quinta-feira, 14 de julho de 2011

“NÚNCARAS” – po+es+ia

TÂNIA TOMÉ - A POESIA DE MOÇAMBIQUE NO BRASIL

“Tânia Tomé permite que o mundo escorra por suas pernas como uma semente líquida fundando a sede de um novo tempo”
Floriano Martins

“Moçambique, um dos países africanos de língua portuguesa menos conhecidos entre nós, é terra de excelentes poetas, como José Craveirinha, Reinaldo Ferreira, Glória de Sant'Ana, Noêmia de Sousa, Rui Knopfli, Sebastião Alba, Heliodoro Baptista, Luís Carlos Patraquim e Mia Couto – o único, entre tantos, a ter presença e obra amplamente divulgadas no Brasil.
Agora, o Poesia no SESI, evento promovido pela Firjan através do SESI-RJ, traz ao Brasil a grande revelação de Moçambique em música e literatura neste século XXI: a poetisa, cantora, pianista, declamadora e compositora Tânia Tomé, de 29 anos.”

Assim o evento Poesia no SESI nos apresenta a poeta moçambicana Tânia Tomé. Tânia está no Brasil e se apresentou em dois eventos no Rio de Janeiro, nos jardins da Biblioteca Nacional, junto com vários poetas cariocas num evento que fará parte de um documentário dirigido pelo poeta, jornalista e produtor cultural Claufe Rodrigues, e no Poesia no SESI, no Teatro Sesi, num recital de composições e poemas de sua autoria.
No Brasil, Tânia tem um livro publicado: Agarra-me o Sol por trás, outros escritos e melodias, lançado pela editora Escrituras em 2010, com prefácio de Floriano Martins. Veio agora à América Latina, para participar do Festival de Medellin, na Colômbia e desses dois encontros no Rio.
Em sua terra, Tânia produziu e realizou o primeiro DVD de poesia de Moçambique e criou o movimento Showesia que é um espetáculo de poesia, música e teatro e também uma associação cultural.
Para quem quiser conhecer mais do seu trabalho, aí vão alguns endereços: www.taniatome.com;
www.myspace.com/taniatome; www.showesia.com; www.showesiafestival.com.

E agora, a poesia de Tânia Tomé.

SERMENTE

E se Paul Celan
me entrasse
aqui, no futuro verso
eu seria a flor
tu serias a morte
e não te escreveria
neste desejo
incerto
de morrer-te
como murcha a flor
para ser semente

SE O MEU PESCADOR PESCASSE

Se o meu pescador me pescasse
pelo arpão me agarrasse os versos
um a um, sem pressa
a melhor palavra do mar...

Mas em que lugar da asa
a palavra poderia ser mais bela?
Com que cheiro? Com que sabor?
Onde seria o lugar do sol
Com que cor? Com que brilho?

E sei que hei de escolher
depressa mas devagar
a palavra mais carnuda para comer
E vou comer intensamente
Com toda forca dos meus (d)entes
na ponta dos dedos
as palavras que não me calo
E um peixe com asas
Há de nascer
E há de pescar-me no alto
o pescador
Espero

ENCANTAMENTE

Uma confusão de dedos
procurando as mãos
da menina
— Onde estão, mãe,
as minhas asinhas da loucura?

A PALAVRA

A palavra quer deitar-se
sozinha, reflexa
contemplar devagar
o sol morre ao silêncio
Não há pressa, não há medo
A palavra quer morrer
quantas vezes for preciso

POESIA TU ÉS O MEU CANTO

Tu és o meu cisne
no urgir das asas.
És o meu ângulo saliente
lírio no tanto que falta
por a vida não ser o bastante.
Poesia,
de pétala em pétala
de silêncio,
canto-te.

