quarta-feira, 18 de agosto de 2010

CHIPS – o prazer da batata & o poder do circuito –

A CRIANÇA

A criança estava ali, adormecida, e eu andava muito lentamente para não acordá-la.

Aquele estado de torpor, aquela nuvem diante dos olhos, aquele lugar quase que suspenso no ar. Era um sonho. E a criança adormecida era eu mesmo.

Tentei despertá-la com ruídos casuais. Me aproximei, toquei em seu braço coberto pelo lençol, toquei sua mão, sacudi.

Então me dei conta. A criança estava morta.


A DOR

Ela sorriu, tirou o guardanapo do colo, chamou o garçom, pediu mais um vinho e disse que sim.

Eu estendi minha mão esquerda até tocar seu braço, aquele braço que tantas vezes, disse calmamente que ia embora para sempre, me levantei e caminhei lentamente para fora do restaurante e do seu sorriso.

É o que me dói até hoje.

TORNEI-ME UM

Na bebida busco esquecer, mas nem sempre foi assim. Eu buscava só me divertir. Esquecia também, mas sem querer. As noites de vodka. Às vezes acordava e não sabia como tinha chegado em casa. Depois comecei a acordar e ver que não tinha chegado em casa. Voltava com flores e presentes. Ela não reclamava. Continuávamos nos amando.

Um dia acordei todo ensanguentado. Tomei um puta susto. Enquanto verificava se não estava ferido, gritava por ela. Mas ela não me respondia. Levantei nervoso, gritando mais alto e assim que saí da cama tropecei e caí. Por cima dela. Estava deitada no chão, os pés pra debaixo da cama, o rosto cheio de sangue e a cabeça aberta, com os cabelos empastados e uma poça em volta. Aquelas coisas que a gente só vê em filme, só que muito pior, é claro.

Foi o pior dia da minha vida? Não sei. Limpei tudo, deixei chegar a madrugada e enterrei o corpo no quintal. De novo aquelas coisas todas de filme. E como em todo filme, eu seria descoberto. Não sou criminoso, não sabia fazer aquilo, certamente devo ter deixado um montão de pistas.

Mas não. Dei queixa na delegacia sobre seu desaparecimento e a polícia cagou e andou. Ninguém na família sonhou com a possibilidade de eu tê-la matado. Eu não tinha motivo nenhum. Nós éramos felizes. E eu nunca consegui me lembrar do que aconteceu naquela noite.

QUERIDO OUVINTE

Adoro ouvir histórias. É a única hora em que eu não tenho pressa nenhuma. Se levar o dia inteiro, aí é que eu me divirto mesmo. Quando eu era pequeno, minha avó contava para mim toda noite. Aqui é a mesma coisa. E todo mundo conta. Mesmo que no começo eu precise incentivar, com choque elétrico, palmatória e afogamento.

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