sexta-feira, 12 de agosto de 2011

CHIPS – o prazer da batata & o poder do circuito –

Eu e o meu irmão Cesar – que aliás é o editor deste blog, o latifundiário dono deste pedaço de terra virtual – decidimos escrever um livro a quatro mãos. Há algum tempo que publicamos aqui o que chamamos de haicontos. Como uma brincadeira literária, vamos nos desafiando a escrever microcontos, a partir de temas e ideias. E agora resolvemos reunir o que temos e seguir escrevendo novos textos, até acharmos que a coisa virou um livro. Óbvio que não sabemos quando nem mesmo SE isso vai acontecer. Mas até aprontarmos o livro ou encerrarmos a brincadeira, vamos em frente e publicando aqui. É o que o pessoal chama hoje de work in progress, que foi traduzido pelo espírito de Hélio Oiticica devidamente incorporado por Madame Marta por “vamu tocando essa merda aí pra ver no que dá”.

Beijos a todos, sendo os mais calientes para o meu maninho,
Alice Barreira

O OUTRO PAÍS
A paciente foi trazida para observação por sua irmã que, extremamente nervosa e preocupada, solicitou os cuidados de nosso setor de psiquiatria. Apesar de sua pouca idade, a paciente encontrava-se sem nenhuma dúvida sob o efeito de psicotrópicos, apresentando quadro alucinatório, com visões seguidas de delírios persecutórios. Dentro de nosso procedimento padrão, que segue as normas da Organização Mundial para a Saúde, nossos especialistas do setor tentaram convencer a menor a acompanhá-los ao SAP – Setor de Avaliação Padronizada – ao que a menor se recusou prontamente e com veemência. Fez-se necessário então o recurso do MCS – Modo de Convencimento Sistemático – com auxílio do PPF – Planejamento Psico-Físico, aplicado por nossos RPD – Responsáveis Personais por Deslocamentos. Mesmo assim a paciente manteve-se irredutível, apresentando quadro compatível com aceleramento cardíaco e dilatamento pupilar, o que mais uma vez caracteriza a drogadição. Procedemos então à ISA – Invitação à Sedação Absoluta, mas a paciente não correspondeu à eficácia do tratamento, balbuciando insistentemente as mesmas e únicas palavras sem sentido nem conexão com a realidade que repetiu desde que deu entrada em nosso estabelecimento de saúde: “o coelho branco, o coelho branco, o coelho branco”, enquanto entrava em convulsão seguida de óbito.

Alice Barreira

SURPRESA!
Acordei com uma sensação de enjoo. Me levantei e pude reparar que a provável causa do enjoo era que a casa balançava. Ou talvez fosse só o meu quarto. Olhei em volta. Aquele não era o meu quarto. Assustado, abri a porta e saí, mesmo estando só de calção. Havia uma enorme corredor, com muitas outras portas. A minha casa desaparecera, eu constatei, enquanto andava pelo corredor e examinava aquelas portas, que não tinham nenhuma razão para estar ali. O corredor acabava numa escada que eu subi, às pressas, pulando os degraus de dois em dois. Dei num amplo salão de refeições, com um lustre enorme no teto e centenas de mesas, todas postas para um almoço ou um jantar, com louças finas, talheres de prata, ou que eu imaginei que fossem de prata, guardanapos de linho branco e copos para água, vinho e licores. O salão tinha uma porta larga por onde eu me desabalei, estacando em seguida, paralizado. Eu via o mar. Isso, estava no enorme deck de um transatlântico e via o oceano que tomava conta de tudo em volta, muito maior do que aquele imenso navio. Mas eu tinha certeza de que fora dormir em minha cama, no meu quarto, dentro do meu apartamento, no prédio onde morava desde criança, na mesma rua, no mesmo bairro, na mesma cidade de onde nunca saí. Ou nunca saíra. Enquanto martelava a minha própria cabeça com essa realidade desaparecida, saí andando pra cima e pra baixo daquele transatlântico. Tinha muitos andares, muitas salas, muitas divisões, setores, partes, tudo, tudo, tudo deserto. Não havia ninguém a bordo. Mas isso não era possível, claro. Alguém devia estar em algum lugar daquela maldita embarcação, pelo menos para fazê-la navegar. Continuei procurando, esquadrinhando o navio todo, de ponta a ponta sem parar. Até deitar em qualquer lugar em que a exaustão me derrubasse.
Passei uma semana inteira andando sem parar pra cima e pra baixo e não encontrei ninguém. Havia comida e bebida à vontade nas diversas cozinhas espalhadas pelos andares. Mas nenhum ser humano. Aliás não vi nenhum ser vivo em todo o navio. Nenhuma mísera barata andava por ali. Nenhuma gaivota passava pelos céus sempre azuis, azuis, azuis. Eu não aguentava mais tanto azul, tanto mar. Já não conseguia mais pensar e, em desespero, me atirei na água.
Estou no mar há três dias e três noites. Talvez o impulso que me fez pular tenha sido o do suicídio, mas o baque na água fria talvez tenha despertado o instinto de vida em mim. O casco do navio possui umas reentrâncias onde posso quase me sentar e assim sigo o navio bem de perto e descanso quando preciso. Nunca me senti tão ocupado em toda a minha vida. Estou exausto. Vou me recostar mais uma vez no navio e espero finalmente conseguir dormir. E depois, quem sabe, acordar novamente em meu quarto.