ÁFRICA INEXPLORADA

Eu sou a parte de toda África
Ainda inexplorada
Onde batuque
Se auto musica
No orvalho terrestre
Nas águas ainda mudas
Que correm a mutação
Das savanas e das pestes
Eu sou África ainda pura
Que nos seus campos virgens
Ainda adora o sol
E o canta pentatónica
Com a felicidade de existir
Sou África em cada pedaço de mim
E cada pedaço de mim a existir
Mupipi sobrevoando o grão
Urdindo o cântico litúrgico
Da utopia nas sementes
Marrabentando o futuro
Com mesmo sol dendêm
Das acácias e das palancas
Das palmeiras alcançando o céu
Eco ritmando o mistério e o feitiço
Da mãe ventrando a terra una
E da mão carne e alma de mulher
Eu sou a África profunda
Nos montes e ilhas
Que clamam os quatro ventos
Do sonho e dos horizontes
Que nos escorrem pelos dedos
No desacredito dos desertos
E das rochas esquecidas
Sou eu África fecunda
Que te escrevo
No sabor do lirismo que nos une
Na poesia dos povos
Neste exotismo de ânsias
Que nos sonha
Parte da África ainda inexplorada.

UM PIANO, MINHA LOUCURA E EU

Um piano
cogita no silêncio das noites,
arrepia em notas soltas
a desenfreada falésia do desejo.
Ah, estares-me ausente!
Reverbera o saxofone, o teu,
e eu galgando o tempo na lua,
ah amor, cruzo savanas, trópicos e desertos.
E tu comigo, cá dentro, lá fora
amando-me na medida do ritmo
de um jazz cálido e frenético.
Abraço do Índico, o piano
atravessa as fronteiras que nos distam,
recria o sopro do teu sax
no meu corpo.
A boca, as mãos, os teus dentes
no meu lóbulo, o piano
é todo o futuro por vir,
uma pintura quieta como um pomo,
o pêssego que adoça
o som que há no silêncio:

MEU MOÇAMBIQUE

Minha África suburbana.
Eu sei-me Moçambique,
cisterna no pecúlio dos deuses.
Um Zambeze inteiro escala a língua
escorre-me pelas pernas
ramifica nos canhoneiros,
laça os peixes inquietos nas sementes
engolfa-se nos mpipis bêbados nas timbilas.
Eu sei-me Moçambique,
no cume das árvores, na sede incontinente
da minha falange, do Rovuma ao Incomati,
no xigubo terrestre dos pés descalços
e em todos os tambores que surdem
das mãos coloridas nos braços em chaga.


A LÍNGUA NUA DE OSWALDO MARTINS

O poeta Oswaldo Martins Acaba de lançar pela 7Letras um novo livro: Língua Nua, numa parceria com as ilustrações de Elvira Vigna. No prefácio, Júlio Diniz fala dessa parceria:

“A noção de parceria, em particular no campo das artes, tem sofrido constantes modificações. Realizar um projeto que envolve distintas mãos não se resume a uma soma de esforços e busca de complemento. Mais do que isso, a necessária comunhão entre linguagens e estruturas distintas se afirma na suplementaridade de suas diversidades e objetivos.

Há uma tradição de diálogo já firmada entre o livro e as artes plásticas, em especial o desenho e a pintura. São inúmeros os exemplos de clássicos da literatura ocidental ilustrados por artistas consagrados. Mas poderíamos ainda afirmar que traços, figuras e formas apenas ilustram e adornam a obra, a escritura, o corpo textual?

Se tomarmos como exemplo uma das edições de Les fleurs du mal de Baudelaire, primorosamente rasurado pelo delicado traço de Matisse, veremos que há muito não se aplica a esse constructo de artistas conceitos como ilustração e adorno. Matisse relê Baudelaire e reescreve em níveis distintos e suplementares as suas/dele flores do mal.

A constatação exposta acima aplica-se com propriedade ao livro Língua nua, uma bem urdida trama de conceitos, textualidade e imagens poéticas concebida e construída por dois artistas contemporâneos. A parceria entre o poeta Oswaldo Martins e a desenhista Elvira Vigna reafirma a vocação desta obra para a dialogia, a pluralidade e o apagamento de fronteiras rígidas entre diferentes estéticas.”

E concluí: “O resultado final é produto de uma refinada artesania de palavras e imagens. Os traços dos desenhos de Elvira adentram e se confundem no corpo dos poemas de Oswaldo, provocando distintas leituras sobre o lugar do erotismo no espaço dos afetos. Uma parceria em tom maior, sem dúvida.”

A seguir três textos e uma ilustração de Língua Nua.

