segunda-feira, 19 de setembro de 2011

THAT’S ALL, FOLKS!

Talvez encontre dentro de mim o que o mundo me negou. Talvez só me reste isso: dormir e voar para dentro.
Surge uma cortina de chumbo (sempre as cortinas), contra a qual alguns raios ardem. Uma tempestade sacode a cena. As coxias estalam, o palco balança, os cenários se deslocam. Os camarotes estão vazios.
Perfurando o pano, uma voz, aquela voz, a mesma que até hoje me agita, faz o comunicado medonho: “As implicações dessa operação podem ser traduzidas pelo verbo “penar”. Para que tu pênis.”
Abro os olhos. Lá está a frase, anotada aos garranchos, dessa vez em um cardápio de quarto. A letra é minha, de quem mais?
Assim ouvi, assim anotei: “As implicações dessa operação podem ser traduzidas pelo verbo “penar”. Para que tu pênis.”
Espanta-me o trocadilho. Não “penes”, mas “pênis”. As palavras são dados. Sonhos são jogos. Mas quem os joga?
“As implicações dessa operação.” Mas que operação? E haverá outra senão minha busca?
Essa carta – que você nunca lerá – não é o rascunho do livro que escreverei. Ao contrário: com ela, eu me livro do livro.
A insistência dos sentidos duplos me enlouquece. A língua vacila. Jamais poderei confiar nas palavras.
Você nunca leu a Carta que lhe dei. Em algum sebo, um desconhecido a folheou. E, por espanto, ou por maldade, sublinhou (em seu lugar) a frase maldita.
Também Hermann Kafka não chegou a ler a carta que Franz lhe escreveu. Falsa destinatária, a mãe, Julie, tratou de queimá-la.
São essas as cartas que se perpetuam: as que não chegam a seu destino. As que ficam esquecidas nas prateleiras da posta restante. Aquelas que ninguém lê.
Não chegarei a escrever o livro que escreverei. Ele não passa da carta que o preparou. Preparou e matou. Esta carta.
Trago comigo, pai, os Poemas, de Baudelaire. Um deles tem o título roubado de Terêncio. Significa: “O carrasco de si”. Ou então: “O que se pune a si”.
Meu sonho é um registro desta punição. Mas por que me castigar com o sexo? Sei que os filhos – como os vampiros – sugam as forças do pai.
Diz-se que eles “se identificam”; mas o que se passa é bem mais violento: eles o “devoram”.
Volto a Terêncio, vendido como escravo a um senador latino. O público romano o desprezava. Ainda hoje, é considerado um escritor menor. Talvez por isso eu o leia.
Eu, Franz. Dois homens que rastejam. Eis o Ponto da Gralha: um capacho. Nele me encolho e durmo.
Antes da chegada do táxi, releio o poema de Baudelaire. Sem pensar em Terêncio, sem pensar no carrasco de si, sem saber o que faço – eu faço. Assim fazemos as coisas mais graves: sem perceber.
No poema, surge a resposta à frase de meu sonho: “Eu sou a faca e o talho atroz”. Está tudo dito.
De um lado, a moeda brilha, do outro sangra. A arma é também a ferida. O carrasco e sua vítima se confundem. A voz me adverte: melhor fugir do gozo, porque ele é também a dor.
Por que insistir na reconstrução do passado? De duas, uma: Ou o carrego em mim, ou a procura é inútil. O passado é só a lembrança que temos do passado.
Volta-me a voz abafada do doutor Martins: “Diga-me quem você é, pois já não sei quem sou.” Só temos falsas esperanças. Tudo que temos é o outro.
Já não me interesso pelo Dicionário poético de meu bisavô, Manuel Thomaz. Chave inútil, não abre porta alguma. Em vez de abrir, ela multiplica as trancas.
Só agora me dou conta: esqueci minha Carta ao pai – o mesmo livro que, um dia, lhe dei – em uma gaveta do hotel. Eu o deixei em Parnaíba, pai. Quem será o próximo a ler?
Será possível que, pela segunda vez, o livro me volte? Mesmo que volte, será outro livro. Serei outro homem. Isso é a esperança.
Mas não se pode perder uma frase. A frase que você sublinhou permanece gravada em mim. Dela não me livrarei. Fica não como uma acusação, mas como uma pergunta.
Tornei-me alguém que nunca termina de responder as perguntas que você me fez, meu pai.
É hora de fechar as malas, pagar as contas e voltar para casa. Enrolar as frases, dobrar as esperanças, deixar para trás as ilusões. Não se procura aquilo que se carrega.
Antes de pegar a estrada, preciso passar no correio. Tenho uma carta a despachar. Esta carta, a você, Ribamar, meu pai. A atendente me olha perplexa: “Falta o endereço.” Eu respondo: “Ponha aí um destino qualquer.”

CAPÍTULO FINAL DE RIBAMAR, ROMANCE DE JOSÉ CASTELLO, LANÇADO PELA EDITORA BERTRAND BRASIL.





Meu e mail: cesarcar@uninet.com.br

©Cesar Cardoso, 2010. Todos os direitos e esquerdos reservados. Que os piolhos infectados de 18 mil camelos infestem as partes pudendas de quem publicar algum texto daqui sem avisar nem dar meu crédito.

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