quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

- LHUFAS - coisa com coisa nenhuma –


NOVOS HAICONTOS DE ALICE BARREIRA.

O FIM

Gregor pressentia. Já não sabia bem o que, mas pressentia que aquelas pessoas –
seriam mesmo sua família? – queriam se livrar dele, a qualquer custo. Esperou anoitecer e o silêncio tomar conta da casa. Mesmo com a maçã encravada nas costas, juntou todas as suas forças, conseguiu entreabrir a porta do quarto e fugir pela fresta. Na cozinha, subiu pela parede e alcançou um basculante aberto. Por ali teve acesso ao corredor do prédio, onde parou para descansar, na escuridão. Estava feliz, havia conseguido fugir da casa e daquelas pessoas. Teriam sido mesmo a sua família um dia? Pensar era tão cansativo! Estava assim absorto quando foi despertado pelo barulho do velho elevador. Entrou em pânico. E se o pegassem ali? Viu outro basculante semiaberto, de onde vinha uma pequena luz. Sem pensar, subiu pela parede e se esgueirou, entrando na casa vizinha. O cansaço e o medo faziam com que se movesse muito lentamente. Como por instinto seguiu a pequena luz e foi parar na sala. Lá, um abajur iluminava muito fracamente a mesa onde um homem escrevia. Gregor ficou olhando aquela cena, tinha algo familiar, o que era? Aquele homem curvado, escrevendo na semi-escuridão, quase clandestinamente. Gregor foi sentindo nascer dentro de si a certeza de que o conhecia. Quem? Tão encolhido, como se estivesse cometendo um crime. Sim, devia ser. Franz. Claro, era ele. Franz Kafka. Gregor juntou suas últimas forças e foi se aproximando, cada vez mais. Se esgueirando silenciosamente pelo espaldar da cadeira. O homem parou de escrever, como que pressentindo algo. Mas, antes que se virasse, Gregor usou suas últimas forças para apertar-lhe a garganta com suas antenas.


SONHOS

Sonhou que largava tudo, emprego, família, aquela vidinha e finalmente aprendia a tocar bateria. Acordou com as pancadas. Não as suas, na bateria sonhada. Não, em plena madrugada alguém esmurrava a porta do apartamento. Levantou assustado e foi correndo ver o que era. Pelo olho mágico viu a cara zangada do vizinho. Abriu a porta, sem entender, e o homem, ainda furioso, lhe disse:

- Sonhei que você sonhava que estava finalmente aprendendo a tocar bateria.

Mais surpreso ainda, ele confirmou. Realmente estava dormindo e sonhando que aprendia o instrumento de que tanto gostava. E o vizinho, ainda de mão fechada e quase mordendo os próprios dentes:

- Acontece que quando você toca no seu sonho, me acorda no meu sonho. Portanto, pare de sonhar com isso e trate de ficar acordado. Eu quero dormir, entendeu?

Deu meia volta, entrou no seu apartamento e bateu a porta com força।

2 comentários:

  1. Muito bom! Leva-se 1 segundo para ler e, a depender do caso, uma vida inteira para lembrar e pensar sobre ele, sobre esse pequeno texto. Parabéns! Genial!

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  2. Valeu, Fábio.

    Vou passar o recado à minha irmã Alice. Ela continua firme nos haicontos e estamos pensando em fazer um livro juntos.

    Abraço

    Cesar

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