quinta-feira, 12 de julho de 2012

AVISO AOS NAUFRAGANTES

  (Detalhe da capa de O Amor Acontece)

Minha amiga e escritora Lúcia Bettencourt acaba de lançar um novo livro: O Amor Acontece. Lúcia é autora de A Secretária de Borges (Prêmio SESC de Literatura 2005 – Contos) e Linha de Sombra (2008), ambos publicados pela Record e vive dando aulas e oficinas de contos pelo planeta. O Amor Acontece é um romance delicioso, que eu recomendo. Mas tem alguém que entende do riscado mesmo e vai apresentar o livro pra vocês.

“A carioca Lúcia Bettencourt já se definiu como uma escritora que vai descobrindo suas histórias entre leituras, caminhadas e viagens sem muito método. Não por acaso, é uma viagem, embora imaginária – mas com método e risco calculado -, o motivo deste seu livro, que começa com uma proposta editorial: um mês em Veneza, para bolar uma história de amor, que depois poderá até ser filmada. A partir daí a trama passa a ter em primeiro plano a relação entre Fábio, o proponente do projeto, e Mariana, a escolhida para realizá-lo, intercalada pela entrada em cena de Paula e Francesco, que passarão a ser os protagonistas do romance buscado.
[...]
Pode-se dizer deste livro que é uma espécie de making-off de uma produção cujo desafio é contornar o dejà-vu do tema e da cenografia em causa. Ou ainda que ele reflete a experiência da autora com oficinas literárias, nas quais sempre procura transmitir os cavacos do ofício. Para ela, porém, se trata de “uma historinha divertida, que mistura melodrama com algumas conversas bem desinibidas”.
Simples assim. E com a habitual linguagem direta, sempre em busca da palavra exata, e diálogos ágeis de Lúcia Bettencourt. Divirta-se."  