10

este o abismo da alma o andar medido os anos revoluteiam no corpo revoltos versos estancados em medida o ocaso de um soneto talvez e mais talvez o passo com que meço no espaço o ritmo da mão trêmula e ávido sob este papel em restauração de noites tontas ao som de um religioso bach que alertasse para a dúctil ubiquidade da alvorada preludio com a alma gasta em todas as vírgulas as dobras da vulgata


 
exilada
de meus desejos

crio em mim
homens calcinados

para lembrá-los
da paixão

que nos invejam
os deuses

////

por isso me arrasto
sobre a terra
ganem vitupérios

para ainda provar
o gozo

da desobediência
foi que clamei


A PRÁXIS POÉTICA DE MÁRIO CHAMIE

1. Lavra-Lavra lança e instaura o poema-práxis.
2. Que é o poema-práxis? É o que organiza e monta, esteticamente, uma realidade situada, segundo três condições de ação: a) o ato de compor; b) a área de levantamento da composição; c) o ato de consumir.

Assim começava o Manifesto Poema-Práxis, um posicionamento poético e estético lançado pelo poeta Mário Chamie em 1962, como posfácio de seu livro Lavra-Lavra (Prêmio Jabuti /1962) e em discordância direta com o Concretismo. Dos anos 60 pra cá as vanguardas passaram e foram passadas, Mário continuou poeta e também virou político controverso, sendo secretário de cultura de Paulo Maluf e tendo criado a Pinacoteca Municipal, o Centro Cultural São Paulo e o Museu da Cidade de São Paulo. Na manhã do dia 3 deste mês, um domingo, Mário Chamie morreu em São Paulo, aos 78 anos. “Suas experiências são interessantes como tentativa de manter a tradição do Modernismo, sem renunciar ao espírito de vanguarda”, disse sobre ele e o Movimento Práxis o crítico Antonio Candido. Chamie lançou mais de dez livros de poesia. Então, vamos aos seus versos.

PLANTIO

Cava,
então descansa.
Enxada; fio de corte corre o braço
de cima
e marca: mês, mês de sonda.
Cova.

Joga,
então não pensa.
Semente; grão de poda larga a palma
de lado
e seca; rês, rês de malha.
Cava.

Calca
e não relembra.
Demência; mão de louco planta o vau
de perto
e talha: três, três de paus.
Cova.

Molha
e não dispensa.
Adubo; pó de esterco mancha o rego
de longo
e forma: nó, nó de resmo.
Joga.

Troca,
então condena.
Contrato; quê de paga perde o ganho
de hora
e troça: mais, mais de ano.
Calca.

Cova:
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
cava.

O TOLO E O SÁBIO

O sábio que há em você
não sabe o que sabe
o tolo que não se vê.

Sabe que não se vê
o tolo que não sabe
o que há de sábio em você.

Mas do tolo que há em você
não sabe o sábio que você vê.

AUTO-ESTIMA

Sou Chamie,
venho de Damasco.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Sírio sou helenizado.

De Damasco
ao meu legado,
sou católico
e islâmico,
copta apostólico
catequizado.

No pórtico
mediterrânico,
sou ático e arábico.
Vou contra o deserto
de desafetos contrários.

Sem custo nem preço
que se meça,
em nome de meu gênio
atlântico e adriático,
desprezo a cabeça
e a sentença
de meus adversários,
adversos e vicários.

Sou Chamie, Mário.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Por onde entro,
venho de Damasco
pela porta
do apóstolo Paulo.
Sírio sou helenizado.
Venho de Damasco,
por onde saio.

POR TRÁS DA PALAVRA

Por trás
de toda palavra
há uma trama
cavada.
Só não se cava
nem se sagra
a palavra
enclausurada.

A clausura
da palavra
é a palavra
lacrada;
é a usura
da palavra
que não abre
suas veias
se se envenena
de nada.

Só se salva
a palavra
contaminada
por outra palavra
sangrada:
— pois a palavra
infectada
pelo que outra
desata
é a palavra
que em sua casca
se rasga
contra o nada
da palavra
enclausurada.

Por trás
de toda palavra
que não se perde
lacrada
há a trama envenenada
de toda palavra
tramada.

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