sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

“A INDESEJADA DAS GENTES”

POEMAS SOBRE A MORTE – PRIMEIRA EDIÇÃO



CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

(Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira.)
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SE TE QUERES

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

(Álvaro de Campos, em Poesia Completa de Álvaro de Campos (edição de bolso), Companhia das Letras.)
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OS ÚLTIMOS DIAS

Que a terra há de comer,
Mas não coma já.
Ainda se mova,
para o ofício e a posse.
E veja alguns sítios
antigos, outros inéditos.
Sinta frio, calor, cansaço:
pare um momento; continue.
Descubra em seu movimento
forças não sabidas, contatos.
O prazer de estender-se; o de
enrolar-se, ficar inerte.
Prazer de balanço, prazer de vôo.
Prazer de ouvir música;
sobre o papel deixar que a mão deslize.
Irredutível prazer dos olhos;
certas cores: como se desfazem, como aderem;
certos objetos, diferentes a uma luz nova.
Que ainda sinta cheiro de fruta,
de terra na chuva, que pegue,
que imagine e grave, que lembre.
O tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de aprender como vivem, de ajudá-las.
De ver passar este conto: o vento
balançando a folha; a sombra
da árvore, parada um instante
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.
E de olhar esta folha, se cai.
Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.
Tem na certa um cheiro, particular entre mil.
Um desenho, que se produzirá ao infinito,
e cada folha é uma diferente.
E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o silêncio global, mas não seja logo.
Antes dele outros silêncios penetrem,
outras solidões derrubem ou acalentem
meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um
torso de mil anos, recebe minha visita, prolonga
para trás meu sopro, igual a mim
na calma, não importa o mármore, completa-me.
O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz
da vida ficou mais forte, e os naufrágios
não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas;
que os objetos continuam, e a trepidação incessante
não desfigurou o rosto dos homens;
que somos todos irmãos, insisto.
Em minha falta de recursos para dominar o fim,
entretanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,
tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem,
tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.
E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar
partida menos imediata. Ah, podeis rir também,
não da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,
de outros virem depois, de todos sermos irmãos,
no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.
O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena ampola fulgurante, facho, lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.
A doença não me intimide, que ela não possa
chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.
Uma parte de mim sofre, outra pede amor,
outra viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou todas as comunicações, como posso ser triste?
A tristeza não me liquide, mas venha também
na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,
que lute lealmente com sua presa,
e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esquecimento, amor,
ao fim da batalha perdida.
Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.
E todo o mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo.
E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas antes com voz firme, os pensamentos
maduramente pensados, os atos
que atrás de si deixaram situações.
Que o riso sem boca não a aterrorize
e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
dedos torcidos, lívido
suor de remorso.
E a matéria se veja acabar: adeus composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, idéia de justiça, revolta e sono, adeus,
adeus, vida aos outros legada.

(Carlos Drummond de Andrade, em Nova Reunião – 23 Livros de Poesia, Edições BestBolso.)
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7 comentários:

  1. Por coincidência,estava fazendo uma pesquisa no google e apareceu entre milhões de informações um blogue com o seguinte título: http://necrologiofilia.blogspot.com/ e com o subtítulo "O sitio onde nunca te vais ver a ser famoso". Blogue lusitano, naturalmente. Há também uma informação valiosa: "Ainda não existem seguidores. Seja o primeiro." Por precaução não me inscrevi!
    Abraços
    Horacio

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  2. César, que espetáculo o seu blog! Adorei, vou virar fã.

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  3. Ora, Horácio, pode se inscrever, isso é superstição e, como diz o Millôr, "eu não acredito em superstição porque esse negócio dá um azar danado!"

    Abraço

    Cesar

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  4. Obrigado, Teresa.
    E volte sempre. As portas virtuais estão sempre abertas. E qualquer coisa a chave está debaixo do tapete on line.

    Beijo

    Cesar

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  5. Cá estava a analisar (e rever) algum destes geniais poemas e fico com Drummond e Álvaro de Campos (apesar da perene personificação de Bandeira) como os que melhor perscrutaram e se aprofundaram neste indesejado tema... Curiosamente, há três 'posts' atrás, falava sobre a morte, mais especificamente a de um amigo... Abração e vida longa e próspera ao seu blogue!

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  6. Salve, Dilberto,

    É difícil escolher os preferidos. Se te queres matar é um poema de uma beleza terrível, que chegar a doer na gente. Drummond é sublime quando se despede em "Adeus composição que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade". E Bandeira cumprimentando a morte: "Alô iniludível". Minha nossa!

    Abraços e volte sempre ao PATAVINA'S,

    Cesar

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