ANTÔNIO TORRES

Capítulo I

— Gostou da idéia? Basta escrever uma história de amor.
— Mas… por que de amor?
—Porque vende! E porque é fácil, ora! Tudo o que você tem a fazer é ficar um mês hospedada na cidade, e, neste tempo, bolar uma história de amor, que depois até poderá ser filmada.
— E quem é que diz que uma história de amor é fácil? Inda mais numa cidade estranha. Não conheço ninguém por lá. Não falo essa língua cantada deles. Sou tímida. Vai ser impossível!
— Porra! Pára de doce! Um trabalho desses mais parece um prêmio! Toda uma população de escritores frustrados e invejosos dando qualquer coisa para estar em seu lugar e você aí reclamando que não dá. Escreve uma merda qualquer, põe uns nomes de ruas e de praças famosas e entrega. O dinheiro está garantido mesmo! Ninguém está querendo que você se apaixone, e muito menos querendo que se apaixonem por você. O negócio é inventar uma história.
— Mas é isso aí. Ir para lá, uma cidade assim tão romântica.... Tenho medo de arrumar complicações sentimentais! Minha vida está tão boa, tão descomplicada…
— Caraca! Não confunda vida real com ficção! Não é para você se envolver com ninguém, é só para você absorver a cor local. Será que vou ter que te ensinar tudo?
— Como, ensinar?
— Olha aí. Imagina a história: Você está em Veneza...
—Tá vendo? Já complica tudo. Veneza é cheio de clichês...
— Clichê facilita, pombas! Até entregador de pizza vira uma maravilha quando está numa gôndola. Põe o cara numa gôndola, descreve os músculos dos braços dele se destacando na camiseta listrada, pinga uma ou duas gotas de suor descendo lentamente pelo pescoço grosso do tipo e...
— Já sei, mas eu nunca me apaixonaria por um entregador de pizza numa gôndola, por mais tesudo que o cara fosse.
— Por quem é que você se apaixonaria?
— Deixa eu ver...
— Anda logo! Vamos decidir logo esse enredo que eu tenho que dar aula.
— Bem, acho que gostaria de me apaixonar por um poeta. É, um poeta. Inteligente, mas sem ficar se mostrando de mais. Meio inseguro. Sim, mas só às vezes. Mais para calado, mas de um silêncio prenhe de significados...
— Era você que estava falando alguma coisa contra clichês?
— Eu sei, mas, na verdade, conheci um cara assim na adolescência. Ele ainda não era poeta, era só meu colega de escola. Mas já gostava de poesia, e ficava lendo uns livros de Rimbaud...
— O cara era bicha.
— Bicha nada! Lia Rimbaud e lia Bandeira, e lia João Cabral.
— Como era a cara dele?
— Sei lá. Era uma cara de adolescente, cheia de espinha.
— E como é que você se apaixonou por um cara cheio de espinhas?
— Mas quem foi que disse que eu me apaixonei? Nós éramos bons amigos...
— Que idade vocês tinham?
— Uns dezesseis, ou dezessete.
— Um cara normal, cheio de hormônio, nessa idade, sendo apenas “amigo” de uma gatinha?
— Quem disse que eu era gatinha?
— Para um cara normal, de dezessete anos, toda menina dessa idade que se disponha a escutá-lo falar de Rimbaud, é gatinha. Gatinha não. Gatésima!
— Tudo bem. Eu até que não era das piores, mesmo. E tinha um peitão… Meu peito cresceu antes do peito de todas as garotas da turma.
— E que fim levou?
— Como? O que é que você quer dizer com isso? Está criticando o meu peito? Olha o ditado, hein? “Quem desdenha quer comprar!”
— Comprado não. Mas se você der...
— Me respeite. Você está debochando de mim.
— Não! Estou tentando te mostrar como é fácil cumprir sua tarefa. Você curte umas férias e ainda escreve uma história de amor, sem se desgastar.
— Então, vamos lá. Digamos que já estou em Veneza. Ele é poeta.
— Sim, e tem dezessete anos.
— NÃO! Imagine se eu ia me apaixonar, hoje em dia, por um fedelho cheio de espinhas na cara!
— Então ele tem sessenta e sete anos...
— Por que sessenta e sete?
— Sei lá. Gostei do número. E dá para fazer uma história legal, tipo “Morte em Veneza”, uma última paixão antes do fim. O gran finale de uma vida!
