terça-feira, 12 de outubro de 2010

“NÚNCARAS” – po+es+ia -


SALGADO MARANHÃO
– UMA VOZ DA POESIA CONTEMPORÂNEA


Maranhense até no nome, Salgado Maranhão vive no Rio desde 1973. Em 78, participou da antologia Ebulição da Escrivatura e de lá pra cá vem construindo uma obra poética marcada pelo alto grau de invenção presente em sua recriação da língua no verso, buscando “a torteza inusitada que me arranque do chão”. Ali podemos encontrar suas origens, sua cor, sua vivência oriental e outros rastros da vida do poeta, mas sempre com a marca de engenho e arte para tratar de qualquer tema ou mesmo de tema nenhum.
Salgado publicou os livros Punhos da serpente (Rio de Janeiro, Achiamé, 1989); Palávora (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1995 ); O beijo da fera (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1996); Mural de ventos (Rio de Janeiro, José Olympio, 1998, Prêmio Jabuti), Sol Sanguíneo e A Cor da Palavra (reunião de sua obra poética até agora, Editora Imago/FBN).
O poeta também é letrista e este seu trabalho pode ser conferido no cd Amorágio, onde estão reunidas algumas de suas parcerias com Ivan Lins, Elton Medeiros, Paulinho da Viola e outros.

A cidade

Espaços da cidade
agônica
fluem com os bárbaros
insurretos. Noiados.
Sem visgo de afeto
que adoce as ranhuras .

Quito ao meu olhar
virtual
sua cota de sonhos:
gatas de chocolate
e bundas avulsas.

Que passam e não me agendam
em nenhuma manhã.

(Egos de bife e batom.)

Estrelas de carne e faíscas
entrefodem-se no Olimpo.

O azul e as farpas

Sigo a sangrar, do peito ao vão das unhas,
os dardos do amor: o que há sido e o que há.
Naufragado ao vento de um cais sem mar
o que serei se alia ao que me opunha.
As farpas do desejo – esse tear
das aranhas da dor e sua alcunha
– fazem da luz do dia uma calúnia,
cravam no azul da tarde o zen do azar.
Tento amarrar o tempo e a corda é curta,
tento medir o nada e nada ajusta.
(Meus nervos tocam para os inimigos
que chegam sob o som de uma mazurca.)
Resta a mó do destino – o desabrigo
– a devolver meu pão de volta ao trigo.

Voz

Minha carne é fibra de argila e sol
verão. Ou docas onde a dor se encuba
secretamente. Sei que em meu paiol
os andróides de porre dançam rumba.
No entanto flui de mim um girassol
lilás que luz, que jazz, que mais que alumbra,
esculpe as esquadrias do arrebol
dissolve o tempo sobre a minha juba.
Já de júbilo desse pergaminho,
aceito o temporal – redemoinho
de pedras: tanto degrau... tanta esgrima...
e ao ter somente a voz como caminho
agarro a poesia pela crina
e me arrimo na minha própria rima.

X. NADIRES

A sanha que aquece a raiz dos úmeros
enseja ao coração um disparate,
ao desvelar o que é de flor em fero,
ao se tornar fiel ao que lhe mate.
São forças que nos raptam a um sem número
de vezes e vieses e desates,
felizes perdedores desse embate;
nem no sonho que enlaça nossa íris
nessa teia de nadas e nadires
em que tudo se rende ao mesmo jogo.
Vem da palavra a sagração dos ritos:
esta relíquia de silêncio e gritos.

SENTENÇA

faz muito tempo que eu venho
nos currais deste comício,
dando mingau de farinha
pra mesma dor que me alinha
ao lamaçal do hospício.
e quem me cansa as canelas
é que me rouba a cadeira,
eu sou quem pula a traseira
e ainda paga a passagem,
eu sou um número ímpar
só pra sobrar na contagem.

por outro lado, em meu corpo,
há uma parte que insiste,
feito um caju que apodrece
mas a castanha resiste,
eu tenho os olhos na espreita
e os bolsos cheios de pedras,
eu sou quem não se conforma
com a sentença ou desfeita,
eu sou quem bagunça a norma,
eu sou quem morre e não deita.

2 comentários:

  1. "as farpas do desejo-esse tear
    ...............
    fazem da luz do dia uma calúnia
    cravam no azul da tarde o zen do azar..."

    "nessa teia de nadas e nadires..."
    é mesmo
    "uma relíquia de silêncio e gritos..."

    neuzza
    www.spiritualsdoorvalho.blogspot.com

    e fosse uma sentença pura música...

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  2. Salve, Neuzza,

    O Salgado é muito bom, né? E melhor ainda é quando os poetas conversam.

    Beijo

    Cesar

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