segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

DOIS POETAS NO MATADOURO

Federico Garcia Lorca e Eucanaã Ferraz. Várias décadas, muitas fronteiras e um oceano os separam. Mas quando a matéria é poesia, não há fronteira nem mar que ela obedeça. Vence a linguagem, com suas marés.

VACA

A Luis Lacasa

 
Estendeu-se a vaca ferida;
árvores e arroios trepavam por seus chifres.
Seu focinho sangrava no céu.

Seu focinho de abelhas
sob o bigode lento da baba.
Um alarido branco pôs de pé a manhã.

As vacas mortas e as vivas,
rubor de luz ou mel de estábulo,
baliam com os olhos semicerrados.

Que saibam as raízes
e aquele menino que afia sua navalha
que já podem comer a vaca.

Em cima empalidecem
luzes e jugulares.
Quatro patas tremem no ar.

Que saiba a lua
e essa noite de rochas amarelas:
que já se foi a vaca de cinza.

Que já se foi balindo
pelo entulho dos céus hirtos
onde merendam morte os bêbados.

Federico Garcia Lorca em Romanceiro Gitano e outros Poemas, editora Martins Fontes.

 
DO BOI

Em seu sossego e do alto
de sua realeza, rumina
boquilargo, boquinegro,
bosta e patas pesadas

sobre a erva, margaridas,
botões-de-ouro, e sequer
uma pétala se aborrece,
boi-borboleta bordando

entre corredores de biblioteca,
boi de papel, improvável,
botocudo, vermelho,
boi-boto-da-baía-de-guanabara.

Nada pode ser mais bem-arranjado
e bem-composto, o bem-bom,
do bem-querer, boi do Congo,
de Benim, no berço de tudo,

único e futuro, à frente
do carro, besouro, boi Bíblia,
novelo, novilho, boi Brasília,
orvalho sobre o baobá,

sobre o silêncio dos pastos
onde nascem os séculos.
Pensativo, bufão, eu.
Boi, tambor de Deus.


Eucanaã Ferraz, em Cinemateca, Editora Companhia das Letras.

 
FADO DO BOI (TRECHO)

II

No corredor estreito
cada músculo tenta
desesperadamente
fugir numa ânsia louca
de asas que arremessassem,
asas que os arrancassem
dali dentre o fedor
do sangue, do fedor
de mortos, do fedor
do sangue que restou
dos mortos no seu cômodo
mínimo, nesse túmulo
não de depois da morte
mas de antes, de durante,
enquanto golpes cortam,
mutilam olhos, alma,
focinhos e, sim, mesmo
vivos, pelas suas patas
de trás erguidos, bois
ao contrário, os músculos
se rompem, arrancadas
as pétalas, e facas
beijam-lhes as gargantas
que sangram, sangram, sangram.
 
Eucanaã Ferraz, em Cinemateca, Editora Companhia das Letras.

 
MOBY DICK

"Página a página, o relato se agiganta até superar o tamanho do cosmos: a princípio o leitor pode supor que seu tema é a vida miserável dos arpoadores de baleias; em seguida,  que o tema é a loucura do capitão Ahab, ávido por acossar e destruir a Baleia Branca;  depois, que a Baleia e Ahab e a perseguição que esgota os oceanos do planeta são  símbolos e espelhos do Universo." 
Jorge Luis Borges

O novaiorquino Herman Melville fez sucesso com vários livros onde narrava suas experiências como tripulante de navios. Mas depois que publicou Moby Dick, nunca mais fez sucesso novamente. E esta foi sua obra-prima. A baleia cobrou seu preço até a seu autor?

"O livro traz o relato de um marinheiro letrado, Ishmael, sobre a última viagem de um navio baleeiro de Nantucket, o Pequod, que parte da costa leste dos Estados Unidos -  com sua tripulação multiétnica - rumo ao Pacífico Sul, onde encontra o imenso cachalote branco que, no passado, arrancara a perna do vingativo capitão Ahab. Ao longo de 135 capítulos, Herman Melville (1819-1891) explora com brilhantismo e ironia os mais variados gêneros literários: da narrativa de viagens ao teatro shakespeareano, do sermão à poesia popular, passando pela descrição científica e a meditação filosófica. A nova tradução se vale da longa experiência acadêmica da tradutora Irene Hirsch com a obra de Melville e de um minucioso trabalho de pesquisa de vocabulário náutico por parte do tradutor Alexandre Barbosa de Souza. O volume inclui ainda fortuna crítica com três textos fundamentais para a compreensão da obra: uma resenha de Evert Duyckinck, publicada em 1851; o clássico ensaio de D. H. Lawrence, incluído em Studies in Classic American Literature, de 1923, e um trecho do célebre estudo de F. O. Mathiessen, American Renaissance, de 1941. Além disso, a edição traz apêndice com Glossário Náutico Ilustrado e bibliografia.”

Informações sobre a nova edição, do site da Companhia das Letras.

 
CAPÍTULO 85
A FONTE

           Que por seis mil anos – e ninguém sabe quantos milhões de eras antes – as grandes baleias tenham estado a soprar pelos oceanos, borrifando e mistificando os jardins profundos, como tantos regadores e vaporizadores; e que, por séculos, milhares de caçadores estivessem próximos da fonte da baleia, assistindo aos borrifos e esguichos – que tudo isso tenha ocorrido e que, até este abençoado momento (uma hora, quinze minutos e quinze segundos da tarde, do dia dezesseis de dezembro de 1850 d.C.), ainda seja um problema saber se os sopros são, afinal de contas, de água mesmo ou nada além de vapor – isto é sem dúvida algo notável.