— Não. Você está com fixação em veadagem. Imagina, meu poeta cheio de maquiagem derretendo com o calor! Nunca. Prefiro não me apaixonar.
— Assim não dá. Você põe defeito em tudo o que eu falo, mas não colabora com nada.
— Desculpe, vai. Mas por que você não põe o poeta assim da sua idade?
— Mas o poeta é seu! Você dá a ele a idade que quiser. Então, ele tem a minha idade. Nasceu no mesmo ano que eu, é de uma boa safra!
— Isso mesmo.
— Mas é pálido.
— Pálido nada. Ele é poeta mas adora andar à beira-mar. Bem, no caso, à beira dos canais. Acorda cedo todos os dias e vai fazer uma caminhada. Ele caminha pelas pontes. Está sempre atravessando pontes...
— Uma mania estranha, mas até que combina com um poeta. Isso pode se tornar uma metáfora da própria poesia que ele pratica.
— Taí! Gostei. E ele trabalha, e é casado, tem dois filhos, um do primeiro e outro do segundo casamento...
— Calma, calma. Isso aqui não é biografia. É história de amor. Qual é a graça de colocar como herói um homem casado? E, pior, um homem duplamente casado, tendo que lidar com ex-mulher, pensão, TPM da nova mulher...
— Ai, não corta o meu barato! Além do mais, adultério é sempre mais interessante de que um namorico desimpedido! Se você pensar nas grandes histórias de amor, tem sempre um adultério no meio. Veja Madame Bovary! Veja Anna Karenina!
— Isso é teoria de francês.
— Pera lá! Anna Karenina é de Tolstói. Russo!
— Eu sei. Mas a Rússia, na época dele, podia ser considerada uma sucursal da França.
— Você nunca dá o braço a torcer, né?
— Prá quê? E, além do mais, estou com a razão. Os russos ricos pensavam que estavam na França. No próprio romance todo o mundo só fala francês, só veste francês, só...
— Tudo bem, mas ao menos você reconhece o valor de um bom adultério?
— Hoje em dia esta palavra nem se usa mais. A-dul-té-ri-o. Que coisa mais antiga! Mas acho que gosto da idéia de um amor que venha para resgatar o seu poeta de uma vida que se tornou muito banal. Um poeta, funcionário público, casado e com filho... só Drummond.
— Pois é, está vendo? O Drummond tinha uma amante!
— Outra palavra fora de moda. A-man-te. Você está querendo escrever algo no gênero de Nélson Rodrigues?
— Não. Detesto estas patologias sexuais suburbanas.
— Então vamos recomeçar. Esta história de amor já está nascendo muito antiga. Só que agora preciso ir dar aula. A gente se fala.
— Ah, não. Vamos marcar hora e lugar para a gente se encontrar. Esse negócio de a gente se fala é muito vago, vou ficar na ansiedade. Vamos jantar, mais tarde?
— Hoje não dá. Tenho que levar a Clarinha ao dentista. Prometi à mãe dela.
— Então a gente almoça uma saladinha amanhã.
— Nem pensar! Amanhã é dia de jogo do Brasil. Já me programei todo para assistir. Convidei uns amigos, comprei cerveja…
— Mas esse jogo nem vale para nada. É só um amistoso. Você dá mais importância a um jogo vagabundo do que à nossa amizade? Cara, preciso de você. Não me deixa na mão.
— Não estou te deixando na mão. Pelo contrário! Não se esqueça que fui eu que dei a maior força para você arrumar essa boa. Indiquei teu nome, mexi os pauzinhos… E agora estou aqui, dando uma de “personnal editor” prá tua história. Só que jogo do Brasil é minha terapia. Paro tudo e vou ver.
— Cara, você é de uma insensibilidade total! In-sen-si-bi-li-da-de. Não é assim que você gosta de dizer essas palavrinhas antigas? Pois, é. É antiga, mesmo, mas vem ao caso e cai perfeitamente aqui. Você é um insensível, um homem de palha, sacou? A gente te toca assim, ó, e você estala, cheio de palha seca, sem vida.
— Olha a agressão!
— Agressão o caramba! Quem é que agride quem? Você é que me agride com a sua indiferença e seu pouco caso. Não sei como é que eu consegui permanecer tua amiga todos esses anos. Vai. Anda logo. Não quero mais falar com você. Nunca mais! Prá mim chega! Some! E não adianta me ligar.