Cesar Cardoso

UM ESTUDO PARA OS PRÓXIMOS PASSOS
A mulher de cabeça branca que vem ajeitando o vestido, o homem de terno amassado carregando a pasta abarrotada, a doméstica atrasada, a mulher de tailleur que solta a calcinha da bunda, o cara com a camisa do Coríntians que lê a manchete, o vendedor de vassouras a altos brados, o homem por trás do vidro escuro do 4 por 4, o pm que olha a gari, a gari que varre o meio-fio, o mendigo que conversa com seus cachorros, a criança que aprende a andar de bicicleta, a vizinha que faz cooper, o jornaleiro que sorri pra quem passa, a outra vizinha que agora está de cadeira de rodas, o senhor que era dono do botequim da esquina, o alcoólatra que espera o botequim abrir, o entregador da farmácia que ajeita o pneu da bicicleta, o vizinho cuja casa pegou fogo semana retrasada, o rapaz distraído que é dono da delicatessen da esquina, o namorado mandão que comanda a delicatessen com mão de ferro, o português dono da papelaria, o louco que fuma sem parar e torce peloBotafogo, o chaveiro da esquina, o rapaz que passeia com seis cachorros...
Qual deles será o nosso assassino?
 
Alice Barreira

BAMBA
Ele nascera no circo, filho de um casal de acrobatas. E assim, desde pequeno os pais o incentivavam a seguir seus passos. Mas o menino não gostava daqueles passos e chorava cada vez que o pai ou a mãe, brincando com ele, tentava aproximá-lo da linha acima do chão.
Os pais achavam que era apenas uma questão de tempo para o filho parar com aquela cisma, mas só mesmo sob ameaças de castigo e pancada o garoto cedeu e se iniciou na corda bamba.
E então chegou o dia de sua estreia. Seu nome no cartaz, a roupa brilhante, as sapatilhas, tudo era novo. Menos o mesmo sentimento que continuava carregando.
Subiu a longa escada, parou em frente ao arame, respirou fundo e foi caminhando, passo a passo, até a metade dele. Ali parou novamente, respirou fundo três vezes, enquanto a plateia inteira prendia a respiração, e então deu a pirueta. Um oh de admiração percorreu toda a lona. Mas em vez de pousar de volta na corda, o menino deu outra pirueta no ar, causando mais admiração ainda na plateia. E em seguida mais uma e mais uma e mais uma. A plateia, seus pais e todos no circo olhavam sem entender, enquanto ele seguia dando piruetas no ar, única forma que encontrara para não enfrentar seu medo de cair.

Cesar Cardoso

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