Ocupemo-nos, portanto, deste assunto, a par com eventuais aspectos interessantes. Todos sabem que com a habilidade especial de suas guelras as raças que têm barbatanas, em geral, respiram o ar que está combinado com o elemento no qual nadam; desse modo, um arenque ou um bacalhau poderiam viver um século, sem nunca ter que pôr a cabeça para fora da água. Mas devido a sua estrutura interna característica, dotada de pulmões como os de ser humano, a baleia só pode viver se inalar o ar livre a céu aberto. Daí a necessidade de fazer visitas periódicas ao mundo exterior. Mas não pode de forma alguma respirar pela boca, pois na sua posição costumeira a boca do Cachalote fica submersa a pelo menos oito pés da superfície; e, além disso, a sua traqueia não tem ligação com a boca. Não, ele só respira pelo espiráculo; e este fica no topo de sua cabeça. 

Se digo que para todas as criaturas a respiração é a única função indispensável à vida, visto que retiram do ar um certo elemento que é, em seguida, colocado em contato com o sangue e que comunica ao sangue o seu princípio vivificante, não creio incorrer em erro; embora possa estar usando alguns termos científicos supérfluos.      Isso posto, segue-se que, se todo o sangue de um homem pudesse ser arejado com uma só respiração, ele poderia fechar as suas narinas e não respirar por algum tempo. Ou seja, ele viveria sem respirar. Por anômalo que pareça, tal é precisamente o caso da baleia, que vive sistematicamente, de tempos em tempos, uma hora ou mais (quando está no fundo), sem inalar nada, nem mesmo uma partícula de ar, pois, lembre-se, ela não tem guelras. Como assim? Entre as costelas, e de cada lado da coluna, ela tem um incrível labirinto de Creta enredado de vasos finos, aletriados, que quando ela submerge se expandem por completo com o sangue oxigenado. De tal modo que por uma hora ou mais, a mil braças de profundidade, ela leva consigo um abastecimento extra de vitalidade, como um camelo que atravessa um deserto sem água carrega um abastecimento extra de líquido em seus quatro estômagos suplementares, para usar no futuro. A existência anatômica desse labirinto é indiscutível; e essa suposição é razoável e verdadeira, e me parece ainda mais convincente quando penso na obstinação, de outro modo inexplicável, com que o Leviatã solta os jatos de água, como os pescadores dizem. Isso é o que quero dizer. Se não for incomodado, ao surgir na superfície, o Cachalote continua ali por algum tempo, como faz em todas as suas emersões sem incômodos. Suponhamos que fique durante onze minutos e solte setenta jatos, ou seja, respire setenta vezes; então, quando subir novamente, terá a certeza de ter as suas setenta respirações outra vez, no mesmo espaço de tempo. Ora, se for incomodado depois de respirar umas poucas vezes e tiver que mergulhar, ficará subindo sempre de novo para conseguir a quantidade de ar de que necessita. E enquanto não completar as setenta respirações permanece lá embaixo. No entanto, observe que em sujeitos diferentes esses números são diferentes, mas em qualquer um deles é constante. Ora, por que uma baleia deveria insistir em soltar os jatos na superfície, se não fosse para reabastecer o seu reservatório de ar antes de descer de vez? É muito óbvio, então, que a necessidade de subir da baleia a expõe aos riscos fatais da caçada. Pois nem com um gancho e nem com uma rede se poderia capturar esse imenso Leviatã quando nada a mil braças sob a luz do sol. Não é tanto a tua habilidade, pois, ó, caçador, mas as grandes necessidades vitais que te garantem a vitória!

No homem, a respiração é incessante – uma respiração servindo apenas para duas ou três pulsações; de modo que para qualquer outra tarefa que tenha de fazer, acordado ou dormindo, ele precisa respirar, senão morre. Mas o Cachalote apenas respira um sétimo, ou um domingo, de todo o seu tempo.

Disse que a baleia só respira por meio do seu espiráculo, e se pudesse dizer que, na verdade, os seus sopros são misturados com água, eu opinaria que teríamos a explicação para o fato de que o seu olfato parece obliterado; pois a única coisa nela que corresponde a um nariz é o próprio espiráculo; pois, estando entupida com dois elementos, não se poderia esperar que tivesse a capacidade de sentir cheiro. Mas devido ao mistério do seu sopro – quanto a ser água ou vapor – não se pode chegar a uma certeza absoluta quanto ao principal. Não obstante, é certo que o Cachalote não tem órgãos olfativos. Mas para que precisaria deles? Não há rosas, nem violetas, nem águas-de-colônia no mar.  Além do mais, como a sua traqueia só se abre para o tubo do canal de jato, e como esse canal comprido – semelhante ao grande canal Erie – tem uma espécie de comporta (que se abre e se fecha) para reter o ar dentro ou expelir a água para fora, a baleia não tem voz; a menos que você a insulte dizendo que ela murmura de um modo tão estranho que é como se falasse pelo nariz. Mas, novamente, o que a baleia teria a dizer? Raras vezes conheci um ser profundo que tivesse algo a dizer para este mundo, exceto quando forçado a balbuciar alguma coisa para ganhar a vida. Oh! Que bem-aventurança que o mundo seja um ouvinte tão excepcional! Ora, o canal de esguichar do Cachalote, destinado essencialmente ao transporte do ar, estende-se por vários pés, na posição horizontal, logo abaixo da superfície na parte superior da cabeça, e um pouco para o lado; esse canal estranho é muito parecido com um cano de gás no subsolo de uma cidade, ao longo de uma rua. Mas volta a questão de saber se o cano de gás é também um cano de água; em outras palavras, se o sopro do Cachalote é apenas o vapor da respiração exalada, ou se essa exalação é misturada com a água da boca, e descarregada pelo espiráculo. É certo que a boca se comunica de maneira indireta com o canal de esguicho; mas não se pode provar que isso é feito com o propósito de soltar água pelo espiráculo. Pois a maior necessidade de agir assim seria quando, ao se alimentar, a baleia acidentalmente ingerisse água. Mas a alimentação do Cachalote fica muito abaixo da superfície e ali ele não poderia esguichar mesmo se quisesse. Além disso, se você olhar de perto, e marcar com o relógio, verá que quando não está sendo incomodado, há uma correspondência invariável entre a periodicidade dos jatos e a da respiração.

