Eu e meu amigo e também escritor Pedro Veludo escrevemos, cada um, um conto onde o mistério ronda os personagens. Nós, que tantas vezes conversamos nas ladeiras de Santa Teresa e, da última vez, em ladeiras e largos de Lisboa, agora conversamos na literatura, através de nossos personagens. O conto de Pedro é inédito. O meu também e faz parte do livro AS PRIMEIRAS PESSOAS, que vou publicar em novembro, pela Editora Oito e Meio. É um livro de contos onde todas as narrativas acontecem na primeira pessoa, criando uma multiplicidade de personagens e uma polifonia narrativa.
Os autores Pedro Veludo e Cesar Cardoso, tomando ginginha em Lisboa, cidade onde misteriosamente nunca estiveram. |
ELES
Era de madrugada e eu tinha sete anos e meio. Acordei com sede na velha casa dos avós sempre rangendo e rangendo. Fui morar lá depois que mamãe desapareceu. Ao entrar na cozinha, dei com a porta que levava ao quintal aberta e pude ver a lua bebendo água na vasilha do cachorro. Mesmo com medo tentei me aproximar, bem lentamente, mas ela talvez tenha pressentido minha presença ou simplesmente matado sua sede e fugiu galgando o céu. Durante muitas madrugadas acordei para espiar a lua. O cachorro fazia a mesma coisa, parou de comer e morreu ganindo. Então o medo me venceu, eu guardei a lua e sua sede dentro de mim e aprendi a desistir das melhores coisas.
Desde o desaparecimento de mamãe eu passara a ter o sono muito leve e quando por fim consegui esquecer a lua, eles chegaram. Novamente era madrugada, acordei com alguém tocando de leve no meu ombro e não havia ninguém no quarto. Um mal estar foi me tomando o corpo, de forma muito rápida, algo que eu nunca sentira antes, quase como um gozo, e resultou num pequeno vômito de tons azulados que eu acolhi assustada na fronha do travesseiro. Levantei-me, fui até o banheiro, atarantada, joguei tudo na privada, dei a descarga e fiquei vendo a água subir, subir, subir. Ali, olhando aquela estranha mistura de água, fronha e índigo vômito, tive a certeza de que alguma coisa se partia dentro de mim. Como era a primeira vez que tinha alguma certeza ainda duvidei um pouco. Mais tarde, pensando sobre essa madrugada em que os pequenos vômitos chegaram, mudei de ideia e considerei que aquele foi o momento de minha formatura, já que a faculdade mesmo não terminei. A medicina era um desejo meu ou de minha mãe? Nunca terei essa resposta. É bom não ter tantas respostas. Tirei dos guardados o caneco de ágata que eu usava na infância, passei a deixá-lo sempre à mão antes de me deitar e, desde então, todas as madrugadas exerço a minha profissão. Acordo, guardo o pequeno vômito no caneco, vou ao banheiro, me despeço e me livro dele, dou a descarga e volto a dormir.
Meu pai, mesmo tendo cruzado comigo algumas vezes no corredor e tendo escutado alguns ruídos através da porta do banheiro apenas encostada, nunca notou nada de diferente ou estranho nem viu motivo para entreabrir a porta e olhar o que acontecia. Olhar cansa, ele sempre me disse. E eu me acostumei àquela rotina, até o dia da descoberta, à minha revelia. (Não era de descobrir muitas coisas, sempre preferi cobri-las, como fazia na infância com os pés e o rosto para dormir.)
Uma amiga do curso de vestibular fora estudar lá em casa. Era verão e um daqueles temporais tão exagerados a reteve. Eu quase rezei para que a chuva parasse mas não houve jeito, acomodei-a em minha cama e recostei-me na poltrona de leitura que ficava em frente. De madrugada, quando eu terminava de cumprir meu ritual, percebi os olhos da amiga assistindo tudo da porta do banheiro. Quis saber se fora a comida ou. E eu, mais para me livrar das perguntas e do susto, contei-lhe meu hábito noturno. Ficou surpresa, preocupada, incomodada. Insistiu que conversássemos a respeito, falou de médicos conceituados que sua família conhecia e podia pagar até, se o caso fosse dinheiro. Rejeitei educadamente o quanto pude as ofertas até perder-me numa crise nervosa e terminar dormindo acordada na sala.
