domingo, 4 de julho de 2010

UM CONTO, UM PONTO

Ponta esquerda do Madureira na década de 60, Baratinha devia o apelido à velocidade com que chegava à linha de fundo. Ou simplesmente à velocidade, que foi uma marca de sua vida. Encerrou a carreira de jogador precocemente, graças a lesões nos dois meniscos, rapidamente perdeu o que tinha, o que incluiu a mulher que se mandou com os dois filhos, se entregou ao alcoolismo, caiu no crime pra sustentar seus vícios e acabou na cadeia. Ali, por fim, com as grades à sua frente, teve que refrear a velocidade. E sem nenhum zagueiro para ser driblado,conseguiu olhar pra trás. Se lembrou do avô, que gostava de ler e gastava dinheiro comprando livros que trazia escondido para casa e mostrava ao neto. Nos melhores momentos, era considerado meio doido pela família. Nos piores, um egoísta-filho-da-puta. Baratinha resolveu ler e escrever, como fazia o avô. Mas a velocidade, mas uma vez. Um câncer fulminante no pulmão acabou com a sua vida.
Pelo menos foi isso que me contou seu filho mais velho, que reencontrou o pai pouco antes de sua morte, recolheu alguns de seus contos e me enviou. Nesses tempos tão heróicos de Copa do Mundo, aqui vai uma história sem grandes bravuras, sem taças e talvez sem vencedores, escrita por um derrotado. Um conto do escritor Baratinha, até então inédito.

A TAÇA DO MUNDO É NOSSA

Apa-manpan-hãpã tempem jopo-gopo dopo Brapra-silpil. É com a Tche-cos-lo-vá-quia. Putz, que nome legal. Até que eu podia ter nascido lá. Mas o pai falou que porra brasileiro torce é pelo Brasil. Mano implicou. Que só bobo enfia na cabeça de torcer pela Tche-cos-lo-vá-quia. Putocavaloburro. Eu bem queria. Vô mostrou no mapa onde é que fica. Com um nome desse, pensei que fosse um país tamanho dum bonde. Que o quê. De muito menor que o Brasil. E gozado, amarelo!

Perguntei pro Vô se dava pra gente ir morar lá. Mas é que na Tche-cos-lo-vá-quia falam outra língua. Mais enrolada ainda que o quesquissé da Madame Malpas do Cabelo Azul. Dizque demora um tempão de tempo pra aprender. Vai ver que lá só adulto é que pode falar também. Pior de tudo, não tem nenhuma serraria. Foi o que o Vô resmungou. Eu quis saber porque. Ele ficou olhando pra longe, com aquele jeito que anda agora. E não falou mais nem um tico de nada. Juro três vezes, tava era pensando na serraria dele. Que já nem é mais. Seu João-Vem-Caputo comprou e acabou até com meus banhos de rio. Por que vendeu o rio também, Vô? Já não me responde quase. Esqueceu dos selos. Não pede pra comprar cigarro escondido. Não perde no crapô pra eu ficar alegre. Nem me leva pra comer bolinho de bacalhau e me dá uns golinhos de chopp quando eu tiro nota boa. Ou quando tá sol, o Vasco vence. O chopp é amargo-amargo, eu fecho os olhos, engulo, a gente ri um pro outro, ele pisca o olho e é tão gostoso.

*

Não é que agorinha já bem de noitão Vô resolveu contar história? Montão de tempo não contava. Eu pedia, mãe vinha com aquela conversa de meu filhinho seu avô tá cansado fica pra outro dia... Dia do Nunca Chega é que é.

Chegou. No meio do não-dorme-dorme mãe foi lá no quarto. Mas eu vi logo que era coisa boa porque ela chamou baixinho. Todo mundo pro quarto do Vô. Até o pai e a Cléia, que não gostaram nunca de história. O Vô sentou na cama e se transformou no homem-cobra, com aquela cruzada de perna que ele dá desde que ficou magro, enroscando uma na outra. Num instante eu tava rindo, porque as histórias do homem-cobra são boas à beça. É diferente, sei lá. As do camaleão branco são engraçadas. As do monstro do milharal dão cada susto! Mas as do homem-cobra têm de tudo. Riso, fantasma, rei, mocinha bonita em perigo. Tanta coisa! O problema é que às vezes elas não terminam e no dia seguinte Vô não lembra mais. Será que essa tem final? Feliz?

*

Era uma vez um avô português deitado na cama. Dormindo dentro de um sonho. Daí ele acordou com barulho de passarada. Quando foi ver, era pássaro que nada! Uns homens de asas azuis azuis nadavam num brilho de luz. E eles chamavam o avô português pra uma viagem muito do longe. Chamavam com os olhos, os cabelos, o nariz. Menos com a boca.

Num instante eu perguntei se era pra Tche-cos-lo-vá-quia. O pai danou mandando calar a boca. Coitado do pai. Não entende nada de história. Porque o homem-cobra riu na hora, que o avô português esteve por lá sim senhor. No país amarelo de língua enrolada. E pediu prum moço da terra abrir uma serraria na beira de um rio mansinho com praia de areia rala e água gelada, boa de arrepio, que nem o meu rio Bengala. O tal do moço sorriu um sim. E jurou três vezes. Quando estiver tudo pra funcionar vem aqui em casa contar pra mim, me levar pra brincar no rio de lá.