Mas por que aborrecer alguém com tantos argumentos sobre o assunto? Fale claro! Você o viu soprar; pois conte como é o seu sopro: não sabe a diferença entre a água e o ar? Meu caro senhor, neste mundo não é tão fácil estabelecer nada sobre as coisas mais simples. Sempre achei que essas coisas simples eram as mais emaranhadas. E, quanto a esse sopro de baleia, você pode estar em pé, dentro dele, e ainda assim não saber com certeza do que se trata. A parte central do sopro oculta-se na neblina nívea e borbulhante que o envolve; mas não há como alguém dizer com certeza se a água cai dali, pois, quando se está perto de uma baleia a ponto de ver bem seu sopro, ela se encontra sempre em prodigiosa agitação, e a água jorrando à sua volta. Se nessas ocasiões você achar que viu, de fato, algumas gotas de umidade no sopro, como saber se não são apenas condensações do seu vapor, ou como saber que não são as mesmas gotas alojadas superficialmente na fissura do espiráculo, escareada no topo da cabeça da baleia? Pois mesmo nadando tranquila no oceano ao meio-dia, numa calmaria, com a sua elevada corcova seca como a de um dromedário no deserto, sempre leva consigo uma pequena vasilha de água na cabeça, como se vê por vezes numa rocha, sob um sol ardente, uma cavidade cheia de água da chuva. Também não é prudente para um caçador demonstrar muita curiosidade em relação à natureza do sopro da baleia. Não convém olhar lá dentro, colocar o rosto ali. Não se pode ir com o jarro a essa fonte, enchê-lo e ir embora. Pois quando se mantém um contato, mesmo superficial, com as partículas externas e vaporosas do jato, o que ocorre com frequência, a pele arde com febre, devido à acidez daquilo. Conheço uma pessoa que ao ter um contato mais estreito com o sopro, não sei se com um objetivo científico ou não, teve a pele do rosto e do braço descascada. Por isso, entre os baleeiros, o sopro é considerado venenoso: tentam evitá-lo. Mais uma coisa: ouvi falar, e não duvido, que se o jato é esguichado nos olhos você pode ficar cego. A coisa mais sábia que o investigador tem a fazer, ao que me parece, é deixar esse sopro mortal em paz.

Contudo, podemos fazer hipóteses, mesmo se não pudermos prová-las e nem demonstrá-las. A minha hipótese é a seguinte: o sopro é apenas névoa. Além de outros motivos, cheguei a essa conclusão estimulado por considerações referentes à enorme dignidade e à sublimidade do Cachalote; não o considero um ser comum ou insípido, visto que é um fato irrefutável ele nunca ser encontrado em águas pouco profundas ou próximas do litoral; todas as outras baleias o são às vezes. Ele é ponderoso e profundo. Estou convencido de que da cabeça de todos os seres ponderosos e profundos como Platão, Pirro, o Diabo, Júpiter, Dante, e assim por diante, sempre sai um certo vapor semivisível, quando estão mergulhados em pensamentos profundos. Quando escrevia um pequeno tratado sobre a eternidade, tive a curiosidade de colocar um espelho à minha frente; e logo vi refletida ali uma ondulação curiosa e coleante no ar sobre a minha cabeça. A umidade invariável do meu cabelo, quando mergulhado em pensamentos profundos, depois de seis xícaras de chá quente em meu sótão de telhas finas, num meio-dia de agosto, parece um argumento adicional para a minha suposição anterior. E como cresce com nobreza em nosso conceito o poderoso monstro nebuloso, contemplado a navegar solene as águas calmas do mar tropical; sua cabeça imensa e suave, coberta por um dossel de vapor, engendrado por suas contemplações incomunicáveis, e esse vapor – como se vê por vezes – glorificado por um arco-íris, como se o próprio céu houvesse posto o seu selo sobre os seus pensamentos. Pois, como se sabe, os arco-íris não visitam o ar puro; apenas se irradiam no vapor. Assim, através da densa névoa das dúvidas obscuras do meu espírito, vez ou outra surgem intuições divinas, iluminando-me a neblina com um raio celestial. Agradeço a Deus por isso; pois todos têm dúvidas; muitos negam; mas entre dúvidas e negações, poucos têm ainda intuições. Dúvidas sobre todas as coisas terrenas e intuições de algumas coisas celestiais; essa combinação não faz de ninguém nem crente nem infiel, mas um homem que a ambas estima com os mesmos olhos.

Herman Melville, em Moby Dick, Companhia das Letras.

 
FELINO, NÃO RECONHECERÁS?

Deuses no Antigo Egito. Fonte de azar, de beleza, de força. Assim são os Felinos, os únicos animais feitos de elástico. E quantos escritores não se renderam àquelas pupilas no escuro? T. S. Eliot, Manuel Bandeira, Lewis Carroll, Mia Couto...  O leão e sua coroa. Os tigres e sua realeza. Os gatos e sua astúcia. Sempre remotos, na infância humana ou na de cada um, como o Gato de Botas. Aqui temos Cecília Meireles, Fernando Pessoa, William Blake, Jorge Luis Borges, Pablo Neruda e Otto Lara Resende. Todos felinamente literários.