Na manhã seguinte a amiga, uma dessas moças muito solícitas, que adoram tomar conta de tudo em volta como se tivessem parido o planeta, insistiu na ajuda e fez questão de revelar a história à família, meu pai. Arregalei os olhos diante de tamanha mentira, meu pai compreendeu e delicadamente pediu que ela não aparecesse mais. Foi como se ele tivesse finalmente passado sua mão sobre meus cabelos. Ainda naquela semana eu tomei coragem e contei-lhe que sabia de tudo sobre mamãe. Com os mesmos olhos baixos, ele também me pediu que não aparecesse mais e assim voltei para a velha casa dos avós, que a essa altura rangia menos, meu avô morrera de câncer.
Nessa época eu já me esquecera completamente da lua e muito raramente olhava o céu. Minha avó sorria e socava as tristezas com muito alho e noz moscada, que perfumavam seu bolo de carne e nossos jantares. Ela contou-me que, desde a morte de meu avô, tomava um ansiolítico bem forte após o jantar e só despertava na manhã seguinte, houvesse o que houvesse. E havia, é claro, meus vômitos cada vez mais azuis. Eu passei a acreditar que os pequenos vômitos eram meus poemas, como se fossem haicais, que então eu lia em grande quantidade, me dedicando com afinco ao estudo de sua estrutura, único estudo a que eu realmente me dediquei na vida. Ou talvez meu único momento de afinco. Mas nem o afinco nem os haicais me serviram. Com calma e tempo percebi o engano. São cantigas, os pequenos vômitos. Simples cantigas dessas que se canta e somem imediatamente no ar, não merecendo nenhum tipo de estudo. Também não merecem plateias, não têm engajamento, não acreditam em Deus, não sabem de onde vêm nem para onde vão, os pequenos vômitos e sua dona. Ou antes, eles os meus donos, em sua arte pela arte.
Minha avó morreu e eu fiquei na casa velha, rangendo de vez em quando para ter umas poucas saudades, quase sem chegar ao plural. Meu pai disse que tinha uns negócios urgentes e voltou para o sul. Mesmo com os pequenos vômitos, casei, tive um casal de filhos, me separei, casei de novo, tive mais uma menina, além dos dois meninos que meu marido trouxe do primeiro casamento, trabalho, tenho relações sexuais satisfatórias, vejo tevê, faço crediários e tive dois amantes. Mas a verdade é outra, é sempre outra.
Ou melhor, muitas outras, tantas que conforme fui tentando descobri-las me perdi. Ter filhos foi um suplício desde a gravidez. Em todas as três não enjoei uma única vez e passei nove meses em pânico, teria perdido para sempre os pequenos vômitos? E como embalar os filhos que teriam roubado minhas próprias cantigas com que me embalo? Mas eles voltaram na amamentação. Sempre golfamos juntos, os bebês e eu. E foram os únicos momentos em que me senti unida aos meus filhos. Não pela amamentação, essa atividade lamentável que tantas vezes por dia me transformava numa refeição sem graça, mas pelas golfadas, embora as deles não fossem nem de longe azuladas. Não puxaram à mãe. Fora isso, meus filhos são três estranhos que me aborrecem, assim como os enteados. Não que eu goste ou desgoste desse resultado, simplesmente resultou e, como meus pequenos vômitos, foi maior do que eu. Todas as vezes, e não foram poucas, em que tentei me aproximar deles, os conflitos surgiram como do nada, tudo desaguou em mal-entendidos e dias e dias de caras amarradas. Os casamentos também não foram diferentes. E o que se chama de um de seus momentos sublimes, o sexo, serviu apenas para mostrar-me, à custa de pouco gozo, alguma dor e bastante fingimento, a real distância entre dois seres que se amam, mas graças a Deus um dia se separam entre lágrimas.
Quanto ao resto, toda a vida que se vive por aí, sim, o trabalho é inútil, o que compro não me enfeita nem me serve e custa-me o esforço de uma maratona me concentrar num simples capítulo de novela. Mas a cada madrugada, ah, meus pequenos vômitos, sempre eles, eles sim, os seres vivos. Não vou descobrir, já tentei e já desisti. Desistir é o meu melhor. Deito-me excitada e por vezes custo a dormir, já sonhando com o leve toque no ombro esquerdo, sempre o mesmo ombro esquerdo, o despertar, o turbilhão interior e meu parto golfado em azul, pérola e úlcera de toda madrugada. Minha única diversão e meu verdadeiro trabalho. Ultimamente levo-o até o quintal antes de colocá-lo na água da privada. Quem sabe, numa madrugada dessas, encontro a lua bebendo água na vasilha do cachorro que não tenho.
