quinta-feira, 4 de outubro de 2012

THAT’S ALL, FOLKS!

Memórias: eis um tema que atravessa os tempos na literatura mundial. E não é difícil imaginar porque. Na literatura brasileira não é diferente. O PATAVINA’S traz aqui o final de quatro grandes livros de memórias ficcionais , escritos por quatro de nossos grandes autores: Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade e Memórias da Emília, de Monteiro Lobato. Além da óbvia conversa temática, esses autores trazem outros pontos de contato, como a ousadia na criação literária e o humor presente em todos esses livros.

25. CONCLUSÃO FELIZ

     A comadre passou com a viúva e sua tia quase todo o tempo do nojo, e acompanhou-as à missa do sétimo dia. O Leonardo compareceu também nessa ocasião, e levou a família à casa depois de acabado o sacrifício.
     Aquele aperto de mão que no dia do enterro de seu marido Luisinha dera ao Leonardo não caíra no chão a D. Maria, assim como também lhe não escaparam muitos outros fatos consecutivos a esse.
     O caso é que não lhe parecia extravagante certa ideia que lhe andava na mente.
     Muitas vezes, ao cair de ave-maria, quando a boa da velha se sentava a rezar na sua banquinha em um canto da sala, entre um padre-nosso e uma ave-maria do seu bendito rosário vinha-lhe à ideia casar de novo a fresca viuvinha, que corria o risco de ficar de um momento para outro desamparada num mundo em que maridos como José Manuel não são difíceis de aparecer, especialmente a uma viuvinha apatacada.
     Ao mesmo tempo que lhe vinha esta ideia lembrava-se do Leonardo, que amara a sua sobrinha no tempo da criançada, e que era, apesar de extravagante, um bom moço, não de todo desarranjado, graças à benevolência do padrinho barbeiro.
     Verdade é que se não sabiam bem as contas que seu pai havia feito a esse respeito; mas como era coisa que constava de verba testamentária, D. Maria nada via de mais fácil do que propor uma demanda, cujo resultado não seria duvidoso.
     Havia porém no meio de tudo uma circunstância que lhe desconsertava os planos. O Leonardo era soldado. Ora, soldado, naquele tempo, era coisa de meter medo.
     Quando D. Maria chegava a este ponto de suas meditações, abandonava-as e continuava o seu rosário.
     A comadre fazia quase exatamente os mesmos cálculos por sua parte, e também só esta única dificuldade se antolhava à realização de seus planos.
     Enquanto estas duas pensavam, os outros dois obravam.
     Luisinha e Leonardo haviam reatado o antigo namoro; e quem quiser ver coisa de andar depressa é ver namoro de viúva.
     Na primeira ocasião Leonardo quis recorrer a uma nova declaração; Luisinha porém fez o processo sumário, aceitando a declaração de há tantos anos.
     Sem que os vissem, viam-se os dois muitas vezes, e dispunham seus negócios.
     Infelizmente ocorria-lhes a mesma dificuldade: um sargento de linha não podia casar. Havia talvez um meio muito simples de tudo remediar. Antes de tudo, porém, os dois amavam-se sinceramente; e a ideia de uma união ilegítima lhes repugnava.
     O amor os inspirava bem.
     Esse meio de que falamos, essa caricatura da família, então muito em moda, é seguramente uma das causas que produziu o triste estado moral da nossa sociedade.
     Só essa dificuldade demorava os dois. Entretanto o Leonardo achou um dia o salvatério, e veio comunicar a Luisinha o meio que tudo remediava: podia ficar ele sendo soldado e casar, dando baixa na tropa de linha e passando-se no mesmo posto para as milícias.
     A dificuldade, porém, estava ainda em arranjar-se essa baixa e essa passagem: Luisinha encarregou-se de vencer esse embaraço.
     Um dia em que estava sua tia a rezar no seu rosário, justamente num daqueles intervalos de padre-nosso a ave-maria de que acima falamos, Luisinha chegou a ela e comunicou-lhe com confiança tudo que havia, fazendo preceder sua narração da seguinte declaração, que cortava a questão pela raiz:
     — Para lhe obedecer e fazer-lhe o gosto casei-me uma vez, e não fui feliz; quero ver agora se acerto melhor, fazendo por mim mesma nova escolha.
     Em breve, porém, conheceu que fora inútil sua precaução, porque D. Maria confessou que de há muito ruminava aquele mesmo plano.
     Combinaram-se pois as duas.
     A bondade do major inspirava-lhes muita confiança, e lembraram-se por isso de recorrer a ele de novo.
     Foram ter com Maria-Regalada, que mesmo na véspera lhes tinha mandado dar parte que se mudara da Prainha, e oferecia-lhes sua nova morada.
     A comadre, de tudo inteirada, fez parte da comissão.
     Quando entraram em casa de Maria-Regalada, a primeira pessoa que lhes apareceu foi o major Vidigal, e, o que é mais, o major Vidigal, em hábitos menores, de rodaque e tamancos.
     — Ah! - disse a comadre em tom malicioso, apenas apareceu a Maria-Regalada. - pelo que vejo isto por aqui vai bem...
     — Não se lembra - respondeu Maria-Regalada - daquele segredo com que obtive o perdão do moço? Pois era isto!...
     A Maria-Regalada tinha por muito tempo resistido aos desejos ardentes que nutria o major de que ela viesse definitivamente morar em sua companhia. Não atribuímos esta resistência senão a capricho, para não fazermos mau juízo de ninguém; o caso é que o major punha naquilo o maior empenho; teria lá suas razões. O segredo que a Maria-Regalada dissera ao ouvido do major no dia em que fora, acompanhada por D. Maria e a comadre, pedir pelo Leonardo, foi a promessa de que, se fosse servida, cumpriria o gosto do major.
     Está pois explicada a benevolência deste para com o Leonardo, que fora ao ponto de, não só disfarçar e obter perdão de todas as suas faltas, como de alcançar-lhe aquele rápido acesso de posto.
     Fica também explicada a presença do major em casa da Maria-Regalada.
     Depois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o pedido muito Justo, em consequência do fim que se tinha em vista. Com a sua influência tudo alcançou; e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis: um era a sua baixa de tropa de linha; outro, sua nomeação de sargento de milícias.
     Além disso, recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual o chamava para fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, que se achava religiosamente intacto.
     