 
OS GATOS DA TINTURARIA

Os gatos brancos, descoloridos,
passeiam pela tinturaria,
miram policromos vestidos.


Com soberana melancolia,
brota nos seus olhos erguidos
o arco-íris, resumo do dia,


ressuscitando dos seus olvidos,
onde apagado cada um jazia,
abstratos lumes sucumbidos.


No vasto chão da tinturaria,
xadrez sem fim, por onde os ruídos
atropelam a geometria,


os grandes gatos abrem compridos
bocejos, na dispersão vazia
da voz feita para gemidos.


E assim proclamam a monarquia
da renúncia, e, tranquilos vencidos,
dormem seu tempo de agonia.


Olham ainda para os vestidos,
mas baixam a pálpebra fria.


Cecília Meireles, em Melhores Poemas, Editora Global.

 
GATO QUE BRINCAS NA RUA

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.


Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.


És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Fernando Pessoa, em Poesias, Editora Ática, Lisboa.

 

O TIGRE

tigre, tigre, chama pura
nas brenhas da noite escura,
que olho ou mão imortal cria
tua terrível simetria?


de que abismo ou céu distante
vem tal fogo coruscante?
que asas ousa nesse jogo?
e que mão se atreve ao fogo?


que ombro & arte te armarão
fibra a fibra o coração?
e ao bater ele no que és,
que mão terrível? que pés?


e que martelo? que torno?
e o teu cérebro em que forno?
que bigorna? que tenaz
pro terror mortal que traz?


quando os astros lançam dardos
e seu choro os céus põem pardos,
vendo a obra ele sorri?
fez o anho e fez-te a ti?


tigre, tigre, chama pura
nas brenhas da noite escura,
que olho ou mão imortal cria
tua terrível simetria?


William Blake, em tradução de Vasco Graça Moura, publicada em Laooconte, rimas várias, andamentos graves, Quetzal Editores. Lisboa.

 
O OUTRO TIGRE

Penso num tigre. Esta penumbra exalta
A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar as prateleiras;
Forte, inocente, ensanguentado e novo,
Irá pela sua selva e pela manhã
E marcará seu rasto na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Não há passado nem porvir, nem nomes
No seu mundo, só um instante certo)
E salvará as bárbaras distâncias,
Farejando no entrelaçado labirinto
Entre os odores o odor da alba
E o odor deleitoso do veado.
Por entre as riscas do bambu decifro
Suas riscas, pressinto a ossatura
Debaixo da pele esplêndida que vibra.
Interpõem-se em vão todos os mares
Convexos e os desertos do planeta;
Desta casa de um tão remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre que é das margens do rio Ganges.

Na minha alma escorre a tarde e penso
Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias da enciclopédia,
Não o tigre fatal, a aziaga jóia
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Samatra ou em Bengala
A rotina do amor, do ócio da morte.
Ao simbólico tigre eu quis opor
O verdadeiro, o de cálido sangue,
O que dizima a multidão dos búfalos
E hoje, 3 de Agosto de 59,
Alarga na planície uma pausada
Sombra, mas já o facto de o dizer
E de conjecturar-lhe a circunstância
Fá-lo ficção da arte e não criatura
Vivente dessas que andam pela terra.

Procuraremos um terceiro tigre.
Será, tal como os outros, uma forma
Do meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além das vãs mitologias,
Pisa a terra. Bem sei, mas qualquer coisa
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Em buscar pelo tempo desta tarde
O outro tigre, o que não está no verso.

Jorge Luis Borges, em Ob
ras Completas, volume II, Tradução: Fernando Pinto do Amaral Editorial Teorema, Portugal.

 
ODE AO GATO
 
Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de  cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, vôo.
O gato,
só o gato apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.


O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato do bigode ao rabo,
do pressentimento  à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma  coisa
só como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas da noite .

Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o  terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo  gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gato, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.

Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica
o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.

Pablo Neruda, em http://www.tanto.com.br/neruda-ode.htm. Tradução de  Eliane Zagury.

 
GATO GATO GATO

Familiar aos cacos de vidro inofensivos, o gato caminhava molengamente por cima do muro. O menino ia erguer-se, apanhar um graveto, respirar o hálito fresco do porão. Sua úmida penumbra. Mas a presença do gato. O gato, que parou indeciso, o rabo na pachorra de uma quase interrogação.

Luminoso sol a pino e o imenso céu azul, calado, sobre o quintal. O menino pactuando com a mudez de tudo em torno — árvores, bichos, coisas. Captando o inarticulado segredo das coisas. Inventando um ser sozinho, na tontura de imaginações espontâneas como um gás que se desprende.

Gato — leu no silêncio da própria boca. Na palavra não cabe o gato, toda a verdade de um gato. Aquele ali, ocioso, lento, emoliente — em cima do muro. As coisas aceitam a incompreensão de um nome que não está cheio delas. Mas bicho, carece nomear direito: como rinoceronte, ou girafa se tivesse mais uma sílaba para caber o pescoço comprido. Girafa, girafa. Gatimonha, gatimanho. Falta um nome completo, felinoso e peludo, ronronante de astúcias adormecidas. O pisa-macio, as duas bandas de um gato. Pezinhos de um lado, pezinhos de outro, leve, bem de leve para não machucar o silêncio de feltro nas mãos enluvadas.

O pêlo do gato para alisar. Limpinho, o quente contato da mão no dorso, corcoveante e nodoso à carícia. O lânguido sono de morfinômano. O marzinho de leite no pires e a língua secreta, ágil. A ninhada de gatos, os vacilantes filhotes de olhos cerrados. O novelo, a bola de papel — o menino e o gato brincando. Gato lúdico. O gatorro, mais felino do que o cachorro é canino. Gato persa, gatochim — o espirro do gato de olhos orientais. Gato de botas, as aristocráticas pantufas do gato. A manha do gato, gatimanha: teve uma gata miolenta em segredo chamada Alemanha.