Cesar Cardoso, em As Primeiras Pessoas, livro de contos a ser lançado em final de novembro, pela Editora Oito e Meio.
AUTOSSUSPEITO
Francisco Jorge da Silva Lacerda sempre sentira vontade de conhecer os vitrais, as estantes em madeira de lei e o piso daquela biblioteca antiga, situada no Centro da cidade. Contudo, nunca esperaria que isso fosse alterar os rumos de sua vida.
Naquela quarta-feira de tarde, a biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura colocou-se – digamos assim – no seu caminho.
Não queria ler ou consultar qualquer livro. Porém, não se sentindo à vontade em explicar ao bibliotecário que apenas desejava olhar paredes e estantes, com algum constrangimento apontou a esmo um volume de enciclopédia.
Sentou-se, aguardando o pedido. Estranhou que o olhassem de lado, mas também ele olhava de lado os vitrais, colunas, estantes e... as pessoas.
Pegou, com mal disfarçado desinteresse, o livro das mãos do bibliotecário: Volume XIV da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Limitada, Lisboa. Abriu-o ao acaso: página 505. Começou a ler. “Lacerda (Fernão Correia de). Condutário na Universidade de Coimbra no séc. XVII. Foi nomeado em 24-XII-1603. Deixou a universidade para... ”. Simulando procurar no texto algo bem definido, sua atenção divagava pelos vitrais da cúpula octogonal, as pinturas do teto, as pilastras pintadas em negro e ouro, o imponente lustre e os lambris em madeira evocando reminiscências mouriscas.
Prosseguiu a leitura. "Lacerda (Francisco Arez Lobo de). Moço de câmara de D. João IV. Esteve cativo dos Mouros em Tetuã, durante doze anos, e no cativeiro compôs um poema, intitulado “Justicia sin pasion”, dedicado ao príncipe...” Súbito, seus olhos bateram no nome que encabeçava o verbete seguinte: Lacerda (Francisco Jorge da Silva)... o seu nome!
Com espanto, leu sua data e local de nascimento, os colégios que frequentara na infância, o acidente que sofrera na adolescência “... que o deixou hospitalizado por alguns meses e com um fundamentado receio de veículos motorizados...”, o casamento, o divórcio, a mudança de estado. Ali estavam os dados significativos de sua vida, pequenos sucessos que ele sempre desejara fossem do conhecimento de todos, fracassos que ele pensava só ele saber.
De repente, sentiu alguém tocar-lhe o ombro.
- Senhor, estão à sua procura.
Era o bibliotecário que, fazendo um tênue gesto com a mão direita, indicava a direção onde estavam dois homens, encostados simetricamente aos umbrais da porta de entrada.
Francisco Jorge da Silva Lacerda olhou-os de relance, esticou o pescoço na direção do bibliotecário, e perguntou, em surdina:
- A mim?
- Sim... mas não parecem apressados - respondeu, em tom de desculpa.
Francisco sentiu um estranho pressentimento. Tentou ignorar os dois homens, prosseguindo, com a respiração ofegante, a leitura do verbete. “Aparentemente, Petrópolis era uma cidade demasiado pequena para suas aspirações profissionais e em...” Sua desassossegada leitura passou a se alternar com uma indesejável névoa que persistia no canto do seu olho direito que, ele bem sabia, era a imagem distorcida dos indivíduos que o aguardavam. “Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde cursou jornalismo nas Faculdades Mem de Sá. De espírito irrequieto, abandonou o curso no terceiro ano para, juntamente com dois colegas, fundar o...” Pensou em levantar-se e averiguar o que aqueles homens pretendiam. Porém, as linhas que se seguiam o detiveram. “Em 15 de abril do mesmo ano, foi acusado de um crime: uma mulher foi encontrada, barbaramente assassinada...”
De seu rosto pingaram gotas de suor gélido que umedeceram as palavras “barbaramente assassinada”. Ainda teve tempo de ler mais uma linha: “Condenado à revelia, à pena máxima, foi exaustivamente procurado pela polícia que...”
- Francisco Jorge da Silva Lacerda? - perguntaram os dois homens, ao mesmo tempo, agora colocados lado a lado, em frente à mesa em que ele estava.
Pensou dizer não, que não era ele, mas sua voz não saiu. Quis levantar-se, esclarecer o equívoco... sem dúvida se tratava de um equívoco. Não conseguiu.
