sexta-feira, 12 de agosto de 2011

RINHA DE GALINHA


                                                                    Por Don King 
           nosso correspondente na Academia Brasileira de Letras e Artes Marciais

Waaaaalll, mais uma luta de morte, um ultimate fight literário. Num canto, os punhos de ferro do Destruidor das Laranjeiras – Sergio Sant’Anna. No outro, o Rei da Ginga de Copacabana, Rubens Figueiredo. Sergio com seus 80 quilos de humor e sarcasmo. Rubens e sua técnica de nanoliteratura, com seu microscópio esquadrinhando tudo que vê pela frente. Não sobra pedra sobre pedra no meio do caminho e o pau come na casa de Noca. Holly shit!


Despertei sobressaltado, por volta das seis horas da manhã, ouvindo toques na campainha da porta e uma voz que, mesmo manifestando autoridade, parecia emitida por alguém que não queria chamar muita atenção. Não tive dificuldades de reconhecê-la como sendo do inspetor Arnoceck, com o seu inglês carregado de sotaque.
- Abra a porta! Polícia!
Ouvi também uma voz feminina e outra masculina falando brevemente em tcheco, e ainda o barulho de um molho de chaves.
Apesar de tão cedo, imaginei que se a polícia vinha incomodar-me novamente só podia ser pela trágica complicação em que eu estivera envolvido. Mas seria muito, muito embaraçoso se eles vissem uma boneca em minha cama. Minha primeira reação, quase em pânico, foi tentar tirar Gertrudes dali para colocá-la na poltrona. Mas fiquei muito surpreso e assustado ao perceber que, no meio das cobertas em desalinho, Gertrudes se encontrava toda descomposta, com a saia meio levantada, a liga à mostra. Seus cabelos caíam sobre um dos olhos, enquanto a parte superior do corpo estava descoberta, com dois botões desabotoados e um arrancado. Também o colarzinho fora rompido e contas se espalhavam pela roupa de Gertie e pela cama.
Isso foi o que pude ver de relance, e, como a porta do quarto logo foi aberta pelo lado de fora, larguei a boneca na poltrona sem poder recompô-la direito. Entraram o delegado, a subgerente do hotel e um outro homem, com uma máquina fotográfica numa das mãos.
- Onde está a menina? – perguntou o delegado, lançando olhares para o quarto todo. Ao ver Gertrudes, sua expressão foi de grande espanto, mas eu também estava espantado.
- Menina? Que menina? Não posso compreender – eu disse com a voz trêmula e o coração batendo, e tenho certeza que muito pálido.
- Não se faça de desentendido – o delegado disse. – Parece que o senhor não se cansa de se meter em complicações.
A um sinal do delegado, o homem com a câmera passara a fotografar tudo, detendo-se mais nas cobertas revoltas e na boneca. Com toda a certeza, trabalhava como perito.
Visivelmente tentando manter a calma, o delegado falou algo em tcheco para a subgerente, que me dirigiu a palavra num bom inglês e com ar bastante severo e também de constrangimento.
- Hóspedes telefonaram para a portaria reclamando que ouviram o senhor e uma moça muito jovem, com certeza menor de idade, trocando palavras obscenas nesta madrugada. Ouviram também queixumes da mocinha.
- Isso é mentira... uma infâmia – defendi-me com veemência.
- Foram exatamente quatro hóspedes que ouviram tudo, em quartos vizinhos ao seu – disse a subgerente.
O delegado chegou bem perto de Gertrudes, na poltrona, olhando-a detidamente, mas tendo o cuidado de não tocá-la. Depois, arriscando-se até ao ridículo, olhou dentro do banheiro e do armário e, curvando-se a uma certa distância, lançou olhares para debaixo da cama.
- E essa boneca? – finalmente ele perguntou. – O que faz aí?
- Comprei-a no teatro – eu disse. No Ta Fantastika Black Light Theatre. Mas algo me escapa nisso tudo. – Minha voz traía total insegurança. Eu estava perplexo. – Não posso compreender como ela ficou nesse estado.
- Ah, não compreende? –ironizou o delegado. – Mas o que eu quero saber é o que aconteceu com a menina.
- Que menina? – voltei a dizer, impaciente.
- A que estava no quarto com você. Bonecas não falam. É melhor você contar logo, pois queremos evitar um escândalo envolvendo uma menor de idade.
- Já disse que nenhuma menina esteve aqui. Alguém viu alguma menina comigo? Ou entrando ou saindo do meu quarto? – Eu agora me dirigia à subgerente do hotel.
- Não, que eu saiba, até agora, não – a funcionária disse. – Mas as vozes, as reclamações dos hóspedes...
Bem, não adianta reproduzir em minúcias tudo o que se disse. Fui obrigado a acompanhar os policiais à delegacia e Gertrudes também foi levada, na própria sacola do Ta Fantastika Black Light Theatre, que o delegado viu e pegou no armário, entregando-a ao perito, que colocou a boneca lá dentro, tendo o cuidado de calçar luvas, com toda a certeza para não destruir evidências.
Felizmente pude trocar-me no banheiro, mas a roupa que usara para dormir foi apreendida e levada numa sacola de lavanderia, juntamente com a roupa de cama.