Capítulo II

Chegar a Veneza de trem pode parecer um contra-senso, mas é a melhor maneira de mergulhar diretamente na atmosfera da cidade. A estação agitada, os viajantes gritando suas frases longas e cantadas, o painel de avisos mudando freneticamente os dizeres, e os ruídos característicos de peças de metal se entrechocando, de freios sendo acionados, de motores se pondo em funcionamento, todas essas coisas estonteiam os viajantes e os deixam despreparados para a primeira visão da cidade, obtida ao sair do prédio da estação, datado de meados do século XIX. Com sua luz característica, a cidade parece um cenário pintado do outro lado do cais movimentado, onde toda a Europa parece convergir numa tentativa infrene de ocupar os hotéis que, dependendo de sua localização, podem cobrar tarifas de mais de mil dólares por noite.

Foi nesse burburinho que desembarquei, vinda de Milão, depois de atravessar quase meio globo terrestre de avião e de superar as barreiras linguísticas numa estação de trem hostil, ainda estonteada pelo jet-lag. As cinco horas que me foram retiradas do dia haviam se transformado em cobras, que invadiam meu cérebro e se compraziam em espremer a delicada massa pensante, até retirar dela toda e qualquer coerência. Irritada com o extravio de minha bagagem, com o rosto devastado pela falta de sono, as pernas inchadas, e precisando desesperadamente de um banho que me devolvesse a sensação de pertencer a uma sociedade civilizada, estava determinada a ignorar os encantos que a cidade lagunar tinha a oferecer, e a ir direto para o hotel, onde recuperaria minha humanidade. Estava determinada a não me deixar encantar pela beleza da cidade.

Veneza era uma adversária mais poderosa do que havia julgado e me recebeu com um sol primaveril, que desmaiava ainda mais as cores desgastadas dos palácios e das paredes descascadas das vilas e igrejas. Era uma sensação diferente, pois, mesmo brilhando e desenhando caprichosamente os ornamentos excessivos dos prédios, o astro não irradiava calor. Estremecendo ligeiramente, aconcheguei meu agasalho insuficiente, e me indaguei quanto tempo levariam minhas malas para me alcançar. Com otimismo pensei que talvez não precisasse gastar o dinheiro da diária, comprando um desnecessário casaco em euros. Corajosamente, enfrentei a fila do vaporetto que havia de me levar até as proximidades de meu hotel. Embarquei e fiquei imprensada entre pessoas de todas as idades, algumas parecendo caricaturas. Tentei respirar o menos possível enquanto estivesse dentro do barco, para escapar dos fortes odores que tornavam o ar do recinto irrespirável. Em nenhum momento pensei que o cheiro talvez se desprendesse de mim mesma, há mais de vinte e seis horas sem banho.

Foi com alívio que escutei o nome da Piazza de San Marco, meu destino, e reconheci, pelas apagadas lembranças de uma antiga viagem ou talvez das muitas fotos e quadros que havia examinado, a esguia coluna, no alto da qual o leão, símbolo da antiga república, se empertigava. A maré cheia havia coberto toda a praça com a água salobra dos canais. Meus sapatos foram incapazes de manter sua integridade, e eu sentia o líquido gelado molhando minhas meias, insinuando-se por entre os meus artelhos. Antes mesmo de passar pela frente da catedral, já havia começado a espirrar.

O hotel em que os organizadores do projeto me haviam hospedado ficava numa viela por trás da arcada da praça. Programada que ia para escrever uma história de amor, estava com a cabeça cheia de episódios românticos que revisitara em velhos filmes e livros. *Um deles era “Um quarto com vista”, história passada em outro ícone do romantismo italiano: Florença. As histórias que conhecia e que eram ambientadas em Veneza, eram todas trágicas, ou grandes farsas. Shakespeare, por exemplo, tinha adoração pela Itália, e por Veneza em especial, mas suas histórias não me serviam como modelo. Os ciúmes excessivos de Otelo, sua incapacidade em confiar na mulher amada, e a facilidade com que acreditava em qualquer insinuação do amigo, me irritavam. Ou as artimanhas de trocas de sexo e os artifícios usurários de Shylock, e companhia, em O mercador de Veneza, ao invés de me fazerem rir, levantavam questões que incomodavam minha modernidade politicamente correta.

Caminhei apressada, tentando chegar ao abrigo das arcadas, e depois me esgueirar por baixo das sacadas. Ali estava eu, caminhando com os pés encharcados por uma ruela estreita e úmida, onde o cheiro de mofo suplantava meus próprios odores, e, nas circunstâncias, dando graças a Deus por não estar carregando a minha mala. Olhei para a placa onde as figuras de Arlechinno e Colombina dançavam entre as letras que anunciavam: Albergho della Commedia. Não sei como criei coragem para enfrentar a porta manchada e a escada gasta que me levariam ao meu quarto, que, sem dúvida nenhuma, não tinha vista para nada. E era ali que passaria os próximos trinta dias de minha vida.

CAPÍTULOS INICIAIS DE “O AMOR ACONTECE”, ROMANCE DE LÚCIA BETTENCOURT, EDITORA RECORD.



