quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

TERRAS QUE INVENTEI

ESSA TERRA ME ESCREVE: ANTÔNIO TORRES

Antonio Torres é autor de grandes livros. Um Cão Uivando Pra Lua, Meu Querido Canibal, Balada da Infância Perdida... Mas possivelmente seu livro mais marcante, com muitas traduções e talvez o que mais venda, é o romance Essa Terra.
Há alguns textos que nos marcam. Nunca me esqueço da primeira vez que li A Metamorfose, de Lobato na infância, da Carta às Icamiabas, em Macunaíma, e tantos outros. Dentre essas experiências, trago a leitura do primeiro capítulo de Essa Terra. No livro, são quatro páginas e meia. E eu nunca me esqueci da beleza árida daquele texto e da porrada que a gente, leitor, leva, no final.
No começo de janeiro, assisti a duas palestras sobre escrever romances na Estação das Letras, no Rio de Janeiro. Um dos palestrantes era Antônio Torres, que falou sobre sua obra e seu ofício de escritor e romancista, a importância do ritmo em seu escrever e várias outras coisas. E ouvindo Torres falar, com uma força semelhante à de seu texto, eu me lembrei de trazer aqui para o PATAVINA’S essas páginas iniciais de Essa Terra.

1

     - Se estiver vivo um dia ele aparece, foi o que eu sempre disse.
     - O que foi que o senhor disse?
     Naquela hora eu podia fazer uma linha reta da minha cabeça até o sol e, como um macaco numa corda, subir por ela até Deus – eu, que nunca tinha precisado saber as horas.
     Era meio-dia e eu sabia que era meio-dia simplesmente porque ia pisando numa sombra do tamanho do meu chapéu, o único sinal de vida na velha praça de sempre, onde ninguém metia a cabeça para não queimar o juízo. Loucos ali só eu e o matuto com seu cavalo suado, que surgiu como uma aparição dentro de uma nuvem de poeira, para deter a minha aventura debaixo da caldeira de Nosso Senhor.
     - Qualquer pessoa deste lugar pode servir de testemunha. Qualquer pessoa com memória na cabeça e vergonha na cara. Eu vivia dizendo: um dia ele vem. Pois não foi que ele veio?
      - O senhor estava com a razão.
     - Ele mudou muito? Espero que ao menos não tenha esquecido o caminho lá de casa. Somos do mesmo sangue.
     - Não se esqueceu, não, tio – respondi, convencido de que estava fazendo um esclarecimento necessário não apenas a um homem, mas a uma população inteira, para quem a volta do meu irmão parecia ter muito mais significado do que quando o dr. Dantas Junior veio anunciar que havíamos entrado no mapa do mundo, graças a seu empenho e à sua palavra de deputado federal bem votado. Foi um dia muito bonito, tão bonito quanto os dias de eleição, embora sem as arruaças, as cervejas e as comidas dos dias de eleição, porque tudo aconteceu de repente, sem aviso prévio. O deputado subiu no palanque feito às pressas em frente do mercado, ergueu seu paletó empoeirado sobre todos nós e disse que o Junco agora era uma cidade, leal e hospitaleira. Agora podíamos mandar no nosso próprio destino, sem ter que dar satisfações ao município de Inhambupe – e foi justamente essa parte do discurso que o povo mais gostou. E no entanto esse dia já está se apagando da nossa lembrança, apesar de nada mais ter acontecido daí por diante.
     Quem não mudou em nada mesmo foi um lugarejo de sopapo, caibro, telha e cal, mas a questão agora é saber se meu irmão ainda se lembra de cada parente que deixou nessas brenhas, um a um, ele que, não tendo herdado um único palmo de terra onde cair morto, um dia pegou um caminhão e caiu no mundo para se transformar, como que por encantamento, num homem belo e rico, com seus dentes de ouro, seu terno folgado e quente de casimira, seus ray-bans, seu rádio de pilha – faladorzinho como um corno – e um relógio que brilha mais do que a luz do dia. Um monumento em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa terra também podia gerar grandes homens - e eu, que nem havia nascido quando ele foi embora, ia ver se acordava o grande homem de duas décadas de sono, porque o grande homem parecia ter voltado apenas para dormir. Levanta, cachorro velho, antes que os morcegos te comam. Acorda, ante que a alma penada do teu tão saudoso avô queira um relatório completo da tua viagem. Anda depressa, que ele está saindo da cova para vir dar um tapa nas tuas costas: - Caboco setenta. Tu vale por setenta deste lugar. – Por que, Padrinho? – Porque tu já conhece quatro estados do mundo, não é, meu fio?
     Eu estava louco para tomar um banho no tanque velho (lá mesmo, onde todos nós vamos morrer afogados) e queria que o meu irmão fosse comigo e estava pensando em arranjar uma jega, a mais fogosa que houvesse, para o famoso Nelo matar a saudade de um velho amor.
     - Diga a ele que ele nasceu ali – meu tio apontou para o lado do curral da matança. – Diga também que eu carreguei ele no meu ombro.
     - Nelo se lembra de tudo e de todos, tio. Nunca vi memória tão boa – insisti -, para não deixar a menor dúvida em seu espírito. E só então ele haveria de permitir que eu continuasse a minha caminhada.
     - Fico muito satisfeito – meu tio sorriu, no seu jeito encabulado de homem sério, e o cavalo me cobriu com outra nuvem.
     A alpercata esmaga minha sombra, enquanto avanço num tempo parado e calado, como se não existisse mais vento no mundo. Talvez fosse um agouro. Alguma coisa ruim, muito ruim, podia estar acontecendo.
     - Nelo – gritei da calçada. – Vem me ensinar como se flutua em cima de um tronco de mulungu. Me disseram que você já foi bom nisso.
     Não ouvi o que ele respondeu, quer dizer, não houve resposta. Não houve e houve. Na roça me falavam de um pássaro mal-assombrado, que vinha perturbar uma moça, toda vez que ela saía ao terreiro, a qualquer hora da noite. Podia ter sido o meu irmão quem acabava de piar no meu ouvido, pelo bico daquele pássaro noturno e invisível, no qual eu nunca acreditei. Atordoado, me apressei e bati na porta e bastou uma única batida para que ela se abrisse – e para que eu fosse o primeiro a ver o pescoço do meu irmão pendurado na corda, no armador da rede.
     - Deixa disso, Nelo – bati com a mão aberta no lado esquerdo do seu rosto e devo ter batido com alguma força, porque sua cabeça virou e caiu para a direita. – Deixa disso, pelo amor de Deus – tornei a dizer, batendo na outra face, e ele se virou de novo e caiu para o outro lado.
     Pronto.
     Eu nunca mais iria querer subir por uma corda até Deus.


(Primeiro capítulo do romance Essa Terra, de Antônio Torres. Editora Record.)

6 comentários:

  1. Beleza de blog e apareça lá em casa...bjs. (www.sensivelldesafio.zip.net)

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  2. Valeu, Celia. Vou lá sim. E volte sempre ao PATAVINA'S.

    Abracadabraço do
    Cesar

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    1. Adorei as publicações. Em tempo havia me esquecido da porrada de "Essa Terra". Muito bem lembrado.
      Marlene de Araujo

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  3. Marlene, querida,

    Tudo legal? Antonio Torres é um dos grandes, né?

    Volte sempre ao PATAVINA'S.

    Beijo

    Cesar

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  4. Ao visitar a este excelente blog, muito gostei. É um belo e aconchegante lugar... Abraços...

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  5. Valeu, Antonio.

    E volte sempre ao PATAVINA'S.

    Abracadabraço do Cesar

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