas pregando vai num instante.
Agora ambas trabalhavam num ritmo acelerado, as mãos indo e vindo do pote de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde pesada de lantejoulas.
- Hoje o Raimundo me mata – recomeçou a mulher, grudando as lantejoulas meio ao acaso. Passou o dorso da mão na testa molhada. Ficou com a mão parada no ar. – Você não ouviu?
A jovem demorou para responder.
- O quê?
- Parece que ouvi um gemido.
Ela baixou o olhar.
- Foi na rua.
Inclinaram as cabeças irmanadas sob a luz amarela do abajur.
- Escuta, Lu, se você pudesse ficar hoje, só hoje – começou ela num tom manso. Apressou-se: - Eu te daria meu vestido branco. Aquele meu branco, sabe qual é? E também os sapatos, estão novos ainda, você sabe que eles estão novos. Você pode sair todos os dias, mas pelo amor de Deus, Lu, fica hoje.
A empregada sorriu, triunfante.
- Custou, Tatisa, custou. Desde o começo eu já estava esperando. Ah, mas hoje nem que me matasse, eu ficava, hoje não. – O crisântemo caiu enquanto ela sacudia a cabeça. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. – Perder esse desfile? Nunca! Já fiz muito – acrescentou, sacudindo o saiote. – Pronto, pode vestir. Está um serviço porco mas ninguém vai reparar.
- Eu podia te dar o casaco azul – murmurou a jovem, limpando os dedos no lençol.
- Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviu isso, Tatisa? Nem com meu pai, hoje não.
Levantando-se de um salto, a moça foi até a garrafa e bebeu de olhos fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote.
- Brrrr! Esse uísque é uma bomba – resmungou, aproximando-se do espelho. – Anda, venha aqui me abotoar, não precisa ficar aí com essa cara. Sua chata.
A mulher tateou os dedos por entre o tule.
- Não acho os colchetes.
A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a cabeça levantada. Olhou para a mulher através do espelho:
- Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem os óculos quando entrou no quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo.
- Pode ser que me enganasse mesmo.
- Claro que se enganou! Ele estava dormindo.
A mulher franziu a testa, enxugando na manga do quimono o suor do queixo. Repetiu como um eco:
- Estava dormindo, sim.
- Depressa, Lu, faz uma hora que está com esses colchetes!
- Pronto – disse a outra, baixinho, enquanto recuava até a porta. – Não precisa mais de mim, não é?
- Espera! – ordenou a moça perfumando-se rapidamente. Retocou os lábios, atirou o pincel ao lado do vidro destapado. – Já estou pronta, vamos descer juntas.
- Tenho que ir, Tatisa!
- Espera, já disse que estou pronta – repetiu baixando a voz. – Só vou pegar a bolsa...
- Você vai deixar a luz acesa?
- Melhor, não? A casa fica mais alegre assim.
No topo da escada ficaram mais juntas. Olharam na mesma direção: a porta estava fechada. Imóveis como se tivessem sido petrificadas na chuva, as duas mulheres ficaram ouvindo o relógio da sala. Foi a preta quem primeiro se moveu. A voz era um sopro:
- Quer ir dar uma espiada, Tatisa?
- Vá você, Lu...
Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pelas têmporas verdes da jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão. O som prolongado de uma buzina foi-se fragmentando lá fora. Subiu poderoso o som do relógio. Brandamente a empregada desprendeu-se da mão da jovem. Foi descendo a escada na ponta dos pés. Abriu a porta da rua.
- Lu! Lu! – a jovem chamou num sobressalto. Continha-se para não gritar. – Espera aí, já vou indo!
E apoiando-se ao corrimão, colada a ele, desceu precipitadamente. Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la.
Lygia Fagundes Telles em Antes do Baile Verde, contos, Companhia das Letras.
RESTOS DO CARNAVAL
CLARICE LISPECTOR
Não, não deste último carnaval. Não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava a minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco a fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que eu jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse, pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – a ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que esta, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
Clarice Lispector em Felicidade Clandestina, José Olympio.
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