sexta-feira, 30 de outubro de 2009

CHIPS – o prazer da batata & o poder do circuito –


HAICONTOS

Com o cansaço antecipado do que não acharei, fui para o meio de Lisboa acompanhar o início das filmagens de Haicontos, média-metragem do cineasta português Fernando Gente, baseado em 15 contos meus. O roteiro foi premiado e conseguiu financiamento da Faculdade de Cinema da Victoria University of Wellington, da Nova Zelândia, e mesmo que ninguém entenda porque a Nova Zelândia resolve financiar cinema em português, deve ficar pronto em meados de 2010 ou Deus sabe quando. Seguem três dos haicontos, que no filme vão se misturando, formando aquela terceira cor que alguém chamou de aurora. Tomara que o filme não fique como ervas, sem ser arrancado.

Alice Barreira

PRETÉRITO DO FUTURO

Uma chuva fina começava a cair e eu apertei o passo para atravessar a praça e chegar logo ao teatro. De repente o velho surgiu quase à minha frente, como se tivesse se materializado do nada. Vinha num arremedo de corrida, com uns passinhos miúdos e desencontrados, e de súbito estacou, sacudiu os braços e deu meia volta.

Vai embora o velho doido, eu pensei. Mas ele deu outra meia volta e recomeçou seu estranho balé de passinhos desengonçados, tentando uma rapidez que não alcançava e vindo novamente em minha direção. Então foi minha vez de parar e olhar fixamente para ele, tentando algum contato ou pelo menos entendimento. Mas o velho seguiu absorto em sua dança, ritual ou mal de Parkinson.

Se estendesse o braço poderia tocá-lo. Súbito, ele partiu pra cima de mim, cabeça baixa, cheguei a levantar as mãos em sua direção para evitar uma trombada. Então ele deu uma guinada de corpo para a esquerda. Tive a certeza que ia cair. Mas não. Seus pezinhos gingaram e o levaram a passar por mim. Em seguida esticou a perna e novamente se pôs a sacudir os braços, dizendo algo incompreensível. O que dizia o velho? Que língua era aquela? Ou melhor, que monossílabo era aquele, repetido já quase ao lado do meu ouvido?

Gol. Era isso. O velho repetia gol, gol, gol. E me encarava com seu grito quase mudo. Gol. Olhei fixamente seu rosto, a boca, o nariz torto, os olhos, o olhar, aquele olhar, naquela praça.

Sim, o velho era eu.


PROFISSÃO

Uma haste dos óculos presa com esparadrapo. A dentadura frouxa por causa da boca torta. A boca torta devido ao derrame. As costas com uma dor constante do abaixar para as guimbas. Os dedos amarelados pelas guimbas. O peito atravessado pela alça da bolsa. O zíper quebrado. Os retratos amassados dentro da bolsa. Os tios, a mulher, o casal de filhos, às vezes na memória. As pernas sobre o cobertor. O cachorro por entre as pernas, latindo para os garotos que jogam futebol bem em frente e gritavam gol, gol, gol.

A memória por entre a boca. As pernas frouxas. As costas presas com esparadrapo. Os tios, a mulher, sobre o cobertor. Uma haste dos óculos dentro da bolsa. O peito atravessado por uma dor constante, bem em frente. A dentadura quebrada. As guimbas tortas na boca. Os dedos tortos do abaixar por causa do cachorro. Os retratos amarelados dos garotos no futebol. As pernas devido ao derrame. O casal de filhos amassados pelas guimbas, pela alça da bolsa, pelo zíper. Às vezes latindo.

Bem em frente, a placa, na calçada: aluga-se.


FINADOS


Os helicópteros seguem cruzando o céu e despejando bombas, ao som de Waldick Soriano, enquanto as crianças interrompem o futebol para que a kombi do ferro-velho passe lentamente, quase se desconjuntando, com o velho ao microfone, compro minas, compro aerrequinzes, compro máquinas de lavar. Ninguém o escuta no meio da algazarra de mulheres disputando a unhadas e empurrões as ofertas dos camelôs. Do outro lado do campo de terra batida os gigolôs tentam eles mesmos satisfazer os clientes depois que todas as putas foram internadas com a epidemia.

Apenas uma pessoa atravessa em passos lentos essas pequenas multidões e se aproxima do que restou do pequeno cemitério. Ele entra, dobra à esquerda e logo se ajoelha. É Deus. Ajoelhado, ele deposita uma tábua no túmulo da esperança.

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