quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

AUTOPEÇAS LITERÁRIAS CARDOSÃO

a oficina de literatura do cesar cardoso

EM ALGUM LUGAR
DO PACÍFICO SUL


Roberto Robalinho é diretor, montador e roteirista. E agora experimenta a literatura pura e simples, sem ser um texto preparado para virar cinema. Seu conto EM ALGUM LUGAR DO PACÍFICO SUL está na coletânea A POLÊMICA VIDA DO AMOR, publicada pela Editora Oito e Meio, onde também está o editor-imperador-e-cacique deste blog, Cesar Cardoso. No Rio, o livro pode ser encontrado na loja da editora, que fica na Travessa dos Tamoios 32, loja, C, e na Livraria da Travessa. Em São Paulo, na Livraria Cultura. E na realidade virtual, nos sites da editora (www.oitoemeio.com.br) e das livrarias Travessa e Cultura. Além de Roberto e Cesar, A Polêmica Vida do Amor traz mais 18 contistas escrevendo sobre o tema-título.

“Adorei o livro. Do primeiro ao último autor. Maravilha! Que beleza de surpresa quando um livro nos pega pela rabeira, nos joga na parede, no teto.”
Marcelino Freire.

A navalha entre os dedos ardia dentro do peito.

     Todo ano na ilha de Pentecostes, em algum lugar do Pacífico Sul, jovens se lançam ao abismo para se tornarem homens

     O fio da navalha era o fio do corpo a se movimentar trôpego pelas ruas.

     se lançam ao abismo na esperança de se tornarem homens. Vivem na pele a dor de se jogar em busca de um amor, como suicidas apaixonados. Em cada salto, a lembrança da matéria de que são feitos. A carne e o osso pesando sobre os ombros, puxando para o chão. E a história de tempos imemoriais de um homem traído que perseguiu sua mulher até o cume de uma montanha

     A navalha pulsa como veias, como se seu coração de metal também gritasse.

     até o cume de uma montanha um homem perseguiu seu amor e seu ódio e lá se atirou do penhasco atrás da mulher que viu se atirar. Os dois corpos em queda livre como os cacos da implosão de um edifício. O balé sobrevoando os ventos, será possível voar para longe de suas existências e abandonar o corpo, cárcere deste mundo a puxar para baixo com todas as forças?

     O chacoalhar da lâmina no bolso, o tilintar dos ossos em cada passo sobre os degraus do hotel imundo. Pé ante pé erguendo o peso de estar vivo, um saco de pedras no peito.

    por um minuto é possível imaginar as almas a largarem os corpos que insistem na queda, insistem em encontrar o chão duro e inevitável. E enquanto durar o voo poderão bailar como se amassem apesar de tudo, como se fosse possível seguir pela vida flutuando sem tocar os pés no chão, sem precisarem de corpo, invólucros a mediar os amores, a doce ardência que nos amarra no mundo. E nessa existência de pássaro, despossuídos de si, nus de tudo, são entrelaçados num gozo profundo de quem ama incondicionalmente para enfrentar a eternidade

    A lâmina embaçada pelo ar denso do corredor impede a visão do rosto refletido, mesmo que não caiba um rosto inteiro na magreza da lâmina. E se, por ventura, surgir um pedaço de rosto, que seja um olho ou uma orelha, não se consegue distinguir as feições irreconhecíveis de quem já se perdeu de si e se esmigalhou em pedaços – quantas lâminas e quantos pedaços seriam necessários para poder mais uma vez juntar num só rosto?

    a breve eternidade de quem acredita poder se despir de si em queda livre. O gozo profundo que torna breve o infinito dos amantes que se jogam no abismo. E lá se foram, montanha abaixo, os corpos dos dois amantes, em medo e em fúria, ambos amando a sua maneira suicida. No entanto, havia algo que o homem não sabia, havia sempre algo que o homem não sabia. Em algum lugar do Pacífico Sul

    o homem não sabia

    Não sabia quantos minutos, horas, dias ficou na frente daquela porta. A navalha afiada atravessa o tempo com punhaladas a conta-gotas, mas não sabe contar, apenas rasga a duração com sua ferocidade de bicho. O bicho a espreita dentro do bolso a esquecer o tempo escutando as batidas do coração – tu tum, tu tum, tu tum, tu tum. Quantas batidas é preciso até que se possa atravessar a porta do desterro?

    o homem nem desconfiava, mas a mulher, antes de se jogar, tinha amarrado os pés a um cipó bastante longo para simular o voo ao chão, curto e elástico o bastante para puxá-la de volta às nuvens no milésimo de segundo antes de seu nariz se esborrachar no solo. Os dois se atiraram do cume da montanha, um e, depois, o outro. O homem na perseguição de seu amor e da sua incompreensão inexorável do feminino. O ventre que o pare e outro que o fere. E enquanto o homem se espatifava contra as pedras, o ser desmembrado tal qual um coração dilacerado, a mulher voava em rodopios para baixo e para cima. Ele quebrado em mil pedaços e ela fazendo piruetas no céu. O defunto e a bailarina

      A porta abria como uma fenda em seu coração, de onde escorria qualquer restolho de homem que ainda o habitava. O átimo de segundo que o separava do corpo nu da mulher amada e ultrajada, que separava a lâmina da navalha e a pele alva, dilatava em toda uma vida a dois, de léu em léu, doendo.

