quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

2222 - FLOR DO LÁCIO - ÁFRICAS, VIA COPACABANA


Nosso ônibus anfíbio segue sua viagem. Por favor, fale ao motorista tudo que lhe der na telha. Vamos às Áfricas, sempre tão plurais. E no meio de todos esses “Esses”, nosso caminho é pelas Áfricas de língua portuguesa, tão próximas entre si e de nós. E todos tão distantes. Quem são? Quem somos? As Áfricas e a última flor do Lácio.

ONDJAKI
O escritor angolano Ondjaki nasceu em Luanda, em 1977. prosador e poeta, também escreve para cinema e co-realizou um documentário sobre a cidade de Luanda (“Oxalá cresçam pitangas – histórias de Luanda”, 2006). Já teve livros traduzidos para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco e chinês, é mole? Aqui nos Brasis seu romance AvóDezanove e o Segredo do Soviético ganhou, o Prêmio Jabuti, na categoria Juvenil, em 2010.

A PISCINA DO TIO VÍCTOR
para o tio Víctor que nos dava prendas-do-dia. Para a «Buraquinhos».

Quando o tio Víctor chegava de Benguela, as crianças até ficavam com vontade de fugar à escola só para ir lhe buscar no aeroporto dos voos das províncias. A maka é que ele chegava sempre a horas difíceis e a minha mãe não deixava ninguém faltar às aulas.

Então era em casa, à hora do almoço, que encontrávamos o tio Víctor. E o sorriso dele, gargalhada tipo cascata e trovão também, nem dá para explicar aqui em palavras escritas. Só visto mesmo, só uma gargalhada dele já dava para nós começarmos a rir à toa, alegres, enquanto ele iniciava umas magias benguelenses.

– Isto vocês de Luanda nunca viram – abria a mala onde tinha rebuçados, chocolates ou outras prendas de encantar crianças, mais o baralho de cartas para magias de aparecer e desaparecer o ás de ouros, também umas camisas posteradas que nós, «os de Luanda», não aguentávamos.

À noite deixávamos ele jantar e beber o chá que ele gostava sempre depois das refeições. Devagarinho, eu e os primos, e até alguns amigos da rua, sentávamos na varanda à espera do tio Víctor. É que o tio Víctor tinha umas estórias de Benguela que, é verdade, nós os de Luanda até não lhe aguentávamos naquela imaginação de teatro falado, com escuridão e alguns mosquitos tipo convidados extra.

Eu já tinha dito ao Bruno, ao Tibas e ao Jika, cambas da minha rua, que aquele meu tio então era muito forte nas estórias. Mas o principal, embora ninguém tivesse nunca visto só uma foto de admirar, era a piscina que ele disse que havia em Benguela, na casa dele:

– Vocês de Luanda não aguentam, andam aqui a beber sumo Tang!

Ele ria a gargalhada dele, nós ríamos com ele, como se estivessem mil cócegas espalhadas no ar quente da noite.

– Nós lá temos uma piscina enorme – fazia uma pausa dos filmes, nós de boca aberta a imaginar a tal piscina. – Ainda por cima, não é água que pomos lá – eu a olhar para o Tibas, depois para o Jika:

– Não vos disse?

O tio Víctor continuou assim numa fala fantasmagórica:

– Vocês aqui da equipa do Tang não aguentam…, a nossa piscina lá é toda cheia de Coca-Cola!

Aí foi o nosso espanto geral: dos olhos dos outros, eu vi, saía um brilho tipo fósforo quase a acender a escuridão da varanda e assustar os mosquitos, nós, as crianças, de boca aberta numa viagem de língua salivada, outros a começarem a rir de espanto, de repente todos gargalhámos, o tio Víctor também, e rebentámos numa salva de palmas que até a minha mãe veio ver o que se estava a passar.

Agora já ninguém me perguntava nada, falavam directamente com o tio Víctor, queriam mais pormenores da piscina e ainda saber se podiam ir lhe visitar um dia destes.

– Vai todo mundo – o tio Víctor riu, olhou para mim, piscou-me o olho. – Vem um avião buscar a malta de Luanda! Preparem a roupa, vão todos mergulhar na piscina de Coca-Cola, nós lá não bebemos desse vosso sumo Tang…

– Ó Víctor, pára lá de contar essas coisas às crianças – a minha mãe chegou à varanda.

Ele piscou-lhe o olho e continuou ainda mais entusiasmado.

– Não tem maka nenhuma, pode ir toda malta da rua, temos lá em Benguela a piscina de Coca-Cola… Os cantos da piscina são feitos de chuinga e chocolate!

Nós batemos palmas de novo, depois estreámos um silêncio de espanto naquelas quantidades de doce.

– A prancha de saltar é de chupa-chupa de morango, no chuveiro sai fanta de laranja, carrega-se num botão ainda sai sprite… – ele olhava a minha mãe, olhos doces apertados pelas bochechas de tanto riso, batemos palmas e fomos saindo.

Quando entrei de novo em casa, fui lá para cima dizer boa noite a todos. Passei no quarto do tio Víctor, ele tinha só uma luz do candeeiro acesa.

– Tio, um dia podemos mesmo ir na tua piscina de Coca-Cola?

Ele fez assim com o dedo na boca, para eu fazer um pouco-barulho.

– Nem sabes do máximo… No avião que vos vem buscar, as refeições são todas de chocolate com umas palhinhas que dão voltas tipo montanha-russa!, lá em Benguela há rebuçados nas ruas, é só apanhar – e ficou a rir mesmo depois de apagar a luz, até hoje fico a perguntar onde é que o tio Víctor de Benguela ia buscar tantas gargalhadas para rir assim sem medo de gastar o reservatório do riso dele.

Fui me deitar, antes que a minha mãe me apanhasse a conversar àquela hora. No meu quarto escuro quis ver, no tecto, uma água que brilhava escura e tinha bolinhas de gás que faziam cócegas no corpo todo. Nessa noite eu pensei que o tio Víctor só podia ser uma pessoa tão alegre e cheia de tantas magias porque ele vivia em Benguela, e lá eles tinham uma piscina de Coca-Cola com bué de chuínga e chocolate também. Vi, também no tecto, o jeito dele estremecer o corpo e esticar os olhos em lágrimas de tanto rir.

Foi bonito: adormeci, em Luanda, a sonhar a noite toda com a província de Benguela.

(Do livro de contos Os da Minha Rua, de Ondjaki, editora Língua Geral.)

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