Em cima do muro, o gato recebeu o aviso da presença do menino. Ondulou de mansinho alguns passos denunciados apenas na branda alavanca das ancas. Passos irreais, em cima do muro eriçado de cacos de vidro. E o menino songamonga, quietinho, conspirando no quintal, acomodado com o silêncio de todas as coisas. No se olharem, o menino suspendeu a respiração, ameaçando de asfixia tudo que em torno dele com ele respirava, num só sistema pulmonar. O translúcido manto de calma sobre o claustro dos quintais. O coração do menino batendo baixinho. O gato olhando o menino vegetalmente nascendo do chão, como árvore desarmada e inofensiva. A insciência, a inocência dos vegetais.

O ar de enfado, de sabe-tudo do gato: a linha da boca imperceptível, os bigodes pontudos, tensos por hábito. As orelhas acústicas. O rabo desmanchado, mas alerta como um leme. O pequeno focinho úmido embutido na cara séria e grave. A tona dos olhos reverberando como laguinhos ao sol. Nenhum movimento na estátua viva de um gato. Garras e presas remotas, antigas.

Menino e gato ronronando em harmonia com a pudica intimidade do quintal. Muro, menino, cacos de vidro, gato, árvores, sol e céu azul: o milagre da comunicação perfeita. A comunhão dentro de um mesmo barco. O que existe aqui, agora, lado a lado, navegando. A confidência essencial prestes a exalar, e sempre adiada. E nunca. O gato, o menino, as coisas: a vida túmida e solidária. O teimoso segredo sem fala possível. Do muro ao menino, da pedra ao gato: como a árvore e a sombra da árvore.

O gato olhou amarelo o menino. O susto de dois seres que se agridem só por se defenderem. Por existirem e, não sendo um, se esquivarem. Quatro olhos luminosos — e todas as coisas opacas por testemunha. O estúpido muro coroado de cacos de vidro. O menino sentado, tramando uma posição mais prática. O gato de pé, vigilantemente quadrúpede e, no equilíbrio atento, a centelha felina. Seu íntimo compromisso de astúcia.

            O menino desmanchou o desejo de qualquer gesto. Gaturufo, inventou o menino, numa traiçoeira tentativa de aliança e amizade. O gato, organizado para a fuga, indagava. Repelia. Interrogava o momento da ruptura — como um toque que desperta da hipnose. Deu três passos de veludo e parou, retesando as patas traseiras, as patas dianteiras na iminência de um bote para onde? Um salto acrobático sobre um rato atávico, inexistente.

Por um momento, foi como se o céu desabasse de seu azul: duas rolinhas desceram vertiginosas até o chão. Beliscaram levianas um grãozinho de nada e de novo cortaram o ar excitadas, para longe.

O menino forcejando por nomear o gato, por decifrá-lo. O gato mais igual a todos os gatos do que a si mesmo. Impossível qualquer intercâmbio: gato e menino não cabem num só quintal. Um muro permanente entre o menino e o gato. Entre todos os seres emparedados, o muro. A divisa, o limite. O odioso mundo de fora do menino, indecifrável. Tudo que não é o menino, tudo que é inimigo.

Nenhum rumor de asas, todas fechadas. Nenhum rumor.

Ah, o estilingue distante — suspira o menino no seu mais oculto silêncio. E o gato consulta com a língua as presas esquecidas, mas afiadas. Todos os músculos a postos, eletrizados. As garras despertas unhando o muro entre dois abismos.

O gato, o alvo: a pedrada passou assobiando pela crista do muro. O gato correu elástico e cauteloso, estacou um segundo e despencou-se do outro lado, sobre o quintal vizinho. Inatingível às pedras e ao perigoso desafio de dois seres a se medirem, sumiu por baixo da parreira espapaçada ao sol.

O tiro ao alvo sem alvo. A pedrada sem o gato. Como um soco no ar: a violência que não conclui, que se perde no vácuo. De cima do muro, o menino devassa o quintal vizinho. A obsedante presença de um gato ausente. Na imensa prisão do céu azul, flutuam distantes as manchas pretas dos urubus. O bailado das asas soltas ao sabor dos ventos das alturas.

            O menino pisou com o calcanhar a procissão de formigas atarantadas. Só então percebeu que lhe escorria do joelho esfolado um filete de sangue. Saiu manquitolando pelo portão, ganhou o patiozinho do fundo da casa. A sola dos pés nas pedras lisas e quentes. À passagem do menino, uma galinha sacudiu no ar parado a sua algazarra histérica.

             A casa sem aparente presença humana.

Agarrou-se à janela, escalou o primeiro muro, o segundo, e alcançou o telhado. Andava descalço sobre o limo escorregadio das telhas escuras, retendo o enfadonho peso do corpo como quem segura a respiração. O refúgio debaixo da caixa-d'água, a fresca acolhida da sombra. Na caixa, a água gorgolejante numa golfada de ar. Afastou o tijolo da coluna e enfiou a mão: bolas de gude, o canivete roubado, dois caramujos com as lesmas salgadas na véspera. O mistério. Pessoal, vedado aos outros. Uma pratinha azinhavrada, o ainda perfume da caixa de sabonete. A estampa de São José, lembrança da Primeira Comunhão.

Apoiado nos cotovelos, o menino apanhou uma joaninha que se encolheu, hermética. A joaninha indevassável, na palma da mão. E o súbito silêncio da caixa-d'água, farta, sua sede saciada.