Já está nas melhores casas do ramo meu novo livro CAPOEIRA CAMARÁ, ilustrado pela estupenda Graça Lima e com uma produção editorial de primeira da editora Paulus, o que resultou num belo livro. Em CAPOEIRA CAMARÁ, Ana Olívia é uma adolescente enrolada com sua escola, sua casa, seus amigos... Junto com o mestre de capoeira Sorriso ela vai viver uma grande aventura, que mudará sua vida e, de quebra, vai conhecer a história da capoeira no Brasil. Para isso, ela vai viajar... no tempo!

Pra dar um gostinho, aí vai o primeiro capítulo do livro.

CAPÍTULO 1: QUANDO TUDO DÁ ERRADO.

     Na semana passada, a diretora disse pra Ana Olívia que ia expulsá-la da escola se ela saísse da sala mais uma vezinha. E não é que essa vezinha acabou de acontecer?
     Ana Olívia estava num papo animado com o Zé Moita, colega dela que estava sentado bem do seu lado. Só que isso não aconteceu no intervalo, mas no meio da aula de português. E pela quinta vez. Daí a professora interrompeu o que estava dizendo:
     – Ana Olívia, é a sexta vez que eu peço pra você calar a boca e prestar atenção.
     Ana Olívia disse que essa era a quinta, e não a sexta vez que a professora falava com ela. E completou:
     – Isso prova que eu estou prestando a maior atenção no que a senhora fala, viu?
     – Que ótimo, era isso que eu queria escutar.
     Foi o que a professora respondeu, e Ana Olívia já respirou aliviada, pensando: “me livrei dessa”. Só que a professora não parou por aí:
     – Porque assim você vai poder explicar pra turma toda o que é o sujeito inexistente.
     Ana Olívia emendou no ato:
     – Pô, teacher! Se esse carinha aí, esse tal sujeito, não existe, como é que eu vou explicar? Quem sou eu, teacher? Quem sou eu?
     Todo mundo caiu na gargalhada. Até a professora riu. E ainda rindo, falou bem assim:
     – Ótima piada, Ana Olívia. Faz uma coisa: aproveita e vai contar essa sua piada genial lá na sala da diretora – e antes que Ana Olívia tentasse se defender, ela emendou:
     – Anda, vai, pode sair. A-go-ra!
     E quando a professora de português falava qualquer palavra so-le-tran-do, não adiantava mais discutir com ela. Isso todo mundo sabia, até a Ana Olívia. Por isso, ela pegou seu material, saiu e foi andando bem devagarinho. Andando e pensando, cada vez mais devagar, até que mudou de direção e, em vez de ir pra sala da diretora, tratou foi de fugir da escola, por um buraco que havia atrás de umas tábuas velhas, num canto do muro, lá no final do pátio e que pouca gente conhecia. (Só Ana Olívia e umas cinco amigas conheciam. Afinal, elas é que tinham feito aquele buraco. E tinha dado um trabalho danado!)
     Do lado de fora, foi andando sem rumo. Até que chegou ao portão de uma casa que ela conhecia, mas onde nunca tinha entrado. Era a Associação Quilombola. Mas ela nem perguntou nada e foi entrando direto. Estava estranha, se sentia como um robô, obedecendo a ordens que nem sabia de onde vinham. Parou em frente a uma roda de pessoas que cantavam e marcavam o ritmo da música com palmas, um berimbau e vários outros instrumentos. Tinha um reco-reco, dois pandeiros, um agogô e um atabaque. No meio do grupo havia alguém que parecia comandá-lo. E ele abriu um largo sorriso. Ele sempre sorria quando ia começar a falar. Por isso, era conhecido como Mestre Sorriso.
     – Olha só, pessoal, hoje é um dia especial, estamos recebendo a visita da Ana Olívia.
     Para Ana Olívia, Mestre Sorriso era mais um adulto debochando dela. Daí ela respondeu:
     – Eu não tô visitando ninguém. Nem sei o que eu vim fazer aqui, tá legal?
     – Tá ótimo – disse o mestre. – Se você não sabe o que veio fazer aqui, aproveita e fica com a gente. Quem sabe você descobre?
     Mestre Sorriso continuava sorrindo. E Ana Olívia ia ficando cada vez mais quente por dentro. Ela conhecia bem aquilo. Quando a provocavam, ia sentindo um calor por dentro, um calor que ia subindo pelo seu corpo, ia tomando conta dela, até invadir sua cabeça. Aí é que a coisa piorava. Foi por isso que ela respondeu assim:
     – Descobrir o quê? Que aqui tem um monte de palhaço que fica brincando de dar pulinho de um lado pro outro? Isso lá é jeito de brigar? Isso é briga de mané, de mulherzinha.
     – Mas, se é briga de mulher, tá feita pra você. Por que você não participa? Vamos lá, pessoal?
     Foi bem assim que Mestre Sorriso respondeu. O berimbau e os outros instrumentos voltaram a tocar, as pessoas voltaram a marcar o ritmo com palmas e todos cantaram:

