domingo, 7 de fevereiro de 2021

 


( CRÔNICAS TEU MELHOR INIMIGO )

PATAVINA’S

O BLOG DO CESAR CARDOSO

Fundado na semana de 1922

                                                          FEVEREIRO DE 2021

TEU MELHOR INIMIGO – CRÔNICAS

 Teu Melhor Inimigo é meu novo livro, ainda inédito, e reúne crônicas baseadas em fatos inventados. Vou publicar algumas delas aqui no PATAVINA’S. A melhor definição do que é crônica é do nosso melhor cronista, Rubem Braga: “se não é aguda, é crônica”.

E vamos a mais uma crônica. 

ATLAS HISTÓRICO ESCOLAR  

             Não vivemos no país nem no planeta ou em qualquer hemisfério, continente, arquipélago. Desde sempre a cidade é nossa pátria cotidiana, a terra-mãe com esquinas, café com leite, sinais de trânsito, diminutivos, amigos. Enquanto as nações se reúnem na ONU, as cidades sentam nas mesas dos botequins, pedem um chopp e cruzam as pernas, mostrando as coxas a quem passa.

            Mas o que fazem as cidades nos bares ou nos mercados ou nas igrejas? Cuidado!, as cidades mentem. Vaidosas, só querem aparecer na foto com seu melhor ângulo, escondem o dente que está mole, a variz que estufa a meia-calça, o band-aid no calcanhar de seu hino, a língua negra, a favela, o bairro cinza de funcionários cinzas do almoxarifado cinza. Sim, as cidades mentem a idade, ocultam suas geografias, seus mapas. Onde o breu da cidade-luz? Onde o capiau de Nova York? Onde a solidão de Pequim?

E se estão cheias de gente ou de violência, cuidado!, também são cheias de manias, perversões, essas senhoras decadentes. Ou mesmo as novas gerações de pedra e cal, concreto, vidro fumê e engarrafamento. Tratam a natureza como sua mucama, saudosas dos tempos de escravidão. Esperam que os rios venham lhes abrir a porta do carro, que a floresta lhes puxe a cadeira, à mesa do restaurante. E se no décimo chopp você pergunta, indiscreto, a cidade se cala, olha pros lados como se não fosse com ela. As mulheres de Atenas? Eram homens, apenas. Pompéia? Não me recordo, talvez uma parente distante. Brasília? Não conheço essa criança. E estala os dedos e pede a conta, essa nau dos insensatos aportada pra sempre.

Na boca de qual conterrâneo a verdadeira história? Quem venceu em cada esquina, quem conquistou cada porta? Quem, covarde, no beco sem poesia? Quem chorou em Praga e aceitou as outras três estações? Quem fingiu na manhã de Tróia? Quem deu as costas ao incêndio de Lisboa? Quem riu vendo as colunas de fumaça em Santiago? Quem deixou o filho para trás em Stalingrado? Quem se escondeu nas sete colinas de Roma? Quem trouxe fuligem e ferrugem ao Belo Horizonte?

            Não respondem, dão muxoxo, não fomos inventadas para isso. E por que os homens inventaram as cidades? Para criar sua própria natureza? Mas a natureza também é cidade, pergunte aos cupins, aos bois, aos besouros. Qual das duas durará para sempre? Ora, toda geografia é história e nenhuma cidade dura pra sempre. Como Cartago, a rolar pelos mapas, esmolando pátria. Nome é a cidade em que se finda. Mãe é a cidade em que se nasce, pão é a cidade em que se vive, sonho é a cidade em que se cresce. Eu vou pra Maracangalha, Macondo, Pasargada. Barura, Endeviz, Cofian, e suas estranhas línguas, estranhas gentes, arquitetura de nuvem. Mas o que há de estranho afinal, se toda cidade é exílio, todo viver é estrangeiro, todo lugar é partida? O Paraíso foi a primeira cidade? Não permita que deus morra sem que volte para lá. 

Quantas cidades estão submersas, quantas sustentam desertos nos ombros escombros? Quantas sucumbiram aos séculos, com seus finos grãos de areia de cada dia? A chuva de fogo engoliu Sodoma e Gomorra, mas um Mar Morto nasceu sobre elas, se alimentando noite e dia dos cadáveres de sal castigados por um deus idiota. Vestígios a que chamamos história. Indícios, pistas, pegadas que acreditamos lendas. Hiroshima e Nagasaki renasceram ou nem existiram? Quem se lembrará e quem esquecerá? Que boca, radioativa, contará?

            Não, não construiremos a estrada de pedras ligando Antofagasta a Codisburgo. Não encontraremos os caminhos de areia que levam de Machu Picchu a Ulan Bator. E nos perderemos na noite sem lua e sem noite às portas arruinadas de Ur. Mas enquanto os oceanos sobem, tragando ruas, devorando prédios, mastigando as gentes e a música das novas e velhas Orleans, na segunda noite de lua cheia e azul, Atlântida ressurgirá, mágica, histórica, e nós poderemos, mais uma vez, quem sabe a última?, sonhar.

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©Cesar Cardoso, 2021.  Todos os direitos e esquerdos reservados. Que os piolhos infectados de 18 mil camelos infestem as partes pudendas de quem publicar algum texto daqui sem avisar nem dar meu crédito.



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