Do outro lado da cidade, partiram solenes quatro badaladas no relógio da Matriz. O menino olhou a esfera indiferente do céu azul, sem nuvens. O mundo é redondo, Deus é redondo, todo segredo é redondo.

As casas escarrapachadas, dando-se as costas, os quintais se repetindo na modorra da mesma tarde sem data.

Até que localizou embaixo, enrodilhado à sombra, junto do tanque: um gato. Dormindo, a cara escondida entre as patas, a cauda invisível. Amarelo, manchado de branco de um lado da cabeça: era um gato. Na sua mira. Em cima do muro ou dormindo, rajado ou amarelo, todos os gatos, hoje ou amanhã, são o mesmo gato. O gato-eterno.

O menino apanhou o tijolo com que vedava a entrada do mistério. Lá embaixo — alvo fácil — o gato dormia inocente a sua sesta ociosa. Acertar pendularmente na cabeça mal adivinhada na pequena trouxa felina, arfante. Gato, gato, gato: lento bicho sonolento, a decifrar ou a acordar?

A matar. O tijolo partiu certeiro e desmanchou com estrondo a tranquila rodilha do gato. As silenciosas patinhas enluvadas se descompassaram no susto, na surpresa do ataque gratuito, no estertor da morte. A morte inesperada. A elegância desfeita, o gato convulso contorcendo as patas, demolida a sua arquitetura. Os sete fôlegos vencidos pela brutal desarmonia da morte. A cabeça de súbito esmigalhada, suja de sangue e tijolo. As presas inúteis, à mostra na boca entreaberta. O gato fora do gato, somente o corpo do gato. A imobilidade sem a viva presença imóvel do sono. O gato sem o que nele é gato. A morte, que é ausência de gato no gato. Gato — coisa entre as coisas. Gato a esquecer, talvez a enterrar. A apodrecer.

O silêncio da tarde invariável. O intransponível muro entre o menino e tudo que não é o menino. A cidade, as casas, os quintais, a densa copa da mangueira de folhas avermelhadas. O inatingível céu azul.

Em cima do muro, indiferente aos cacos de vidro, um gato — outro gato, o sempre gato — transportava para a casa vizinha o tédio de um mundo impenetrável. O vento quente que desgrenhou o mormaço trouxe de longe, de outros quintais, o vitorioso canto de um galo.

Otto Lara Resende, em O Elo Partido e Outras Histórias, Editora Ática.

 
A POESIA É O BICHO!
(OU O BICHO É QUE É A POESIA?)


 
                      Cobra Norato - Giramundo - trecho do espetáculo teatral com bonecos, que o grupo mineiro Giramundo fez sobre o poema de Raul Bopp.

 
                                                                  
                                                                   AS ANDORINHAS
                                                                DE ANTÔNIO NOBRE

—Nos
—fios
—ten
sos

—da
—pauta
—de me-
tal

—as
— an/
do/
ri/
nhas
—gri-
tam

—por
—fal/
ta/
—de u-
ma
—cl'a-
ve
—de
—sol

Cassiano Ricardo, em Os Sobreviventes, Livraria José Olympio Editora. Ver também no site da Fundação Cultural Cassiano Ricardo: www.fccr.org.br/cassianoricardo/
 
  
O URUBU MOBILIZADO

Durante as secas do Sertão, o urubu
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.

                                           2

Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
Com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.

João Cabral de Melo Neto, em Cabral – Antologia Poética, Editora Sabiá.


FORMIGA

avançam na conquista
               das nações
fileiras de saúvas
          sob a cruz de Malta
morrem buscando
          espessos
montes de açúcar

e nessa química
     dominação dos povos

dom Manuel
          de antenas
venturoso e sábio

Marco Lucchesi, em Meridiano celeste & Bestiário, Ed. Record.


 
                                   Apologia ao Jumento, de Luiz Gonzaga e José Clementino 

 
 
QUANDO AS SERPENTES PAGUEM PARA SER SERPENTES

quando as serpentes paguem para ser serpentes
e o sol para ganhar seu pão recorra à greve –
quando o espinho olhe a rosa com suspeita
e o arco-íris faça seguro contra a neve

quando tordo nenhum puder cantar enquanto
todos os mochos não fizerem a censura
– e os mares tenham que fechar para balanço
se as ondas não tiverem posto a assinatura

quando o carvalho pedir vênia ao vidoeiro
para gerar seu fruto – o vale casse a vista
dos montes, porque são altos, e fevereiro
acuse março de ser terrorista

então acreditaremos nessa incrível
humanidade inanimal (e só aí)

e.e. cummings em 40 Poem(a)s, tradução: Augusto de Campos, Editora Brasiliense.


 
RINHA DE GALINHA

Por Don King –
                  nosso correspondente na Academia Brasileira de Letras e Artes Marciais

Waall, mais um estupefaciente duelo de Titãs! Neste córner, com 60 quilos de pura epifania literária, Clarice Lispector, a Demolidora da Ucrânia, com sua técnica de paixão segundo G.H. No outro corner, Franz Kafka, o Pesadelo de Praga, com seus jabs que mostram o trágico, o grotesco e o cruel da condição humana. Quando eles se enfrentam até as baratas tremem. E o pau come na casa de Noca. Holly shit!

 
I

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação ao resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.

- O que aconteceu comigo? – pensou.

Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas. Sobre a mesa, na qual se espalhava, desempacotado, um mostruário de tecidos, - Samsa era caixeiro-viajante -, pendia a imagem que ele havia recortado fazia pouco tempo de uma revista ilustrada e colocado numa bela moldura dourada. Representava uma dama de chapéu de pele e boá de pele que, sentada em posição ereta, erguia ao encontro do espectador um pesado regalo também de pele, no qual desaparecia todo o seu antebraço.

