sexta-feira, 5 de março de 2010

REVISTA GANDAIA

Na década de 70 proliferaram no país publicações de literatura editadas e veiculadas pelos próprios autores, o que ficou conhecido como o movimento da poesia marginal, ou poesia de mimeógrafo. No Rio, uma dessas publicações foi a revista Gandaia, feita por escritores que, em sua maioria, cursavam a faculdade de Letras da UFRJ, como o poeta Paco Cac, criador e editor da Gandaia. A revista sobreviveu por sete números – conta de mentiroso. No número seis publicou uma entrevista com o poeta Paulo Leminski, que passamos a reproduzir aqui, em duas partes. Lá vai a primeira, com a metralhadora giratória do poeta mandando bala a torto e a direito.

(PS: o logotipo da revista foi uma criação do humorista Reinaldo.)

CURITIBA URGENTE: A REDAÇÃO DA GANDAIA ACABA DE CAPTAR TELEPATICAMENTE 1 MENSAGEM DO POETA PAULO LEMINSKI. ATENÇÃO LEITORES: SINTONIZEM AS ANTENAS DA RAÇA E CONTINUEM OUVINDO A NOSSA PROGRAMAÇÃO.

A POESIA TEM QUE CAIR NA GANDAIA!

... Essa expectativa que a Gandaia fala existe. E produz a poesia previsível. A poesia que se pode prever. Boa é a poesia que não se pode nem profetizar. Tem dois tipos de poesia. A que contraria expectativas. E a que satisfaz uma demanda. Exemplo da primeira: poesia concreta. Exemplo da segunda: Thiago de Melo, Ferreira Gullar, Carlos Nejar etc.

Quero deixar claro que desejo o mesmo tipo de sociedade que Thiago de Melo deseja. Pelo menos, na organização econômica. No terreno estético, porém, a esquerda brasileira, os artistas engajados e alinhados com a transformação da sociedade, são o fim da picada.

Jdanovistas, naturalistas (e não realistas, como pensam ser), sectários, populistas, correspondem àquilo que, na URSS, chamou-se de proletcult. Em contraposição ao grupo LEF, liderado por Maiakovsky, e que defendia a vanguarda como nova arte do proletariado triunfante. A Proletcult defendia uma literatura velha, só que com temas operários e populares. Essa literatura velha era o bom romance burguês do século passado, suas formas e técnicas. O poemão e a versalhada.

O problema com os proletcultistas brasileiros (nacional-populistas) é que eles não chegam ao povo, no duro. Como? O povo é analfabeto ou vê tv. Então eles fantasiam tudo na cabeça deles. A presença do povo, a atuação do escritor. Até a revolução. Mas é tudo imaginário. No duro, o que eles querem é vender livros, aparecer, trabalhar na rede Globo e – last but not the Franz Lizt! – GANHAR PODER. A arte que eles fazem fica dentro da intelectualidade pequeno-burguesa mesmo, em noites de autógrafos.

Versinhos participantes ingênuos são hoje a classe dominante da poesia brasileira. Com esse país que taí, realmente a raiva é tanta que tudo que a gente puder jogar contra esse sistema a gente joga: até sonetos! A merda é que esses versinhos participantes, como linguagem, já foram feitos, estão consagrados e fazem parte do Panteon burguês: é o Drummond da Rosa do Povo de 1940. Agradam, não agridem. Aquela poesia do Drummond só era nova para os padrões brasileiros Na realidade, no mundo inteiro, estavam fazendo aquele tipo de poesia: Neruda, Eluard, etc. Aliás até o nome do livro “Rosa do Povo” vem de fora. Bem antes, Eluard publicava um livro de poemas: “La Rose Publique”...

Essa poesia participante de hoje é a diluição intensiva da poesia anti-facista da época da Segunda Guerra e da Resistência. Quer dizer: os “revolucionários” estão com o relógio poético atrasado quase cinquenta anos!

Eu não acredito no revolucionarismo de contistas realistas. Os homens de letras engajados que se vê por aí são oportunistas. Eles jogam numa dupla: se a revolução ocorrer, eles estarão muito bem, nos empregos e nos compêndios. Se ela demorar, sempre tem uma vaga de roteirista na Tv Globo ou uma cadeira dando sopa na Academia Brasileira de Letras.

A revolução que esses caras querem é bem pequenininha. Eu quero uma grande. A grande. A total.

O Satori coletivo.

O homem de Guevara, além de todas as alienações.

Das literárias, inclusive.

A ditadura, que mima e patrocina a classe média, sua massa de apoio (remember marchas com Deus, pela Propriedade e pela Família), não tem maiores dificuldades em neutralizar os efeitos da crítica oriunda da intelectualidade radical da classe média.

Um regime de fato, que se garante com tanques e vasto aparato policial, não tem medo, evidentemente, de cartuns, teses universitárias, nanicas, como não tem medo de piadas sobre o general presidente.

A única coisa que pode com esse regime de fato são situações de fato: greves, sindicatos livres, organizações de base, confrontos. Toda mensagem é uma vice-ação (apenas). O sistema absorve fácil, fácil. Só práticas coletivas democráticas não vão poder ser absorvidas por um regime minoritário e entreguista.

Manifestações “culturais” ele absorve. Elas afinal são mercadorias: livros, revistas, teses, filmes, peças, canções. O capitalismo não tem medo do que se pode vender ou comprar. O mal da esquerda brasileira é que ela confunde o povo com os leitores da Editora Civilização Brasileira.

Nenhuma consideração sobre poesia hoje pode ser levada a sério se não levar em conta o simples fato de que nunca se fez nem se consumiu tanta poesia na história da humanidade, como hoje.

Me refiro sobretudo à poesia gravada, transmitida via música popular. Mas a poesia escrita vive junto com outros tipos de textos impressos literários e/ou para-literários, a maior crise de sua história.

Crise, aqui, não quer dizer agonia. Ninguém está moribundo. Em nossa época nada mais morre.

Tudo pode ser recuperado via moda. Revival. Nostalgia.

Nosso tempo é o tempo da recuperação da informação.

A multiplicação das técnicas de reprodução e o progresso das técnicas de registro tornam todas as épocas contemporâneas, no terreno intelectual, cultural e artístico.

A crise da poesia (sua “crise”) é o momento em que a poesia é atingida pelo impacto dos outros códigos (visuais, musicais, gestuais, etc). E seu campo de possibilidades se multiplica pelo número de códigos com os quais pode cruzar. A rua manda na página.

Os letreiros pulam no caminho dos transeuntes, que dançam com letras. Ao voltar para casa, o poeta traz a cabeça cheia de formas rueiras, seus ritmos, suas lógicas, seus tempos, seus espaços.

Natural, quem manda na página é a rua.

A rua com seus poderes múltiplos. A maré das ruas bate na porta das casas, cerca a página.

Na página, o passado se defende. A página é a casa.
A memória. O sentido. Os significados.

Na rua, nascem sempre os novos significados.

(CONTINUA...)

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