segunda-feira, 19 de setembro de 2011

POR QUE ESCREVO?

“Se fosse sólido eu comia. Se fosse líquido eu bebia. Escrevo porque é gasoso.”
Alice Barreira

Três momentos em que o poeta João Cabral de Melo Neto pensa a sua poesia e seu ofício de escritor. O primeiro deles é o poema Psicologia da Composição, que está no livro que lhe empresta o nome e é de 1947. O segundo é de 1966 e está no livro A Educação pela Pedra. Trata-se do poema A Educação pela Pedra, que também tem o mesmo nome do livro em que se inclui. Nessas coincidências, que não o são, vemos que os livros de João Cabral não são meras coletâneas de poesia, são projetos. Como ele mesmo conta no terceiro momento, quando conversa de forma pungente com o escritor e fotógrafo Eder Chiodetto, em sua casa, já no final da vida. (Eder fotografou Cabral e incluiu a conversa e as fotos em seu belo livro O Lugar do Escritor, publicado pela Cosak & Naify.)

Psicologia da composição

I
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisa
vazia, que despi.

II
Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.

Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.

Como não há noite
cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;

como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.

III
Neste papel
pode teu sal
virar cinza;
pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza

(Teme, por isso,
a jovem manhã
sobre as flores
da véspera).

Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.

(Espera, por isso,
que a jovem manhã
te venha revelar
as flores da véspera).

IV
O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro; romper
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco.

(O descuido ficara aberto
de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça).

V
Vivo com certas palavras,
abelhas domésticas.

Do dia aberto
(branco guarda-sol)
esses lúcidos fusos retiram
o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)

que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido,
contra o açúcar do podre.

VI
Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;

não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;

mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,

aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.

VII
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.

VIII
Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.

(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
cai, fruto!

Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras).

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas:

então, nada mais
destila; evapora;
onde foi maçã
resta uma fome;

onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio.


A Educação pela Pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.


Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática)
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

A CONSTRUÇÃO “Não sou mais um escritor. Estou cego. Para escrever, preciso ver. Não leio, não consigo escrever também. Sou um ex-escritor. Não adianta ditar versos para alguém porque preciso ver a minha letra construindo-os. Escrevo como quem constrói uma casa. Meus livros têm estrutura, não são reuniões de poesias. Minha influência foi Le Corbusier, que li em Recife quando ainda era moço, e também os poetas cubistas franceses. Paul Valéry, que não era cubista, também. Para mim é uma tortura não poder ler, sabe? Desde pequeno não fiz outra coisa senão ler. Não ler é pior do que não escrever. Publiquei meu primeiro livro com 22 anos. E o último com 73. A literatura perdeu completamente o sentido para mim. Não me lembro mais de nenhum poema meu.”

O FIM DE TUDO “Eu era diplomata. Escrevi quando havia tempo. Quando voltei de Portugal para o Brasil estava contente, porque teria mais tempo para me dedicar à escrita. Aí fui fazer uma operação no intestino e fiquei cego. Foram setenta dias de UTI. Quando acordei, não enxergava mais. Meu psiquiatra foi me visitar no hospital e viu que havia uma luz fortíssima sobre meus olhos. Eu, inconsciente, não podia meter o braço naquela luz. Queimaram minha retina. Hoje tenho apenas uma visão periférica. Enxergo mal, vejo apenas seu vulto. Me sinto fraco, meio doente, sem vontade de nada. Morrer é o fim de tudo. O descanso.”

O BARBEIRO “Você quer me fotografar no meu escritório? Aqui não tem escritório. Não escrevo mais. Além do que, estou barbado. O barbeiro só vai chegar às sete horas. Você é insistente, hein garoto? Tá bom, eu sento aqui nesta cadeira e você faz a foto.”


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