- Quem são vocês? - perguntou, afinal, desejando reverter a situação.
- Você sabe - disseram, com voz seca; e após uma pausa: - Acompanhe-nos.
Ele pediu um minuto: uma cólica intestinal repentina... precisava ir ao banheiro.
O bibliotecário indicou-lhe uma porta ao fundo. Os homens seguiram-no, postando-se um de cada lado da porta. Dentro do banheiro ele passou água no rosto e olhou o espelho. Na certa o haviam confundido com outra pessoa. Como poderia ter cometido um crime e não se lembrar de nada? Mas, e o verbete da enciclopédia?
Uma pancada na porta interrompeu-lhe os pensamentos, as cólicas aumentaram.
Alarmado, tomado de um medo desconhecido que não lhe permitia pensar com clareza em nada, forçou a grade da janela do banheiro e pulou.
Na rua, correu o mais que pode até dobrar a primeira esquina, dissolvendo-se no burburinho de fim de tarde. Rodou sorrateiramente pelos lugares mais movimentados até a noite se estabelecer. Depois, tomou a direção de casa.
Chegando à sua rua, deu a volta ao quarteirão, pulou o muro e entrou pela porta dos fundos. Não se poderia demorar. A polícia, na certa, estaria rondando sua casa. Trocou de roupa, colocando uma camisa e uma calça que nunca usara por achar não condizentes com sua figura, raspou o bigode, trocou os óculos. Alterou o penteado e colocou um chapéu. Encurvou então o corpo, dando uma postura diferente a sua estatura.
Olhou-se no espelho e admirou-se com a mudança.
Tomando as mesmas precauções que tivera para entrar, saiu lançando um olhar a tudo, o que vagamente lhe lembrou uma despedida. Na rua, estacou ao avistar seu melhor amigo, que avançava em sua direção. Nos segundos que precederam o possível encontro, ele não saberia dizer se gostaria ou não de ser reconhecido. O amigo fixou vagamente os olhos nele e não parou.
Dormiu em um banco de jardim um sono de pesadelos que o acordavam a cada momento. E cada vez que acordava, um pensamento o assaltava: voltar à biblioteca e terminar a leitura daquele verbete!
Manhã cedo levantou-se, estranhando a indiferença dos passantes. Nas vitrinas das lojas parou por mais de uma vez para olhar o reflexo de sua figura encurvada que, de vitrina em vitrina, lhe parecia mais familiar e ao mesmo tempo mais distante de si próprio. Arriscou a padaria de sua rua, tomou um cafezinho no botequim de sempre e quase esbarrou no porteiro do seu prédio. Ninguém o reconheceu, ou talvez, como a cada momento mais lhe aprazia pensar, todos o viam como sendo outra pessoa.
Só no final da tarde, com o coração acelerado de receio, entrou no Real Gabinete Português de Leitura. Foi recebido pelo mesmo bibliotecário que voltou a lhe oferecer ajuda. Solicitou o volume XIV da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e abriu-o na página 505. Leu o verbete com sofreguidão:
“... foi finalmente localizado por dois policiais numa biblioteca pública do Centro da cidade. No entanto, conseguiu escapar por uma janela do banheiro, pelos fundos do edifício. Foi visto pela última vez pulando o muro que cercava as dependências do prédio onde residia.”
No exato momento em que terminava a leitura do verbete, justo na última palavra da última linha, sentiu que alguém tocava seu ombro:
- Senhor...
Com a testa encharcada em suor, levantou o rosto:
- Senhor... infelizmente está na hora de fechar - disse-lhe o bibliotecário.
Francisco Jorge da Silva Lacerda levantou-se como um autômato e, com as pernas trementes, ganhou a rua.
Caminhou sem rumo por horas a fio. Em frente a uma vitrina tirou o chapéu e passou a mão no cabelo, tentando que este voltasse ao penteado que sempre usara. A madeixa de cabelo, como impulsionada por uma mola invisível, não o permitiu. Adiante, em frente a outra vitrina, olhou seu corpo encurvado. Tentou endireitar-se, voltar à postura correta. Sentiu, no entanto, uma dor aguda nas costas que só desapareceu quando retornou à postura encurvada.
Bem devagar, recolocou o chapéu na cabeça, soltou um suspiro de alívio e seguiu em frente.
Pedro Veludo, num conto ex-inédito.
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