Esta, pois, é minha história. Acabo de relê-la. Tem pedaços de medula ainda presos a seus ossos, e sangue, e belas e reluzentes moscas verdes. Num ou noutro trecho sinuoso, sinto que a escorregadia personagem central me escapa, mergulhando em águas profundas e tenebrosas demais para que eu tenha a coragem de persegui-la. Camuflei o que pude para não ferir ninguém. E ponderei muitos pseudônimos para mim mesmo antes de descobrir o que era particularmente apropriado. Encontro em minhas anotações “Otto Otto”, “Mesmer Mesmer” e “Lambert Lambert”, mas, por alguma razão, creio que minha escolha é a que melhor exprime a sordidez.
Quando, há cinquenta e seis dias, comecei a escrever Lolita, inicialmente sob observação na enfermaria psiquiátrica, e depois nessa cela bem aquecida, conquanto sepulcral, pensei usar essas anotações in totum durante o julgamento, evidentemente não tanto para salvar minha pele, mas sim minha alma. A meio caminho, contudo, dei-me conta de que não podia exibir Lolita enquanto ela estivesse viva. Talvez ainda use partes dessas memórias em sessões a portas fechadas, mas sua publicação tem de ser adiada.
Por motivos que podem parecer mais óbvios do que realmente o são, sou contrário à pena de morte; espero que tal atitude seja compartilhada pelo juiz que proferirá minha sentença. Estivesse eu no seu lugar, condenaria Humbert a pelo menos trinta e cinco anos de prisão por estupro, ignorando todas as demais acusações. Mas, mesmo que isso ocorra, Dolly Schiller provavelmente sobreviverá a mim por muitos anos. A declaração que faço a seguir equivale formalmente a um testamento assinado: é minha vontade que essas memórias só sejam publicadas quando Lolita já não estiver viva.
Portanto, nenhum de nós estará vivo quando o leitor abrir este livro. Mas, enquanto o sangue ainda pulsa nesta mão com que escrevo, você faz parte, como eu, da bendita matéria universal, e daqui posso te alcançar nas lonjuras do Alasca. Seja fiel a teu Dick. Não deixe que nenhum outro homem te toque. Não fale com estranhos. Espero que você ame teu bebê. Espero que seja um menino. Esse teu marido, assim espero, sempre te tratará bem, porque, se não, meu fantasma o atacará como uma nuvem de negra fumaça, como um gigante insano, e o destroçará nervo por nervo. E não tenha pena do C.Q. Era preciso escolher entre ele e o H.H., e era desejável que H.H. existisse pelo menos alguns meses a mais a fim de que você pudesse viver para sempre nas mentes das futuras gerações. Estou pensando em bisões extintos e anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que você e eu podemos partilhar, minha Lolita.
Páginas finais de Lolita, de Vladimir Nabokov. Tradução de Jorio Dauster, Companhia das Letras.
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©Cesar Cardoso, 2010. Todos os direitos e esquerdos reservados. Que os piolhos infectados de 18 mil camelos infestem as partes pudendas de quem publicar algum texto daqui sem avisar nem dar meu crédito.
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