sexta-feira, 4 de novembro de 2011

“NÚNCARAS” – po+es+ia

Affonso Ávila sempre nos premiou. Com o artesanato fino da sua poesia. De vez em quando alguém lembra de retribuir e dar a ele um prêmio. Foi o que fez a Secretaria de Cultura de Minas Gerais, atribuindo a Affonso o prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura pelo conjunto de sua obra.
Mineiro dos melhores, aqueles que nascem em Minas e depois vão deixando Minas nascer dentro deles, Affonso começou a publicar em 1953, se ligou ao grupo da Poesia Concreta, colaborando em sua revista Invenção, e recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia – 1991 com o livro O Visto e o Imaginado. Em 1963, organiza com o poeta Affonso Romano de Sant'Anna a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, na Universidade Federal de Minas Gerais. Grande estudioso do barroco brasileiro, de 69 a 96 dirige a revista Barroco, publicada pelo Centro de Estudos Mineiros da UFMG. E na década de 80 cria o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais.
Sua poesia é marcada pela invenção, pela experimentação. Affonso nasceu em 1928 e não vai morrer nunca, enquanto houver na Terra quem leia e pense e imagine.

Os negros de Itaverava

Três negros de Itaverava,
irmãos em sangue e aflição,
não dormiam, como os outros,
a noite que é sujeição,
dormiam, sim, as auroras
— as luzes em combustão
dos sonhos que, mesmo estéreis,
sucedem no coração.

Enquanto as almas penadas
nos caminhos pranteavam
o corpo que se perdera
e os cães com elas choravam,
na senzala não se ouviam
os passos que se cuidavam,
as vozes que, a medo e susto,
no paiol confabulavam.

Para quem é jaula o dia,
que seja conspiração
de perfídia e sortilégio,
de roubo e contravenção
a noite cujas estradas
não se sabe aonde dão,
a noite que enlaça o negro
com seus silêncios de irmão.

(Em Código de Minas & Poesia anterior, Editora Civilização Brasileira, 1969.)

insólito

contato é impudicícia ou carência de tato
gesto que sai do corpo como um salto de gato
suave rude ardil ou busca de gozo
rei dos sentidos empós do amor ou do afeto
sondagem de quem sonhou e argui de fato
a empáfia escondida entre haustos do só
não temer o impacto da astúcia
colher a rosa no ramo propício enquanto é vermelha
e saborear o odor a cor o íntimo calor
é tarde é breve mas intensa de brilho
signo de infinito clamor
que não calou no estamento do tempo
e rói fundo o apetite que resta
via possível na corrosão do palor
e usá-la a furto oculto
imponderada lapela
fim ou princípio
sorte lançada
defasado cupido
 
(Em poeta poente, Editora Perspectiva, 2010.)

IMPROVISO

A palavra justa
a mim não pertence,
busco-a nessa luta
em que não se vence,
trabalho diário,
pelo amor de sempre.

A palavra triste
a mim não pertence,
perco-a numa lide
cujo amor me vence,
trabalho diário
pelo amor de sempre.

A palavra louca
a mim não pertence,
bebo-a noutra boca
e ela me convence,
trabalho diário
pelo amor de sempre.

(Em Carta do Solo, Editora Tendência, 1961).

ARTE DE FURTAR

O poeta declarou que toda criação é tributária de outras
     criações no permanente processo de linguagem da poesia

O poeta afirmou que todo criador é tributário de outros no
     processo de linguagem da poesia

O poeta se confessou um criador tributário de outros na
     linguagem de sua poesia

O poeta não esconde que sua poesia é tributária da linguagem
     de outros criadores

O poeta não esconde que sua poesia é influenciada pela
     linguagem de outros criadores

O poeta não faz segredo de que se utiliza da linguagem de
     outros poetas

O poeta fala abertamente que se apropria da linguagem de
     outros poetas

O poeta é um deslavado apropriador de linguagens

O POETA É UM PLAGIÁRIO

(Em O discurso da difamação do poeta, Summus Editorial, 1978)

URBANA

turvo rio margem assoreada
de terras podres ímpetos detritos
decompostos da plenitude e da beleza
saqueados a shoppings edifícios
o poder açodado e o poder acuado
vias de pecúnia pedante e rodante
quilômetros de fita métrica
medindo a aflição do relógio
e carros zero enfilando humilhados
o que não mais se vê que veículos e veículos
de vaidade afã de quem expecta
o sobe e desce da bolsa
o encontro da fêmea de programa
o conferir inferido da féria
e sobrenadando a água poluída
do último temporal
o conduto dos sem dos que não têm
lupenato dos mal natos
ordem de vez da astúcia do comando
súbito letal o regalo tomando
assalto relâmpago
 
(Em poeta poente, editora Perspectiva, 2010.)

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