domingo, 4 de julho de 2010

UM CASO CRÔNICO

GOLEIROS

Todo homem é inocente até prova em contrário. Menos o goleiro. O goleiro é culpado, mesmo que haja prova em contrário. O goleiro mete a mão aonde não foi chamado.

Enquanto todos viajam no campo, esquadrinhando seus quatro cantos, o goleiro vive trancado na grande área. Como um cão. Ou um prisioneiro. E ai dele que tente fugir! Será vaiado pela sua torcida, escorraçado por seus próprios companheiros de time. Mas ele não sai dali. Só olha para longe quando bate o tiro de meta. E jamais seus olhos buscam o outro goleiro. Não existe outro. O goleiro é único.

A palavra goleiro vem de gol, mas o goleiro de carne e osso vive para evitar o gol e renegar sua origem. E segue carregando o gol em seu próprio nome como uma maldição, uma doença que não se cura nunca.

Sim, ele pode tocar com a mão na bola. E só ele pode. Mas não mostra superioridade, não. Na verdade, ele teme que todos em campo o odeiem por isso. E realmente todos em campo o odeiam por isso. É por esse motivo que ele veste luvas. Não para segurar melhor a bola, mas para não sentir a pele dela em sua pele. Para fugir do pecado original. Mas não adianta. A bola é sua maçã e ele a perseguirá, condenado, através dos tempos.

Tem muitos nomes o goleiro. Arqueiro, guarda-meta, guarda-rede, guarda-valas, guardião, golquíper, quíper, vigia. Mas ninguém o chama. Quando muito o xingam.

O desejo de todo goleiro é sonhar com suas grandes defesas. Eles as relembram antes de dormir, mas assim que pegam no sono o que surge é outra matéria. É o pelotão de fuzilamento do pênalti. É a vergonha e a humilhação do frango. É o olhar de superioridade do artilheiro, que acaba de vencê-lo. É o choro que ele provocou em seu zagueiro. Por isso acordam sempre suados e sobressaltados os goleiros. Por isso disfarçam as olheiras.

Não existe goleiro violento nem raçudo. O goleiro é cálculo. Régua. Equação. Pensa em teoremas todo o tempo. Até o segundo em que faz a defesa, se levanta e olha em torno. Então, antes de repor a bola em jogo, ele se dá conta de que, enquanto ela está em suas mãos, não há jogo. Ele percebe que é o anti-jogo, é o antônimo. É a perda onde tudo busca.

Mas o que é preciso afinal para ser um goleiro? Saber sair do gol? Manter o sangue frio? Como se treina um goleiro? Pra que serve um goleiro num mundo de artilheiros? Por que usar as mãos se a habilidade está nos pés? Do que ele precisa? Aumentar a elasticidade? Treinar até o fim da noite? Dormir abraçado com a bola? Sair do gol, espalmar, botar pra escanteio, bater roupa, dar golpe de vista? Ou aprender que a bola, razão do jogo e de sua vida, só se ocupa em fugir dele?

O estádio já está deserto. E adormecido, como dizia o locutor. Na madrugada quente ouvem-se apenas e levemente, em seu gramado, os passos do goleiro. É Pompéia, o Constellation, voando acima das traves. É Manga segurando a bola com apenas uma das mãos e amargando a tarde em que chutou-a na nuca de um russo e ela, de vingança, se atirou contra seu gol. É Gordon Banks tentando até hoje descobrir o que o fez saltar e defender a cabeçada de Pelé. É Marcos Carneiro de Mendonça e sua fita roxa, defendendo pênaltis e fazendo versos para a amada. São as acrobacias de Chilavert, montando um circo na pequena área. É Yachin, o Aranha Negra, que fumava para se acalmar e tomava vodka antes do jogo para ficar em forma. É Carrizo confessando que se lembra muito mais dos gols que fizeram nele do que dos chutes que defendeu. É a camisa amarela de Raul tirando a pontaria dos artilheiros. É a leiteria de Castilho, que cortou um dedo para voltar a jogar mais rápido. É Valdir, que não resistiu e fez um gol contra, talvez tentando entender a alegria dos goleadores. É a frieza de Gilmar e a tragédia de Barbosa, que passou o resto da vida tentando evitar o que já fora. É Rogerio Ceni fazendo gols como quem se encontra às escondidas com a amante. É Andrada ainda esmurrando o gramado e sendo o único ser humano a amaldiçoar o milésimo gol de Pelé.

Uma legião de goleiros, caminhando ao fundo das redes e trazendo de volta a bola.

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