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Todo mundo conhece a linguagem fílmica de Buñuel, mas é legal conhecer também os poemas desse cineasta surrealista. Outros charmes, discretos ou não, são revelados nas palavras desse cão andaluz. Para quem quiser mais, este texto está no livro Os Poemas de Luis Buñuel, de J. F. Aranda, com tradução e prefácio de Mário Cesariny, em edição portuguesa da Assírio & Alvim.
INSTRUMENTAÇÃO
Para Adolfo Salazar
Violinos
Meninas pirosas da orquestra, insuportáveis e pedantes. Serras de som.
Violas
Violinos que já chegaram à menopausa. Estas solteironas ainda conservam bem a sua voz de meia tinta.
Violoncelos
Rumores de selva e de mar. Serenidade. Olhos profundos. Têm a persuasão e a grandeza dos discursos de Jesus no deserto.
Contrabaixos
Diplodocus dos instrumentos. O dia em que se decidam a dar o grande berro, pondo em fuga os espectadores espavoridos! Atualmente, vêmo-los cabecear e grunhir de contentes com as cócegas que os contrabaixistas lhes fazem na barriga.
Flautim
Formigueiro do som.
Flauta
A flauta é de todos os instrumentos o mais nostálgico. Ver-se nas mãos de um bom senhor gordo e calvo, ela que, nas de Pã, era a voz emocionada da pradaria e do bosque! Mesmo assim continua a ser a princesa dos instrumentos.
Oboé
Balido feito madeira. Suas ondas, profundos mistérios líricos. O oboé foi irmão gêmeo de Verlaine.
Corno inglês
É o oboé já maduro, com experiência. Viajou. O temperamento requintado tornou-se mais grave, mais genial. Assim como o oboé tem quinze anos o corno tem trinta.
Fagote
Os professores de fagote são os faquires da orquestra. Às vezes olham para o tremendo réptil que têm nas mãos e que lhes mostra a língua bífida. Depois de hipnotizado deitam-no nos braços e ali se fica, extático.
Contrafagote
É o fagote da terra terciária.
Xilofone
Jogo infantil. Água de madeira. Princesas a fiar no jardim, raios de luar.
Trompete com surdina
Clown da orquestra. Contorção, pirueta. Esgares.
Trompas
Ascensão a um cume. Emersão do sol. Anunciação. Oh o dia em que se desenrolem como um “mata-sogras”!
Trombones
Temperamento um tanto alemão. Voz profética. Chantres de velha catedral com era e catavento bolorento.
Tuba
Dragão lendário. O seu vozeirão subterrâneo faz tremer de medo os outros instrumentos, que desatam a perguntar quando virá o princípio de luzida armadura que os liberte.
Pratos
Luz feita em estilhas.
Triângulo
Carro elétrico de prata através da orquestra.
Tambor
Trovãozinho de sanefa. “Algo” ameaçador.
Bombo
Obcecação. Grosseria. Bum bum bum.
Tímbales
Cestos de azeitonas.
NOTAS
Instrumentação
Publicado em Horizonte, prestigiosa revista de vanguarda dirigida por Pedro Garfias, n° 2, 30/11/1922. Dedicado a A.S., companheiro de Buñuel na “Residência”, um dos compositores que formaram o grupo dos Atonalistas espanhóis (com Rodolfo Halfter, Salvador Bacarisse, Gustavo Pittaluga, etc) e o maior musicólogo espanhol deste século. Luís foi um bom violinista e um apaixonado pela música, na adolescência. O texto revela já a sua visão da orquestra como monopólio representativo da burguesia, que deve ser objecto da agressão surrealista. Lembre-se os dois pianos de cauda com quatro burros podres metidos “em sandes”, em Um Cão Andaluz; a orquestra de A Idade do Ouro, com o seu cômico director e o primeiro violino, um padre Marista. O cenário de Os Esquecidos, onde uma orquestra de 120 professores ensaia num arranha-céus em construção, enquanto os rapazes matam o cego; a destruição de uma orquestra, e até do teatro, em As Ménadas, episódio de Quatro Mistérios, por causa do louco entusiasmo dum público de província que ouve um conjunto internacional executar a Quarta Sinfonia de Brahms. A destruição, a golpes de machado, dum violoncelo, em O Anjo Exterminador. A alusão, em O Discreto Encanto da Burguesia, de que os violoncelistas estão a ser postos na rua pelas orquestras, etc.
Estilisticamente, é uma homenagem, mais do que um plágio, às famosas Greguerias de Ramón Gomes de la Serna, frases breves ou aforismos metafóricos cujas premissas conduziam a uma conclusão não coerente, de absurdo ou humor. Segundo Max Aub, todo o cinema de Buñuel é “um encadeado de Greguerias”. De qualquer modo, veja-se a diferença entre B. e Ramón (o primeiro mais visual que literário) ao compararmos a Gregueria sobre os pratos da orquestra: B: Luz feita em fanicos; R. (escrito posteriormente): “Os pratos são o espirro da orquestra.”
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