Cheguei numa perna agora,
Vim jogando da Bahia.
Vim jogando da Bahia, camará.

Trouxe a lição de Angola,
Capoeira é quem vadia.
Capoeira é quem vadia, camará.

     Aquilo só serviu pro calor ferver de vez na cabeça de Ana Olívia. Sem pensar, ela partiu pra cima de Mestre Sorriso, com chutes e socos. Se pudesse, ela daria unhada e até mordida. Mas o problema é que ela não alcançava o mestre. Nunca. O danado ia se esquivando, se esquivando sempre. Ana Olívia tentava se concentrar e atingi-lo, mas o cara parecia até que tinha asas nos pés. E a música parecia ficar mais alta. Era como se o atabaque, o agogô, os dois pandeiros e o reco-reco não parassem nunca de tocar bem dentro da cabeça dela. Sem parar, sem parar, sem parar. E o som do berimbau? Era uma corda de metal se enrolando e se enrolando em volta de Ana Olívia. Até que ela mesma não se Aguentou mais e caiu, cansada, mal conseguindo respirar. Queria xingar Mestre Sorriso e todo mundo ali, mas o ar lhe faltava na garganta apertada. Ficou agachada, recuperando o fôlego, olhando o chão e não vendo nada. Quando finalmente tornou a encher os pulmões, saiu correndo.
     Ana Olívia não olhava pra trás. Andou, andou, andou até anoitecer. E só então voltou pra casa. Quando foi entrando, ficou imaginando qual seria a bronca que a mãe lhe daria: “você não vai mais a baile funk nenhum!”. Ou: “você está de castigo até o fim do ano!”. Ou, pior ainda: “vou te tirar da escola e te botar pra trabalhar”. Mas o que a mãe falou foi:
     – Ana Olívia, você foi expulsa da escola.
     E mais nada.
     No dia seguinte de manhã, Ana Olívia não encontrou a mãe. Procurou pelo bilhete que ela sempre deixava quando tinha que sair ainda de madrugada para pegar o ônibus a tempo de chegar à casa da patroa e preparar o café da manhã. Mas também não havia bilhete nenhum. E pela primeira vez num dia de semana, ela saiu de casa sem os cadernos e os livros da escola.
     Tinha passado a noite toda sem dormir. Foi andando sem rumo – pelo menos era o que ela achava – até estar diante do mesmo portão do dia anterior, Onde se lia: “Associação Quilombola”. Entrou e foi espiando sala por sala. Numa delas encontrou Mestre Sorriso, que acabava de abrir um armário e tirava de lá seu berimbau. E Ana Olívia se pegou dizendo:
     – Você vai me ensinar capoeira.
     – Vou mesmo? Mas que Maravilha! Só que eu posso saber por que você quer aprender capoeira?
     – Eu fiquei pensando a noite toda. Se eu tiver asas nos pés, que nem você tem, ninguém mais me alcança. Eu posso me vingar de todo mundo e ninguém me alcança.
     – Pode ser, pode ser. Mas por que você quer se vingar de todo mundo? Isso dá muito trabalho, viu?
     – Todo mundo vive tripudiando e zombando de mim. Os professores, a diretora, minha mãe. Ontem até você ficou me zoando. Me fez de palhaça, até eu cair na frente daquelas pessoas todas.