O olhar de Gregor dirigiu-se então para a janela e o tempo turvo – ouviam-se gotas de chuva batendo no zinco do parapeito – deixou-o inteiramente melancólico.  

- Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse todas essas tolices? – pensou, mas isso era completamente irrealizável, pois estava habituado a dormir do lado direito e no seu estado atual não conseguia se colocar nessa posição. Qualquer que fosse a força com que se jogava para o lado direito, balançava sempre de volta à postura de costas. Tentou isso umas cem vezes, fechando os olhos para não ter que enxergar as pernas desordenadamente agitadas, e só desistiu quando começou a sentir do lado uma dor ainda nunca experimentada, leve e surda.

- Ah, meu Deus! – pensou. – Que profissão cansativa eu escolhi. [...]

Franz Kafka, em A Metamorfose, tradução de Modesto Carone, Companhia das Letras.


Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos embranquecem.

De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito.

Nada, não era nada – procurei imediatamente me apaziguar diante de meu susto. É que eu não esperara que, numa casa minuciosamente desinfetada contra o meu nojo por baratas, eu não esperava que o quarto tivesse escapado. Não, não era nada. Era uma barata que lentamente se movia em direção à fresta.

Pela lentidão e grossura, era uma barata muito velha. No meu arcaico horror por baratas, eu aprendera a adivinhar, mesmo à distância, suas idades e perigos; mesmo sem nunca ter realmente encarado uma barata eu conhecia os seus processos de existência.

Só que ter descoberto súbita vida na nudez do quarto me assustara como se eu descobrisse que o quarto morto era na verdade potente. Tudo ali havia secado – mas restara uma barata. Uma barata tão velha que era imemorial. O que sempre me repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais. Saber que elas já estavam na Terra, e iguais a hoje, antes mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e se arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão do mundo, e lá estavam durante o grande avanço e depois durante o grande recuo das geleiras – a resistência pacífica. Eu sabia que baratas resistiam a mais de um mês sem alimento ou água. E que até de madeira faziam substância nutritiva aproveitável. E que, mesmo depois de pisadas, descomprimiam-se lentamente e continuavam a andar. Mesmo congeladas, ao degelarem, prosseguiam na marcha... Há trezentos e cinquenta milhões de anos elas se repetiam sem se transformarem. Quando o mundo era quase nu elas já o cobriam vagarosas.

Como ali, no quarto nu e esturricado, a gota virulenta: numa limpa proveta de ensaio uma gota de matéria.

Clarice Lispector, em A Paixão Segundo G.H., Editora Rocco.

 
EDGAR ALLAN CORVO POE

O poeta e tradutor Ivo Barroso lançou uma pequena e deliciosa obra-prima, que já chegou à terceira edição: O Corvo e suas traduções, onde ele reúne as principais traduções para o português do famoso poema de Edgar Allan Poe - o que inclui nomes como Machado de Assis, Fernando Pessoa, Emílio de Menezes, Alexei Bueno e Jorge Wanderley - e faz um estudo delas, além de publicar as traduções para o francês de Baudelaire e de Mallarmé. O livro traz ainda uma biografia de Edgar Allan Poe, seu  artigo A Filosofia da Composição, em que ele analisa a construção do poema de 1845, e uma apresentação de Carlos Heitor Cony.
Publico a seguir a primeira estrofe do poema nas traduções de Machado, Pessoa, Alexei Bueno e Jorge Wanderley. E em seguida aquela que é considerada a melhor tradução, a de Milton Amado, na versão integral do texto. E por fim publico também uma transcriação de Augusto de Campos, de 1992, intitulada Transcorvo.

 
PRIMEIRAS ESTROFES DE MACHADO, PESSOA, ALEXEI BUENO E JORGE WANDERLEY
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.                                                                     

É só isto, e nada mais".

(Tradução de Fernando Pessoa.)


Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais".

(Tradução de Machado de Assis)


Numa meia-noite cava, quando, exausto, eu meditava
Nuns estranhos, velhos livros de doutrinas ancestrais
E já quase adormecia, percebi que alguém batia
Num soar que mal se ouvia, leve e lento, em meus portais.                                                                 Disse a mim: “É um visitante que ora bate em meus portais -
É só isto e nada mais”.
(Tradução de Alexei Bueno)

Numa meia-noite erma, bem cansado e de alma enferma,
Enquanto eu lia de uns livros que já ninguém lembra mais,
E estando quase adormecido, ouvi à porta um ruído:
- Alguém que houvesse batido, comedido, a horas tais,                                                                         “Um visitante” – pensei-  “que se atrasou, talvez, demais:
- É só isto e nada mais”.
(Tradução de Jorge Wanderley)

 
O Corvo (The Raven), de Edgard Allan Poe
Tradução de Milton Amado (1943)

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
"É alguém - fiquei a murmurar - que bate à porta, devagar;
sim, é só isso e nada mais".

Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
e o fogo agônico animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
e nome aqui já não tem mais.

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
e a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais".

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
"Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito ai fora me esperais;
mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
assim de leve, em hora morta". Escancarei então a porta:
- escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a fundo, a perquiri-la,
sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!"
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!"
Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
"É na janela" - penso então. - "Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
o vento sopra. E só do vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais."

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
- é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto - uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
"Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular"- então lhe digo -
"não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!"
E o Corvo disse: "Nunca mais".

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
e que se chama "Nunca mais".

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
enquanto a mágoa me envenena: "Amigos... sempre vão-se embora.
como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se embora."
E disse o Corvo: "Nunca mais".

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
de seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: - o ritornelo
de "Nunca, nunca, nunca mais".

como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais
e, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
grasnava sempre: "Nunca mais".

Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,
já não repousa, ah! nunca mais ...

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
ali descessem a esparzir turibulários celestiais.
"Mísero!", exclamo. "Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus,
esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais".

"Profeta! - brado. - Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
mansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade:
EXISTE um bálsamo em Galaad? Imploro! dize-mo, em verdade!"
E o Corvo disse: "Nunca mais".

"Profeta!" exclamo. "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"

"Seja isso a nossa despedida! - ergo-me e grito, alma incendida. -
Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
não há de erguer-se, ai! nunca mais!


transcorvo – ver arquivo.

intradução de Augusto de Campos – 1992

 
TRÊS “FÁBULAS FABULOSAS”

De Esopo, na Grécia Antiga, passando por La Fontaine, na França do século 17, e chegando a Millôr Fernandes, o inventor das “fábulas fabulosas”.
UMA FÁBULA DE ESOPO: O LEÃO APAIXONADO

Um leão pediu a filha de um lenhador em casamento. O pai, contrariado, mas receoso, aproveitou a ocasião para livrar-se desse problema.

Ele disse que consentia em tê-lo como noivo, mas com uma condição; este deveria deixar-lhe arrancar suas unhas e dentes, pois sua filha temia a ambos.

Contente o leão concordou. Depois disso, ao repetir seu pedido, o lenhador que não mais o temia, pegou um cajado, e enxotou-o da casa para a floresta.

 
UMA DE LA FONTAINE: A CIGARRA E A FORMIGA

            Tendo a cigarra cantado durante o verão, apavorou-se com o frio da próxima estação. Sem mosca ou verme para se alimentar, com fome foi ver a formiga, sua vizinha, pedindo-lhe alguns grãos para aguentar até vir uma época mais quentinha!

"Eu lhe pagarei", disse ela, - "antes do verão, palavra de animal, os juros e também o capital".

A formiga não gosta de emprestar, é esse um dos seus defeitos.  - "O que você fazia no calor de outrora?" perguntou-lhe com certa aspereza.

"Noite e dia, eu cantava no meu posto, sem querer dar-lhe desgosto".

"Você cantava? Que beleza! Pois, então, dance agora!

 
E UMA DE MILLÔR:
 
Fopos de Esábula

Uma tentativa B.N. (Bossa Nova) de escrever as fábulas de Esopo na linguagem do tempo em que os animais falavam.

A Baposa e o Rode

Por um asino do destar uma rapiu caosa num pundo profoço do quir não consegual saiu. Um rode, passi por alando, algois tem detempo, vosa a rapendo, foi mordade pela curiosidido. "Queradre comida, qué ê que esti fazá aendo?" "Voção entê são nabe?" respondosa a rapreira mateu. "Vaí em a mais terreca sível de teste a histoda do nordória. Salti aquei no foço deste pundo e guardarar a ei que brotágua sim pra mó. Porér, se vocem quisê, como é mau compedre, per me fazia companhode. "Sem pensezes duas var o bem saltode tambou no pundo do foço. A rapente, imediatamosa, trepostas nas cou-lhes, apoífre num dos xides do bou-se e salfoço tora do fou enquava berranto: "Adadre, compeus!"

MORAL: JAMIE CONFAIS EM QUA ESTADE EM DIFICULDÉM.

GÊNESIS 7

[...]
E era Noé da idade de seiscentos anos, quando o dilúvio das águas veio sobre a terra.
Noé entrou na arca, e com ele seus filhos, sua mulher e as mulheres de seus filhos, por causa das águas do dilúvio.
Dos animais limpos e dos animais que não são limpos, e das aves, e de todo o réptil sobre a terra, entraram de dois em dois para junto de Noé na arca, macho e fêmea, como Deus ordenara a Noé.
E aconteceu que passados sete dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio.
No ano seiscentos da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram, e houve chuva sobre a terra quarenta dias e quarenta noites.
E no mesmo dia entraram na arca Noé, seus filhos Sem, Cão e Jafé, sua mulher e as mulheres de seus filhos.
Eles, e todo o animal conforme a sua espécie, e todo o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil que se arrasta sobre a terra conforme a sua espécie, e toda a ave conforme a sua espécie, pássaros de toda qualidade.
E de toda a carne, em que havia espírito de vida, entraram de dois em dois para junto de Noé na arca.
E os que entraram eram macho e fêmea de toda a carne, como Deus lhe tinha ordenado; e o SENHOR o fechou dentro.
E durou o dilúvio quarenta dias sobre a terra, e cresceram as águas e levantaram a arca, e ela se elevou sobre a terra.
E prevaleceram as águas e cresceram grandemente sobre a terra; e a arca andava sobre as águas.
E as águas prevaleceram excessivamente sobre a terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu, foram cobertos.
Quinze côvados acima prevaleceram as águas; e os montes foram cobertos.
E expirou toda a carne que se movia sobre a terra, tanto de ave como de gado e de feras, e de todo o réptil que se arrasta sobre a terra, e todo o homem.
Tudo o que tinha fôlego de espírito de vida em suas narinas, tudo o que havia em terra seca, morreu.
Assim foi destruído todo o ser vivente que havia sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; e foram extintos da terra; e ficou somente Noé, e os que com ele estavam na arca.
E prevaleceram as águas sobre a terra cento e cinquenta dias.

Bíblia, Gênesis, 7.

THAT’S ALL, FOLKS!

 (foto)

 Meu e mail: cesarcar@uninet.com.br

 

©Cesar Cardoso, 2013.  Todos os direitos e esquerdos reservados. Que os piolhos infectados de 18 mil camelos infestem as partes pudendas de quem publicar algum texto daqui sem avisar nem dar meu crédito.

 

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