sexta-feira, 4 de novembro de 2011

RINHA DE GALINHA

por Don King - nosso correspondente na
Academia Brasileira de Letras e Artes Marciais
Waall, mais um estupefaciente duelo de Titãs! Neste córner, com 60 quilos de pura epifania literária, Clarice Lispector, a Demolidora da Ucrânia, com sua técnica de paixão segundo G.H. No outro corner, Franz Kafka, o Pesadelo de Praga, com seus jabs que mostram o trágico, o grotesco e o cruel da condição humana. Quando eles se enfrentam até as baratas tremem. E o pau come na casa de Noca. Holly shit!

I

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação ao resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
- O que aconteceu comigo? – pensou.
Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas. Sobre a mesa, na qual se espalhava, desempacotado, um mostruário de tecidos, - Samsa era caixeiro-viajante -, pendia a imagem que ele havia recortado fazia pouco tempo de uma revista ilustrada e colocado numa bela moldura dourada. Representava uma dama de chapéu de pele e boá de pele que, sentada em posição ereta, erguia ao encontro do espectador um pesado regalo também de pele, no qual desaparecia todo o seu antebraço.
O olhar de Gregor dirigiu-se então para a janela e o tempo turvo – ouviam-se gotas de chuva batendo no zinco do parapeito – deixou-o inteiramente melancólico.
- Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse todas essas tolices? – pensou, mas isso era completamente irrealizável, pois estava habituado a dormir do lado direito e no seu estado atual não conseguia se colocar nessa posição. Qualquer que fosse a força com que se jogava para o lado direito, balançava sempre de volta à postura de costas. Tentou isso umas cem vezes, fechando os olhos para não ter que enxergar as pernas desordenadamente agitadas, e só desistiu quando começou a sentir do lado uma dor ainda nunca experimentada, leve e surda.
- Ah, meu Deus! – pensou. – Que profissão cansativa eu escolhi. [...]

(Em “A Metamorfose”, de Franz Kafka, pg. 7, tradução de Modesto Carone, Companhia das Letras.)

Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos embranquecem.
De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito.
Nada, não era nada – procurei imediatamente me apaziguar diante de meu susto. É que eu não esperara que, numa casa minuciosamente desinfetada contra o meu nojo por baratas, eu não esperava que o quarto tivesse escapado. Não, não era nada. Era uma barata que lentamente se movia em direção à fresta.
Pela lentidão e grossura, era uma barata muito velha. No meu arcaico horror por baratas, eu aprendera a adivinhar, mesmo à distância, suas idades e perigos; mesmo sem nunca ter realmente encarado uma barata eu conhecia os seus processos de existência.
Só que ter descoberto súbita vida na nudez do quarto me assustara como se eu descobrisse que o quarto morto era na verdade potente. Tudo ali havia secado – mas restara uma barata. Uma barata tão velha que era imemorial. O que sempre me repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais. Saber que elas já estavam na Terra, e iguais a hoje, antes mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e se arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão do mundo, e lá estavam durante o grande avanço e depois durante o grande recuo das geleiras – a resistência pacífica. Eu sabia que baratas resistiam a mais de um mês sem alimento ou água. E que até de madeira faziam substância nutritiva aproveitável. E que, mesmo depois de pisadas, descomprimiam-se lentamente e continuavam a andar. Mesmo congeladas, ao degelarem, prosseguiam na marcha... Há trezentos e cinquenta milhões de anos elas se repetiam sem se transformarem. Quando o mundo era quase nu elas já o cobriam vagarosas.
Como ali, no quarto nu e esturricado, a gota virulenta: numa limpa proveta de ensaio uma gota de matéria.

(Em “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, pg. 47. Editora Rocco.)

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