     – É, talvez você tenha razão, mas nesse caso é melhor pra mim não te ensinar capoeira, não. Senão, na hora em que você conseguir me alcançar, vai querer fazer picadinho de mim.
     – Vou mesmo.
     – Tá certo, tá certo. Mas você acha mesmo que a capoeira é a melhor forma pra fazer picadinho de todo mundo?
     – Por enquanto é a única que eu conheço. Você pergunta muito, hein?
    – É verdade. Mas sabe que você responde bem? – Mestre Sorriso empunhou seu berimbau, o caxixi e a vareta, mais o dobrão de bronze e deu um toque, que ficou vibrando no ar.
     – E a capoeira, você sabe de onde vem?
     – Eu não. Vai ver alguém inventou. Sei lá.
     O mestre deu mais um toque no berimbau, e o som novamente vibrou na sala. Ana Olívia se sentiu estranha, até pensou que o calor ia voltar a tomar conta dela. Mas não, agora era alguma coisa diferente que começava aos poucos a acontecer. Ela ainda não sabia o quê. Mestre Sorriso continuou:
     – É, alguém deve ter inventado. Mas quem terá sido, hein?
     – Não faço a menor ideia. Eu não sei quem é que inventa essas coisas. Algum maluco que não tinha o que fazer.
     – E se a gente fosse atrás desse maluco?
     – Pra quê?
     – Ué, se foi ele que inventou, ele vai te ensinar muito melhor do que eu.
     E você vai poder sair rapidinho por aí fazendo os teus picadinhos. Você não acha? – E Mestre Sorriso deu mais um toque no berimbau. Ana Olívia se sentia confusa, confusa. E pensava: “o que será que tá acontecendo?”.
     – Você quer descobrir como nasceu a capoeira? – Outro toque. Aquele som! Ana Olívia começou a desconfiar que era ele que a deixava zonza.
     – Vamos, você está com todo o tempo do mundo. Foi expulsa da escola, né?
     Ana Olívia ia perguntar como ele sabia daquilo, mas acabou só balançando a cabeça para dizer que sim. E Mestre Sorriso continuou:
     – Eu levo você lá.
     Ana Olívia ia perguntar: “lá aonde?”, mas não conseguiu. Algo muito estranho estava realmente acontecendo naquela sala. Ana Olívia tinha a sensação de que estava flutuando. Como podia? Ela olhou em volta e viu que Mestre Sorriso também flutuava, enquanto tocava mais e mais seu berimbau.
     – Eu tô sonhando que tô voando – disse Ana Olívia.
     – Mas é um sonho bem real esse, não é? E você não disse que queria ter asas nos pés?
     – Mas como é que você faz isso? Você é mágico?
     – Eu não. Mas meu berimbau é – e Mestre Sorriso tocou mais forte, enquanto cantava:

– Berimbau foi instrumento
Que nasceu lá na Bahia.
Que nasceu lá na Bahia, camará.

Berimbau é um invento
Que tem ritmo e magia.
Que tem ritmo e magia, camará.

E ele sempre vai cantar
Pra quem o acaricia.
Pra quem o acaricia, camará.

     E os dois foram girando e voando e voando e girando pra fora daquela sala e da casa. Ana Olívia só teve tempo de perguntar:
     – E pra onde ele tá levando a gente, Mestre Sorriso?
     Mas não escutou a resposta.


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