                                                             ***

     Passado o tempo indispensável do luto, o Leonardo, em uniforme de sargento de milícias, recebeu-se na Sé com Luisinha, assistindo à cerimônia a família em peso.
     Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a do Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui o ponto-final.
                      
                                                             FIM

Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, domínio público.

Capítulo 160
Das Negativas

          Entre a morte de Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque era a genuína e direta inspiração do céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.
          Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais: não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis, Editora Record.


163
Entrevista Entrevista

          - Com que então o ilustre homem pátrio de letras não prossegue suas interessantíssimas memórias?
          - Não.
          - Seria permitido ao grosso público ledor não ignorar as razões ocultas da grave decisão que prejudica assim a nossa nascente literatura?
          - Razões de estado. Sou viúvo de D. Célia.
          - Daí?
          - Disse-me o dr. Mandarim que os viúvos devem ser circunspectos. Mais, que depois dos trinta e cinco anos, mezzo del camin di nostra vita, nossa atividade sentimental não pode ser escandalosa, no risco de vir a ser exemplo pernicioso às pessoas idosas.
          - O dr. Mandarim, com perdão da palavra, é uma besta!
          - Engano seu. O dr. Mandarim é bædeker de virtudes. Adoto-o.
          - A crítica vai acusá-lo e a posteridade clamar porque não continuou tão rico monumento da língua e da vida brasílicas no começo esportivo do século 20.
          - Já possuo o melhor penhor da crítica. Li as Memórias, antes do embarque, ao dr. Pilatos.
          - E ele?
          - O meu livro lembrou-lhe Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no estilo.

                                                                                                  Sestri Levante – Hotel Miramare. 1923.

LAUS DEO

Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade, Editora Globo.


          Bom. Vou acabar com estas memórias. Já contei tudo quanto sabia; já disse várias asneiras, já dei minhas opiniões filosóficas sobre o mundo e as minhas impressões sobre o pessoal aqui da casa. Resta agora despedir-me do respeitável público.
          Respeitável público até logo. Disse que escrevia minhas Memórias e escrevi. Se gostaram delas, muito bem. Se não gostaram, pílulas! Tenho dito.

Emília, Marquesa de Rabicó.

Sitío do Picapau Amarelo,

10 de agosto de 1936.

Memórias da Emília, Monteiro Lobato, Editora Brasiliense.

                                                        Meu e mail: cesarcar@uninet.com.br


Cesar Cardoso, 2012. Todos os direitos e esquerdos reservados. Que os piolhos infectados de 18 mil camelos infestem as partes pudendas de quem publicar algum texto daqui sem avisar nem dar meu crédito.

Um comentário:

  1. Massa. Conteúdo bem selecionado, gostei. Esse lance da memória é bem bacana.

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