– Trecho de O Livro de Praga – Narrativas de amor e arte, novo livro de Sérgio Sant’Anna, lançado pela Cia das Letras.

Havia agora pessoas naquela fila à espera da sua vez com as compras na mão ou também num carrinho. A primeira era uma mulher de boné preto, com o umbigo à mostra abaixo da barra da blusa. Trazia na mão apenas um saco plástico transparente, borrado de sangue por dentro, com mais ou menos um quilo e meio de carne de boi. O rapaz com crachá voltou, depois de conferir o preço do produto. A tia de Rosane deu o cartão para a caixa e mostrou sua carteira de identidade plastificada. Quando a moça passou o cartão na máquina, soou um apito.
Pela cara que ela fez, o pai de Rosane viu logo que não tinha dado certo. A caixa tentou de novo e soou o mesmo apito. Dessa vez ele teve a impressão de que o apito zuniu mais alto, teve mesmo a certeza de que as lâmpadas lá em cima brilharam mais forte, cuspiram uns raios tão brancos que ofuscaram a forma das pessoas em sua volta. Durou só um instante. Pois logo viu com nitidez que a moça da caixa ergueu o cartão acima da cabeça, brandiu no ar e, inclinada na direção da caixa do lado, perguntou em voz alta:
- Como é que passa isto aqui mesmo?
A outra, com uma embalagem de doze latas de cerveja nas mãos, parou na mesma hora, virou, olhou para o cartão por um segundo e respondeu:
- Ontem foi o último dia. Agora só mês que vem. Talvez.
A caixa devolveu o cartão para a tia de Rosane e perguntou se não queria pagar em dinheiro. Mas falou em voz baixa, mansa, um pouco automática: é claro, nem precisava perguntar, já sabia a resposta. Com seu cartão de volta na mão, a tia de Rosane olhava para o cunhado, para a moça da caixa, para o cartão, para os sacos plásticos cheios e amontoados sobre o piso de cerâmica e sentiu o ar fugir.
Já o pai de Rosane esfriou de repente por dentro: uma corrente gelada desceu até os pés. Com uma clareza também fria, entendeu que ele já contava com aquilo ou com algo parecido desde o início, desde o caminhão parado lá na praça. A primeira coisa que pensou e que o preocupou a sério foi que as pessoas na fila iam ficar irritadas com ele. Olhou de relance e percebeu na sua fila uns quatro ou cinco fregueses – os dois mais atrás levantavam a cabeça para ver o que estava acontecendo, o motivo da demora. Nos olhos brancos, meio arregalados, uns riscos de sangue – e lá estava a mulher com o saco transparente cheio de carne.
A segunda ideia que passou pela cabeça do pai de Rosane foi que estavam na Várzea. E agora sim aquilo ganhou um peso diferente, com as lembranças de histórias brutais, vinganças horríveis praticadas à toa. A terceira foi a imagem do grupo de jovens que chegara pouco antes ao supermercado, seus risos e cantorias sem música, o jeito como abanavam os braços comprimidos a caminho das prateleiras de cervejas.
Disse para a moça que talvez aquela máquina estivesse com defeito, quem sabe numa outra o cartão funcionaria. Mas a moça respondeu que não, a máquina estava boa, e olhou para baixo, para as mãos de unhas pintadas, o esmalte já um pouco descascado, os dedos a postos na frente do teclado só de números. Um anel no polegar brilhava. Então a caixa deu um relance para o primeiro freguês na fila e voltou-se.
Se eles não tinham como pagar – explicou a moça com uma voz calma, de quem parecia entender a situação, de quem compreendia tudo, até bem demais, só que gostaria que nada daquilo tivesse acontecido e preferia que eles fossem embora logo – se não tinham como pagar, explicou a moça, teriam de por tudo de volta nas prateleiras. Pois é. Não havia um funcionário para arrumar as mercadorias de novo. Se não fosse assim, a bagunça aumentava, já vinha muita gente ao mercado só para criar confusão, mexer nas coisas, tentar roubar, justificou ela mais apressada agora: um desinteresse novo, uma falta de paciência começava a dominar. E aquilo era verdade, claro, está certo, é razoável, pensou o pai de Rosane, que respirou fundo e se deu conta da presença de um segurança parado a uns cinco passos, com um colete preto sem botões aberto sobre a barriga proeminente.
Ele e a cunhada foram buscar outro carrinho, que logo encheram com as sacolas colhidas do chão e levantadas duas a duas, uma em cada mão, até a última, e voltaram para os corredores do mercado. Os dois empurravam devagar o carrinho, mais pesado agora. Pareciam subir uma ladeira. Uma das rodas da frente meio torta soltava guinchos num ritmo que entorpecia. Achar um produto no meio daquelas sacolas de plástico, todas iguais – todas chiando com o mesmo barulho quando eles mexiam -, era tão difícil quanto localizar a prateleira onde o produto tinha sido apanhado. Tentavam lembrar, davam voltas, passavam várias vezes nos mesmos lugares. E um por um foram todos retirados do carrinho e colocados nas prateleiras certas.

- Trecho de Passageiro do Fim do Dia, o novo livro de Rubens Figueiredo, que acaba de ganhar o Prêmio Cidade de São Paulo - 2011 como Melhor Livro do Ano. Um lançamento da Cia das Letras.


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