segunda-feira, 12 de outubro de 2009

BARATA VOA - vale tudo, menos porrada –


A escritora Alice Barreira lembra dos velhos carnavais e de outras dores da infância. Afinal, o que cantava aquela marchinha: saudade é coisa que dá e passa ou que dá e pesa?

BIGORRILHO

Lá em casa também tinha um bigorrilho. Bigorilho fazia o quê? Acordava sempre muito tarde e ia fazer as entregas do açougue da esquina. Lá pelas quatro tinha terminado e então sentava-se num banco no quintal, tendo à frente uma mesa improvisada e bamba que ele mesmo fizera. Ali colocava a garrafa de cachaça e o copo e começava a beber. Quando passávamos por ele fazia sempre algum comentário sobre o tempo e conforme anoitecia entendíamos cada vez menos o que dizia.
Minha mãe dizia que bigorrilho era nosso tio. Mas ele não era seu irmão e no retrato de meu pai ainda jovem havia alguns outros rapazes que poderiam ser seus irmãos mas nenhum deles era o bigorrilho. Ele e minha mãe conversavam coisas que a gente não conseguia escutar.
Aos poucos bigorrilho foi acordando mais tarde e voltando mais cedo das entregas, até que parou de fazê-las e começou a sentar-se no banco do quintal logo depois do almoço. No final da tarde nós já não compreendíamos suas frases sobre chuva, sol ou nuvens. Ele também passou a pedir dinheiro à minha mãe.
Até que uma noite bigorrilho invadiu nosso quarto. Nessa época já passáramos todos a dormir no quarto de minha mãe. Mais uma vez não entendemos o que ele disse. Tenho quase certeza que queria mais dinheiro. Mas ele não repetiu a frase, como sempre fazia. Em vez disso começou a bater em minha mãe.
Hoje bigorrilho continua morando conosco e bebendo sua cachaça. Minha mãe lhe dá o dinheiro. Ela perdeu dois dentes e um pouco da visão do olho esquerdo. Eu não confio mais nela, nem em ninguém. Bigorrilho foi quem me ensinou.

ALICE BARREIRA

2 comentários:

  1. Cesinha, muito bom! Pena que Alice tenha aprendido desta maneira... Muito bom , adorei!

    Beijos Aninha

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