quinta-feira, 4 de outubro de 2012

CONVERSA TAMBÉM É LITERATURA

            Ao preparar essa nova edição do PATAVINA’S fui notando que havia muitas conversas. Mulheres conversando através da poesia, escritores através dos temas de seus textos, seja pelo mistério presente nos contos meu e de Pedro Veludo, seja pela prosa poética como construção literária, caso de Mia Couto e Eduardo Galeano. Conversas em forma de memórias, de frases ou de poemas visuais. Entre Machado, Oswald e Manuel Antonio de Almeida. Entre Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes e Ivan Lessa.
          O Aurélio define conversa como “ajuste de contas, entendimento” ou “mentira”. Nada mais literário. Então, estamos conversados?

Cesar Cardoso

CONVERSAS POÉTICAS

          Eduardo Galeano e Mia Couto têm, no mínimo, dois continentes, dois oceanos e dois idiomas a separá-los. E no entanto conversam e se aproximam em sua construção de uma prosa sempre poética. Os textos que aqui estão são de seus mais recentes livros.
          Além deles, quatro poetas. Marina Colasanti fala de nossa condição mais humana, a de passageiros em trânsito. A polonesa Wislawa Szymborska continua em trânsito e mergulha no tempo, revisitando a mulher de Lot, na Bíblia. Ana Martins Marques pensa a própria palavra e sua força e, por fim, Maria Helena Castro Azevedo estica até o fim essa corda que nos une ao tempo e à falta que nos impulsiona... para onde?

Janeiro
12
A urgência de chegar

          Nesta manhã do ano de 2007, um violinista deu um concerto numa estação de metrô da cidade de Washington.
          Apoiado na parede, perto de um cesto de lixo, o músico, que mais parecia um rapaz do bairro, tocou obras de Schubert e outros clássicos, durante três quartos de hora.
          Mil e cem pessoas passaram sem deter seu passo apressado. Sete pararam durante pouco mais de um instante. Ninguém aplaudiu. Houve umas crianças que quiseram ficar, mas foram arrastadas pela mãe.
          Ninguém sabia que ele era Joshua Bell, um dos virtuosos mais cotados e admirados do mundo.
          O jornal The Washington Post havia organizado aquele concerto. Foi sua maneira de perguntar:
          - Você tem tempo para a beleza?

Junho
9
Sacrílegas

          No ano de 1901, Elisa Sanchez e Marcela Gracia contraíram matrimônio na igreja de São Jorge, na cidade galega de A Corunha.
          Elisa e Marcela se amavam às escondidas. Para normalizar a situação, com boda, sacerdote, certidão e foto, foi preciso inventar um marido: Elisa se transformou em Mario, vestiu roupa de cavalheiro, cortou os cabelos e falou com outra voz.
          Depois, quando ficaram sabendo, os jornais da Espanha inteira puseram a boca no mundo diante daquele escândalo asquerosíssimo, essa imoralidade desavergonhada, e aproveitaram aquela tão lamentável ocasião para vender como nunca, enquanto a Igreja, enganada em sua boa-fé, denunciava para a polícia o sacrilégio cometido.
          E desatou-se a caçada.
          Elisa e Marcela fugiram para Portugal.
          Caíram presas na cidade do Porto.
          Quando escaparam da cadeia, trocaram de nomes e foram mar afora.
          Na cidade de Buenos Aires perdeu-se a pista das fugitivas.

Julho
16
Meu querido inimigo

          A camisa do Brasil era branca. E nunca mais foi branca, desde que a Copa de 50 demonstrou que essa era a cor da desgraça.
          Duzentas mil estátuas de pedra no Maracanã: a final tinha acabado, o Uruguai era o campeão do mundo, e o público não se mexia.
          No campo, alguns jogadores ainda perambulavam.
          Os dois melhores, Obdúlio e Zizinho, se cruzaram.
          Se cruzaram, se olharam.
          Eram muito diferentes. Obdúlio, o vencedor, era de ferro. Zizinho, o vencido, era feito de música. Mas também eram muito parecidos: os dois tinham jogado a copa inteira machucados, um com o tornozelo inflamado, o outro com o joelho inchado, e de nenhum deles ninguém ouviu uma única queixa.
          No fim do jogo não sabiam se trocavam uma porrada ou um abraço.
Anos depois, perguntei a Obdúlio:
- E você tem visto o Zizinho?
- Tenho. De vez em quando. Fechamos os olhos e nos vemos.

Dezembro
20
O encontro

          A porta estava fechada:
          - Quem é?
          - Sou eu.
          - Não conheço você.
          E a porta continuou fechada.
          No dia seguinte:
          - Quem é?
          - Sou eu.
          - Não sei quem você é.
          E a porta continuou fechada.
          E no outro dia:
          - Quem é?
          - Sou você.
          E a porta se abriu.

          (Do poeta persa Farid al-din Attar, nascido em 1119, na cidade de Nishapur)

Eduardo Galeano, em Os Filhos dos Dias, L&PM Editores.