Já comecei a adorar a história e acho mesmo que vou torcer pra Tchecoslováquia. Torcer pra dentro, igual quando eu penso besteira e não posso falar. Putamerdapiru. Bem capaz até do homem-cobra torcer junto. Ele contou que o avô português acordado dentro do sonho foi na Áustria-capital-Viena, na Inglaterra-capital-Londres e na Itália... Itália... capital-Roma, que é mesmo uma bota igualzinha à do meu quebra-cabeça. Na França-do-rio-Sena, pra cima e pra baixo por toda a Europa e até na China que nem tá na Copa mas tem a muralha, puxa!, na Islândia que eu não consigo lembrar a cor. Ia voando, sem fome, sem frio nem medo de tombo, ralar a perna. Como é que pode? Os homens de asas azuiz azuis ensinam pra gente, tão fácil voar que só um bobo mesmo não aprende.

Em todo lugar que o avô português chegava gente e mais gente vinha conversar. Pediam pra ele ensinar como é que se corta a madeira, pega na pua prum buraco certinho e se passa a plaina pra ficar bem liso, sem a danada da farpa espetar nossa mão. Ele sempre dizendo. Dizendo às pessoas pra usar parafuso, parafuso entendeu? Porque prego machuca a madeira de ela até perder a vontade de criar tanta coisa. A mesa onde a gente almoça com vinho e corta a manga com garfo e faca. A caixa com fecho de ponto de interrogação pra guardar selo e lembrar que a república magiar é a Hungria mesmo. A caixa de costura da vó que ela deixa aberta pra gente roubar botão escondido. Tem tanta caixa no mundo. A estante com o dicionário de palavras cruzadas e os cadernos com as histórias dos reis de Portugal na letra corre-corre que nem dá tempo da caneta-tinteiro fazer borrão. E cadeira e armário e tudo de tanto. Nem eu sabia que madeira serve pra assim de coisas. O homem-cobra não tinha me contado tudo isso.

Depois de tanto voamundo deu saudades e o avô português voltou pra casa. Eram muitos de muitos homens de asas azuis azuis. Um deles entregou um manto, que o homem-cobra me explicou que é uma capa. Ele entregou assim, com os olhos, os cabelos, o nariz, menos com a mão. E sorriu que o avô português era o santo padroeiro das serrarias do Brasil. Perguntei o que é que faz um santo padroeiro e se também tem retrato pra colar no caderno. Mas o homem-cobra não disse mais nada de nada. E então o Vô descruzou as pernas e dormiu. Mãe começou no quer-chorar que eu conheço bem direito. Nem adianta ela prender o beiço, ele treme todo. O pai levou mano e eu de volta pro quarto e deu um beijo em cada um pra gente dormir de uma vez. Eu ainda fiquei foi pensando: será que é mesmo tão fácil voar?

*

Hoje de manhã o Brasil ganhou. Não sei porque eles lá na Europa têm mania de jogar de manhã, aqui é sempre de tarde. Às vezes tem de noite mas aí é só pro pai, que não vai pra escola cedinho. Teve foguete e cantoria por todo lado. Menos do lado de dentro. Em casa ninguém ficou contente. Mesmo o mano pedindo, pai nem terminou de escutar o jogo. Parecia que a gente era a Tche-cos-lo-vá-quia. A mãe engoliu o beiço e levou eu e mano pra almoçar na casa de Tia Aída. Mas hoje não tinha biscoito e suco e pirulito e picolé até sair um premiado. E a tia até esqueceu de mandar todo mundo tirar o sapato e pisar nas flanelinhas que ela espalha pelo chão.

Noite de volta pra casa tinha uma porção de gente que eu nem conhecia tudo. Não vi o Vô. Mesmo sem eu e o mano brigar o pai mandou a gente ficar no quarto. Eu dei de cismar que queria fazer xixi. Do banheiro corri pra cozinha e perguntei a mãe cadê o Vô. Ela me fez um carinho e como tinha engolido o beiço resolveu falar assim com os olhos, os cabelos e o nariz, que eu nem nunca tinha visto que ela também sabia. Vô foi pro céu e tem por lá uma serraria bem grande só pra ele, não é que São Pedro tá precisando de um armário e de uma cadeiras? Claro, claro, ele foi voando. Mas neca, seu Nelson não vai levar carregamento de madeira pro Vô no céu não. Que tem delas de todo tipo lá em cima, mesmo não dando pra gente ver daqui, até de binóculo. E parece que nem pode entrar carreta. Vô deixou os selos, os cadernos e mais um monte de coisa. Pra eu tomar conta direitinho. Pra quê? Pra eu lembrar dele porque não se volta do céu não. É assim mesmo. E é bom. Eu vou entender quando eu for grande.

Mas aí Vô nunca mais vai me contar história. Nem mesmo quando eu já for granpan-depê.

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