sexta-feira, 20 de novembro de 2009

RIO DE VERSOS

Drummond traça um retrato da cidade.E, como todo retrato, este também tenta desesperadamente fixar um momento que, inexorável, passa entre as ruas e entre os dedos, como a água, a chuva. O que fica, então? A poesia, quem sabe.

ELEGIA CARIOCA

Nesta cidade vivo há 40 anos
há 40 anos vivo esta cidade
a cidade me vive há 40 anos.

Sou testemunha
cúmplice
objeto
triturado confuso agradecido nostálgico

Onde está, que fugiu, minha Avenida Rio Branco
espacial verdolenga baunilhada
eterna como éramos eternos
entre duas guerras próximas?
O Café Belas-Artes onde está?
E as francesas do bar do Palace Hotel
e os olhos de vermute que as despiam
no crespúsculo ouro-lilás de 34?

Estou rico de passarelas e vivências
túneis nos morros e cá dentro multiplicam-se
rumo as barras-além-de-tijuca imperscrutáveis
Sou todo uma engenharia em movimento
já não tenho pernas: motor
ligado pifado recalcitrante
projeto
algarismo sigla perfuração
na cidade código
Onde estão Rodrigo, Aníbal e Manuel
Otávio, Eneida, Candinho, em que Galeão
Gastão espero o jato da Amazônia?
Marco encontros que não se realizam
na abolida José Olympio de Ouvidor
Ficou, é certo, a espelharia da Colombo
mas tenho que tomar café em pé
e só Ary preserva os ritos
da descuidada prosa companheira
Padeiros entregam a domicílio
o pão quentinho da alegria
o bonde leva amizades motorneiras
as casas de morar deixam-se morar
sem ambição de um dia se tornarem
tours d’ivoire entre barracos sórdidos
o rádio espalha no ar Carmem Miranda
a Câmara discursa
os maiôs revelam 50%
mas prometem bonificações sucessivas
Getúlio sorri, baforando o charutão
Rio diverso múltiplo
desordenado sob tantos planos
ordenadores desfigurados geniais
ferido nas encostas
poluído nas fontes e nas ondas
Rio onde viver é uma promissória sempre renovada
de classe média
enquanto multidões penduradas nos trens elétricos
na indistinção entre vida e morte
futebol e carnaval e vão caindo
pelo leito da estrada os morituros

Ser um contigo, ó cidade,
é prêmio ou pena? Já nem sei
se te pranteio ou te agradeço
por este jantar de luz que me ofereces
e a ácida sobremesa de problemas
que comigo repartes
no incessante fazer-se, desfazer-se
que um Rio novo molda a cada instante
e a cada instante mata
um Rio amantiamado há 40 anos.

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