A Guerra dos Palhaços

          Uma vez dois palhaços se puseram a discutir. As pessoas paravam, divertidas, a vê-los.
          - É o quê?, perguntavam.
          - Ora, são apenas dois palhaços discutindo.
          Quem os podia levar a sério? Ridículos, os dois cómicos ripostavam. Os argumentos eram simples disparates, o tema era uma ninharice. E passou-se um inteiro dia.
          Na manhã seguinte, os dois permaneciam, excessivos e excedendo-se. Parecia que, entre eles, se azedava a mandioca. Na via pública, no entanto, os presentes se alegravam com a mascarada. Os bobos foram agravando os insultos, em afiadas e afinadas maldades. Acreditando-se tratar-se de um espetáculo, os transeuntes deixavam moedinhas no passeio.
          No terceiro dia, porém, os palhaços chegavam a vias de facto. As chapadas se desajeitavam, os pontapés zumbiam mais no ar que nos corpos. A miudagem se divertia, imitando os golpes dos saltimbancos. E riam-se dos disparatados, os corpos em si mesmo se tropeçando. E os meninos queriam retribuir a gostosa bondade dos palhaços.
          - Pai, me dê as moedinhas para eu deitar no passeio.
          No quarto dia, os golpes e murros se agravaram. Por baixo das pinturas, o rosto dos bobos começava a sangrar. Alguns meninos se assustaram. Aquilo era verdadeiro sangue?
          - Não é a sério, não se aflijam, sossegaram os pais.
          Em falha de trajetória houve quem apanhasse um tabefe sem direção. Mas era coisa ligeira, só servindo para aumentar os risos. Mais e mais gente ia juntando.
          - O que se passa?
         - Nada. Um ligeiro desajuste de contas. Nem vale a pena separá-los. Eles se cansarão, não passa o caso de uma palhaçada.
          No quinto dia, contudo, um dos palhaços se muniu de um pau. E avançando sobre o adversário lhe desferiu um golpe que lhe arrancou a cabeleira postiça. O outro, furioso, se apetrechou de simétrica matraca e respondeu na mesma desmedida. Os varapaus assobiaram no ar, em tonturas e volteios. Um dos espectadores, inadvertidamente, foi atingido. O homem caiu, esparramorto.
          Levantou-se certa confusão. Os ânimos se dividiram. Aos poucos, dois campos de batalha se foram criando. Vários grupos cruzavam pancadarias. Mais uns tantos ficaram caídos. Entrava-se na segunda semana e os bairros em redor ouviram dizer que uma tonta zaragata se instalara em redor de dois palhaços. E que a coisa escaramuçara toda a praça. E a vizinhança achou graça. Alguns foram visitar a praça para confirmar os ditos. Voltavam com contraditórias e acaloradas versões. E a vizinhança se foi dividindo, em opostas opiniões. Em alguns bairros se iniciaram conflitos.
          No vigésimo dia se começaram a escutar tiros. Ninguém sabia exatamente de onde provinham. Podia ser de qualquer ponto da cidade. Aterrorizados, os habitantes se armaram. Qualquer movimento lhes parecia suspeito. Os disparos se generalizaram. Corpos de gente morta começaram a se acumular nas ruas. O terror dominava toda a cidade. Em breve, começaram os massacres.
          No princípio do mês, todos os habitantes da cidade haviam morrido. Todos exceto os dois palhaços. Nessa manhã, os cómicos se sentaram cada um seu canto e se livraram das vestes ridículas. Olharam-se, cansados. Depois, se levantaram e se abraçaram, rindo-se a bandeiras despregadas. De braço dado, recolheram as moedas nas bermas do passeio. Juntos atravessaram a cidade destruída, cuidando para não pisar os cadáveres. E foram à busca de uma outra cidade.

Mia Couto, em Estórias abensonhadas, Companhia das Letras.


E logo

Taxia na pista
o avião que me leva.
Do lado de fora do campo
os muitos vagões de um comboio
avançam nos trilhos.
Duas forças se lançam
no mesmo sentido
irmãs por segundos,
e logo
o avião se desprende do chão
as rodas se escondem no ventre
o avião faz-se ave.
Abaixo
O trem lentamente se torna
um traço de lápis
no verde.

 
Colheita

Trago para casa
um poema,
a viagem já
valeu a pena.

Marina Colasanti, em Passageira em Trânsito, Record.


A mulher de Lot

Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo que vivia
Serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
E caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caía do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.

Wislawa Szymborska em [poemas], tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras.


Resistência à teoria

um galo de lã
não tece a manhã

flores de tecido
não brotam no vestido

mapas no fundo
não são o mundo

com nenhum nome
se mata a fome

as uvas tampouco
nascem na vinha

sob a luminosidade
da palavra dia

(podes ver
o amor
brilhando
entre as letras?)

Ana Martins Marques em Da Arte das Armadilhas, Companhia das Letras.


incompleta

no fim vai faltar
uma frase
vai faltar uma base
uma xícara na mesa
vai faltar no fim
quem sabe
um jardim na redondeza
um item na lista imensa
vai faltar uma clareza
uma escuridão
outra solução vai faltar
o que não há
ainda e não virá
no fim vai sobrar
muita falta
após a ponta mais alta
vai faltar o ar
o que tanto queria
o que nunca podia
faltar vai faltar
tanto esforço apesar
alguma coisa vai
faltar um ai
um oi um fim
no fim vai faltar
porque é assim.

Maria Helena Castro Azevedo, poema classificado em primeiro lugar no Prêmio Off Flip de Literatura – 2012.

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