    em algum lugar do Pacífico Sul, jovens se jogam ao léu e relembram um homem que se atirou do precipício atrás da mulher amada. Só abandonam a adolescência se enfrentarem o amor e seus abismos. Só é homem aquele que sente a dor em queda livre por um amor, aquele que aceita por um breve instante o suicídio apaixonado, que acredita algum dia poder voar feito um pássaro

    O amor estendido nu na cama e a eternidade que os separa contada no fio da navalha. O tempo repousa sobre a lâmina afiada feito um faquir. Podia sentir o calor do beijo na roda gigante e a cidade curvada sobre o desejo. Ali suspensos, como se flutuassem sobre todos, fizeram as mais lindas juras de amor. O balanço da gaiola enferrujada embalava os jovens amantes. Poderiam viver para sempre naquele ninho de metal sobrevoando o antigo bairro, os sobrados decrépitos, as velhas enfadonhas, o interminável jogo de sueca, o suor dos operários na volta para casa, as mães arengando com os filhos, a nuvem negra dos ônibus, tudo se desprendia dos pés entrelaçados como uma poeira fina. O amor era um patuá com o qual se enfrentava o mundo e se alçava voos delirantes.

    todos os anos após a época das chuvas torrenciais os jovens se embrenham no mato, como se adentrassem um enorme ventre vegetal. Buscam nos recantos mais secretos da mata e de seus seres o cipó perfeito para alçar o voo ritual e masculino, o voo suicida do qual se espera que saiam renascidos

    O giro da roda na gira desse viver e suas entranhas. O peito estalando dentro da gente. O amor corrói por dentro até que um dia só sobram os ossos. Até que um dia o cadáver deixa de ser vivo e se deita no chão livre de suas angústias. Seria possível viver sem amor? Quem levaria esse corpo sem vida pelo mundo afora? A mulher deitada nua atiçando o velho defunto que o habitava, com curtas navalhadas. A alça do vestido vermelho que insistia em escorregar pelos ombros em cima da roda gigante. Se pudesse viveria apenas com aquele ombro, a pele amarela reluzindo no pôr do sol. E deitou a cabeça no ombro dela como se toda a humanidade deitasse junto, e toda cidade fosse um leito para os amantes adormecidos.

    e dentro do ventre da floresta, já de cipó na mão, os jovens erguem por cima do monturo ancestral imensas plataformas para que do alto possam se jogar. Já não há mais montanhas que suportem amantes desesperados, ruíram sobre os corpos flutuantes. E existem agora apenas nas canções românticas e nas raízes das árvores milenares. Os jovens, às centenas, rasgam um buraco na barriga da mata, como se rasga o bucho de um boi, e erguem o edifício temporário de suas existências. Ali, um salto separa os meninos dos homens. É preciso acreditar no amor e suas profundezas, deixar de existir para vestir outra existência. Vão-se os meninos, pobres bezerrinhos, ficam-se os homens, dos que não se esborracham no chão

    A mão segurando a navalha dormente no bolso. A mulher adormecida e de uma nudez que ardia por dentro. Estar naquele quarto de lâmina afiada era estar em múltiplos lugares. Podia sentir já o fio da navalha penetrando a pele rígida e quente, e ao mesmo tempo sentir as carícias de juras eternas plainando sobre o quarto. Podia também imaginar as outras mãos e outro corpo acariciando a mulher amada, como se a própria navalha o furasse. Esse estar em camadas era como um transe amargo, era um sofrer-estar. Quantas segundas peles, camadas de lugares, é possível um homem vestir sem se implodir em mil pedaços?

    e logo o edifício desengonçado no meio da mata, torso exógeno, está pronto despontando sobre a copa das árvores. E os meninos sobem aos montes para se arremessarem lá de cima. Amarram com cuidado o cipó aos pés como um condenado à forca ao pescoço, deixando um respiro na esperança de se livrarem daquilo. E vão de passos miúdos, apassarinhados, eternizando a caminhada até a beira, até o precipício. E lá do alto, respirando o respirar antigo da floresta, as cabeças cheia de nuvens, os jovens se atiram na profundeza de seus âmagos para se tornarem homens. Se atiram como se atirou um homem atrás de seu amor, mas amarram aos pés cipós como fez a mulher ultrajada. E se lançam não na queda amarga do homem, mas no voo singelo e feminino, bailam como bailarinas no céu. Para serem homens não devem apenas se atirar na paixão, mas ser um pouco mulheres. Os jovens se jogam não como se jogou um homem, mas como se jogou uma mulher em sua paixão de voo livre. Só se é homem quem vive por inteiro uma mulher e assim não se quebra no chão

    E ali, no estilhaço de seu ser, contemplava o amor se equilibrando na ponta da navalha, de um lado a mão dormente e de outro o corpo nu inquietante. Pode o flutuar da pena servir de contrapeso a pedra dolorosa?

    em algum lugar do Pacífico Sul jovens se jogam ao abismo aos montes para se tornarem homens.

    Em algum lugar no pacífico que o separava da mulher que ama, era preciso tornar-se homem.

2 comentários:

  1. Olá Cezar, foi ótimo participar da experiência "A polêmica vida do amor", e acho muito bom a iniciativa de publicar os contos no seu BLOG. Pessoalmente agradeço a oportunidade de ter mais pessoas lendo o meu trabalho.

    Um grande abraço, Roberto Robalinho

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  2. É isso aí, Roberto, a coletânea é um barco bacana pra gente navegar em conjunto, com a Oito e Meio no leme. Vamos que vamos. Parabéns pelo teu conto!

    Abracadabraço do

    Cesar

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