BRÁULIO TAVARES - O CANTADOR CIBERNÉTICO
Nascido em Campina Grande, em 1950, Braulio Tavares escreve poesia, prosa, letras de música, contos, ensaios... É um criador e um pensador da criação literária. Aqui dois poemas desse cantador cibernético: A Coisa e O Caso dos Dez Negrinhos. Se você gostou (e duvido que não goste), tem mais Braulio Tavares no blog dele: Mundo Fantasmo. (http://mundofantasmo.blogspot.com).
A coisa
Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa
que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo
com pernas que ela terá de crescer de si própria;
e que seja ela uma máquina viva, uma máquina
capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir.
Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.
Uma máquina bastarda feita de dobradiças e enzimas
e metonímias e quarks e transistores e estames
e plasma e fotogramas e roupas e sopa primordial...
Quero apenas que seja uma coisa minha, uma coisa
que eu inventei numa madrugada enquanto vocês dormiam
e quando a vi recuei, e quando a soube pronta duvidei,
e vi a eletricidade do relâmpago abrindo seus olhos
e martelei seu joelho temendo-a, e mandando-a falar,
e gritei: "Levanta-te e anda!"- e a coisa era uma galáxia
tremeluzindo no centro da folha branca, me olhando
com meus olhos de homem, me sorrindo
com tantas bocas de mulher, me envolvendo
com sua sintaxe de coisa nova que força o mundo a mover-se,
fincando uma cunha no Real e se instalando naquela fenda,
como um setor a mais invadido um círculo já completo.
Eu quero que essa coisa existisse, assim como
eu quis que eu seja. Quero vê-la brotar desarrumando.
Coisa criada, cobra criante, serpente criança,
criatura sentiente, existinte, sente, pensante,
cercada pela linha brusca do seu até-aqui
Essa coisa me conhecerá e não me reconhecerá
como seu Criador. Essa coisa terá poder de me destruir,
e de me recompor, e me mandar pedir-lhe a bênção.
Então pedirei. Sairei pelo mundo. Com minhas próprias pernas.
Finalmente leve e livre, tendo parido algo maior do que eu mesmo,
e disposto a me abraçar ao mundo, como quem desce do ônibus
na rodoviária da cidade onde nasceu. Mas o mundo!
O que é esse mundo onde eu ando agora? Olha a cor das casas,
o rosto do povo, o som da fala, a manchete dos jornais, o cheiro
do vento... que mundo é esse para onde retornarei depois de livre?
Fico parado, o coração pulando, e só daqui a pouco perceberei,
com uma surpresa antiga — que aquilo não é mais meu mundo:
e o mundo da coisa, é o mundo da minha Coisa.
O CASO DOS DEZ NEGRINHOS
(Romance Policial Brasileiro)
Dez negrinhos numa cela
e um deles já não se move.
Fugiram de manhã cedo,
mas eram nove.
Nove negrinhos fugindo
e um deles, o mais afoito,
dançou: cruzou com uma bala...
Correram oito.
Oito negrinhos trabalham
de revólver e canivete;
roupa caqui vem chegando,
fugiram sete.
Sete negrinhos passando
pela rua de vocês;
alguém chamou a polícia,
correram seis.
Seis negrinhos dão o balanço:
bolsa, anel, relógio, brinco...
Houve um erro na partilha,
sobraram cinco.
Cinco negrinhos de olho
na saída do teatro.
Um vacilou, deu bobeira...
Correram quatro.
Quatro negrinhos trombando,
todos quatro de uma vez.
Um deles a gente agarra,
mas fogem três.
Três negrinhos que batalham
feijão, farinha e arroz.
Um se deu mal: a comida
dava pra dois.
Dois negrinhos se embebedam
de Brahma, cachaça e rum.
Discussão, briga, navalha...
e fica um.
E um negrinho vem surgindo
no meio da multidão.
Por trás desse derradeiro...
vem um milhão.
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