Romina Conti e Dominique Lotte. Duas das escritoras suicidas. Romina era o poeta Rodrigo de Souza Leão, que morreu ano passado de ataque cardíaco, aos 44 anos. E Dominique era o escritor Iossif Landau, falecido também em 2009, aos 85 anos. Aqui alguns de seus textos na antologia Dedo de Moça. Obrigado, Dominique e Romina. Obrigado, Iossif e Rodrigo.
DOMINIQUE LOTTE
delicadezas
teclado
O colchão acomodou o corpo dele. Suado, quente, inquieto.
-Onde esteve? – balbuciou ela.
- O tempo todo a seu lado – respondeu ele, irônico.
Pegou na mão dela e puxou-a, enquanto acariciava seus longos cabelos louros. Ela sentiu seu coração pulsar mais forte. Arrepiou-se. Ele murmurou algo em seu ouvido. O hálito úmido envolveu-lhe o pescoço e caminhou em gotas sobre seus seios mornos. A voz dele, agora macia e lírica, tocou-a como uma asa de libélula. Imagens surgiram em sua mente. Escada, árvore, telhado, estrela.
*
O rádio relógio, agressivo e insensível, acordou-o. Levantou-se da cama vazia e ligou o computador. Ansioso.
O sangue jorrou do seu pescoço, a cabeça tombou sobre o teclado – gu6y7khjf.
Ela escureceu a tela. Deitou-se na cama. Adormeceu.
bactérias
- Não deve alimentá-lo com isso – falou a médica, tentando livrar-se do fedor de vômito e suor que impregnava o barraco.
- Mas é o que ele gosta. E melhora.
- Por pouco tempo. É o que o adoece.
A mãe cerrou os lábios, cruzou os braços, teimosa.
- Quantas vezes já lhe disse que deve ferver a água? Tá cheia de bactérias.
- Não tenho dinheiro pra comprar botijão de gás.
A médica deu de ombros.
O baque surdo do seu corpo caído da encosta do morro abafou o choro da criança.
o presente
A campainha tocou, ele abriu a porta, ela entrou.
- Que calor! Desculpem-me...
- De novo atrasada – falei.
Os olhos dela, negros, sorriram. Os olhos dele, verdes, agitaram-se.
- Não fique zangada, trouxe um presente.
Entregou-me um embrulho. Abri.
- Obrigada.
Atirei duas vezes nele. Mais quatro, depois que ele caiu.
Lúcia me beijou. Na boca.
ROMINA CONTI
dias de guerra
Todas as cinco televisões da casa ligadas. Cada um no seu quarto. Papai na sala. Mamãe na suíte. Todo mundo vendo o canal 4.
Portas fechadas. Todos fechados em seus quartos.
Alguma mulher morta na tevê. Mal dá seis horas. Não é noite em lugar nenhum do Brasil. Ouço um boa-noite. Detesto ouvir boa-noite porque as noites nunca são boas. É a hora em que começam a dar boa-noite. Nesta mesma hora, mando um e-mail pra mim. Assim recebo meu e-mail diário, contando-me as minhas novidades. Há muito tempo que não tenho novidades. Mas invento.
Outro dia danei-me a contar quantas motos passavam lá embaixo, na rua. A rua é um lugar calorento feio cheio de gente com mendigos por todo lado pedindo cada centavo que não temos e muito mais coisa ruim do que coisa boa. A rua não é a lua. Se fosse a lua ia ser um lugar interessante para ficar. Um lugar vazio. Com coisas a fazer. Aqui tudo já está feito e de vez em quando alguém inventa uma nova obra, só para dizer que está fazendo alguma coisa. Perto daqui estão abrindo um buraco para o metrô passar. Para todas aquelas pessoas tristes aborrecidas chatas pentelhas descaradas caras de pau que estão sempre comendo alguma coisa, fodendo no horário de almoço e escondendo do marido que estão fodendo com outro. Nunca escondi de ninguém que gosto de devassidão. Tudo para não ter um marido. Ninguém na cola. Às vezes eu penso que daria uma boa prostituta, porque gosto da coisa. Adoro foder. Gosto de me foder sozinha também. O acompanhante nem sempre me dá o mesmo prazer que meu vibrador dá.
Às vezes fico pensando nas pessoas realmente solitárias. Naquelas que não têm ninguém. Não sei se são piores ou melhores. Acho que aprenderam a conviver tanto consigo mesmas, que não aguentariam olhar para um latrina e ver ali a merda ou o restinho de merda que o parceiro deixou, depois de dar uma cagada. Pra se viver em grupo tem que se acostumar com a merda alheia, fazer um bolo de merda, se for possível, e recomê-la e regurgitá-la.
O que eu mais gosto na solidão do meu quarto é que só tenho seres inanimados por perto. Nada de gente. Gente dá trabalho. Gente é chata pra cacete. Posso gostar de uma piroca, mas sei viver bem seu uma. Sei que estou ficando velha. Logo logo completo cinquenta anos, aí os parentes vão morrendo e se a gente tiver azar a gente vai ficando, hipoglós fralda geriátrica internação e soro. Como enfrentar isso sozinha? Por isso, talvez, tenha que encontrar logo uma pica que me dê um lugar melhor na minha velhice. Mas as picas morrem primeiro que as buças. Por isso sou só e sou feliz e gosto de fazer bolo de chocolate todo dia ímpar.
Dia desses um cara bateu na porta com flores pra mim. Ué, não saio com ninguém faz anos e não tenho um amor, nem tenho sequer uma pica fixa. Mandei devolver as flores ao florista. Disse que veio errado. Não olhei o cartão. Não quis saber. Se não fosse ninguém interessante, ia ficar decepcionada triste solitária angustiada e ia me arruinar cada vez mais e mais e pra sempre, até o fim daquele minuto em que vi o Dumbo. Era um amigo de infância. Não precisa explicar o apelido. Ela havia voltado da guerra. Fazia dez anos que eu não o via e ele veio pro meu lado me querendo e perguntando se havia recebido as flores que ele havia mandado no dia seguinte à sua chegada. Perguntei como foi a guerra, se matou muita gente, como eram os corpos dos mutilados e ele chorou e chorou. Eu fiquei com pena dele e dei pra ele minha superficialidade que era o meu sexo. Coitado, o cara estava tão travado que demorou um tempo pra dar no couro. Ele me comeu e eu resolvi, por aquele segundinho, o problema dele. Criei um grilo dentro de mim. O grilo foi crescendo e crescendo e estava de um tamanho insuportável no meu peito que tive que dizer. Não tenho lugar para ninguém na minha vida. Ele chorou e chorou lágrimas de sangue. Dei mais uma vez pra ele. Resolvi o seu problema imediato. Criei um problema para mim. Todo dia ele vem chorar no meu colo. Agora sim, minha solidão está completa.
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